O texto abaixo foi postado originalmente em 11/12/2024 no site da "Folha de S.Paulo", a quem pertencem os direitos.
Daniel Craig e Drew Starkey, em "Queer" |
Não são poucos os instantes tórridos de desejo homossexual em “Queer”. Mas a cena mais erótica é, igualmente, a mais lírica de todo o filme: pouco após performar sexo oral em um rapaz, o homem que recebeu o sêmen em sua boca beija os lábios do parceiro, compartilhando com ele um pouco mais que sua própria saliva.
O diretor, Luca Guadagnino, extrai uma delicada poesia hiper-realista de uma prática (conhecida por “snowballing”) que, encenada com menos sensibilidade, poderia surgir como pornografia apelativa. Mas que, em “Queer”, revela-se sobretudo sexy e inesperadamente romântica.
“Queer” é um filme extremamente calcado em aspectos físicos, sensuais, mas suas reais preocupações têm bem mais amplitude. É sobre uma paixão desesperada, de um homem que precisa urgentemente de um sentido para a própria existência, vendo a chance disso no rapaz mais jovem pelo qual se apaixona.
Vemos a trajetória de Lee, interpretado magnificamente por Daniel Craig, um homossexual americano de meia idade que se fixa na Cidade do México, nos anos 1950. Sua rotina consiste em ir de bar em bar, atrás das duas coisas que o mantêm vivo: a embriaguez e o sexo. Ao conhecer o jovem Allerton, vivido por Drew Starkey, encanta-se e mergulha nessa oportunidade de, enfim, ter uma conexão real com outra pessoa – e, por extensão, com a vida.
O longa adapta a obra homônima do escritor beat William S. Burroughs, inspirada em suas próprias experiências mexicanas dos anos 1950. Não é um grande livro: mais que um homem desnorteado, Lee parecia sobretudo um bêbado chato, enquanto Allerton era um rapaz de tamanha apatia que o leitor nunca se convence de que ele pudesse despertar obsessão passional em alguém.
Mas Guadagnino aprimora o material, não só ampliando a dimensão da crise existencial do protagonista como, sobretudo, injetando ali uma fisicalidade que o livro trazia só parcialmente. Talvez por se pretender alucinatória, a obra de Burroughs não conseguia trazer palpabilidade às peregrinações homoeróticas de Lee, em uma Cidade do México que soava fake.
Como Guadagnino é um grande sensualista, introduz textura e corporeidade à obra, muito embora o caráter delirante do livro também seja preservado. Sobretudo no trecho final, que é puro estranhamento, com uma brusca ruptura narrativa após uma viagem dos personagens ao Equador, atrás de uma planta alucinógena.
Até então, o filme já tinha trazido deleitosos momentos de subversão estética, como quando toca “Come As You Are”, do Nirvana, enquanto Daniel Craig caminha em câmera lenta por ruas boêmias. Mas o procedimento chega ao paroxismo é mesmo nas cenas finais, quando o filme parece que vai acabar diversas vezes, mas sempre surpreende o espectador com uma nova cena sem explicação lógica sucedendo a anterior.
Guadagnino sempre foi um mestre quando seus filmes lidam com a materialidade e o carnal: a cena de sedução da adolescente virgem, de “100 Escovadas Antes de Dormir”, de 2006; a Sicília ensolarada do esplêndido “Um Mergulho no Passado”, de 2015; a profusão de coxas em ação nas quadras de tênis de “Rivais”, deste ano. Mas seu cinema é menos feliz ao lidar com abstrações, e talvez por isso os fins de seus longas, em geral elusivos, quase sempre deixem um quê de decepção. Como se o próprio diretor não soubesse muito bem a que ponto seus filmes deveriam chegar.
A única vez que selou à perfeição uma trama foi em “Me Chame pelo Seu Nome”, de 2017, seu filme mais controlado. Mas apesar da afinidade temática, “Queer” é praticamente um antípoda do longa que o projetou em Hollywood, e existe novamente a impressão de uma grande aleatoriedade na escolha das cenas finais. Mas, felizmente, desta vez Guadagnino opta por um tipo de imprecisão lynchiana que trabalha a favor do filme, em vez de enfraquecê-lo.
Entre inusitadas alusões a Guilherme Tell e ao “2001” de Kubrick, o desfecho chega a níveis de delírio e absurdo que são uma extensão da psicodelia do protagonista, mas há algo mais; em meio ao nonsense, o que se destaca é um aspecto soturno, dolorido, que alude ao espírito de Lee com muito mais eficiência do que a simples literalidade poderia conseguir.
Guadagnino faz um filme sobre um amor gay malfadado, mas evita a facilidade de despejar toda a culpa desse fracasso nos suspeitos de sempre (a homofobia, o conservadorismo). O amor, em “Queer”, tem impedimentos de ordens antes metafísicas do que sociais. Afinal, a obsessão de Lee por Allerton ultrapassa o desejo e mesmo o amor em sua esfera mais romântica. É parte de uma busca cósmica, mística, a partir de um encontro eminentemente físico. Desta vez, Guadagnino é certeiro tanto no que é material quanto no mais puramente espiritual.
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