domingo, 10 de novembro de 2024

Crítica: Megalópolis

O texto abaixo foi publicado em 28.out.2024, na "Folha de S.Paulo", que detém os direitos autorais sobre o mesmo. O link do original é este.

Cena de "Megalópolis", de Francis Ford Coppola

Francis Ford Coppola nunca quis enganar ninguém: é um homem de grandes paixões e ambições. O problema é que em geral tem ideias grandiloquentes demais e condições materiais de menos para realizar projetos que lhe falam ao coração. “Megalópolis”, sonho que ele nutria desde os anos 1980, talvez seja o caso exemplar do quanto ideias que demoram tempo demais para se concretizar podem simplesmente se perder ao longo dos anos.
O projeto nasceu no cérebro de Coppola e logo desceu para o lado esquerdo de seu peito, mas ficou por tantos anos circulando tão unicamente entre essas duas pontas que por ali se fixou e deixou de fazer sentido fora desse circuito; na hora em que finalmente conseguiu ganhar materialidade, já não havia nada a ser materializado.
É decepcionante para os fãs descobrirem que, nesse tempo todo, esse tal projeto de toda uma carreira tinha por pressuposto ideias tão pouco inéditas – e, em certa medida, ingênuas – como a de traçar um paralelo entre o “império americano” atual e o romano de séculos atrás. Em todos os seus vícios, delícias, excessos – e sua inevitável decadência.
Também era uma ideia que fascinava Federico Fellini, e ainda que o italiano não tenha acareado diretamente os Estados Unidos e a Roma antiga, colocou em confronto uma Roma capitalista (e, é claro, americanizada) com a de tempos pré-cristãos.
Em “A Doce Vida”, de 1960, o fez de maneira inesquecivelmente lírica, mas entregou-se ao delírio completo no mais radical “Satyricon”, de 1969. O longa era sobre a Roma pagã e livre de certas amarras moralizantes que só surgiriam em uma era pós-Cristo; ali havia uma liberdade sexual e moral que só entraria em colapso depois que a mitologia romana cedeu espaço à religião – acima de tudo, à religião enquanto modo de dominar. Aquela Roma sem freios tinha os dias contados, e fosse por vontade dos deuses ou por ações humanas, de fato não durou muito tempo.
Mas o filme não era muita coisa além de um magnífico êxtase visual – no fundo, “Satyricon” não trazia nada de tão substancial em seu cotejo da Roma de ontem com a de hoje. Fellini estava lidando antes com uma mitologia sobre sua própria capacidade de criar do que com alguma mensagem real ao seu público.
Coppola faz algo parecido: usa sua própria mitologia para empurrar ao espectador um espetáculo de enorme estilização visual – embora nem de longe do mesmo nível de poder sensório que o de Fellini –, já partindo do princípio de que o público será arrebatado por sua visão. Aposta suas fichas no poder da arte: em sua capacidade de mudar o mundo, como bem acredita o protagonista de "Megalópolis", mas sobretudo na de ela acontecer e brotar de onde menos se espera, como bem acredita Coppola.
A arte, ele nos diz, surge a partir do caos de um artista em crise, talvez em desespero, que cria pela necessidade (ou pelo cacoete) de criar, mesmo sem muito substrato para isso. “Megalópolis” é a profissão de fé de Coppola em que os deuses das artes sempre operam milagres e hão de converter em algo grandioso mesmo o que vier de um artista sem inspiração.
Mas desta vez, os deuses o abandonaram. O filme é uma profusão de ousadias estéticas, mas que resultam invariavelmente estéreis. Existe ali uma louvável abertura ao risco, e Coppola ainda demonstra paixão, brilho nos olhos ao exercer seu ofício. O problema é que nada do que ele faz brilha nessa mesma sintonia: ou reluz com enorme estridência ou é opaco e esquecível. E o filme, ainda que de conteúdo relativamente simples, é de uma incapacidade comunicativa atordoante, em qualquer aspecto.
A grande ideia é mostrar que o mundo precisa urgentemente de uma mudança para que a espécie humana continue a existir. Do jeito que estamos, não iremos muito longe, o que é uma ideia bastante respeitável. O jogo político que Coppola estrutura em “Megalópolis” não tem muito mistério: o César de Adam Driver simboliza o progressismo, enquanto o Cícero de Giancarlo Esposito é o pensamento conservador – e o Clódio de Shia LaBeouf, os neofascismos.
Mas o César de Coppola nunca fornece ao espectador uma dimensão real sobre o que ele defende. Livrar-se de um sistema político que nos destrói? Ok, mas então que tipo de realidade política César está verdadeiramente propondo?
Ele se resume a pregar um mundo mais humano, “em que cada adulto terá direito a um belo jardim privado” – o que é muito bonito e desejável, apesar de um bocado neoliberal para alguém que se pretende um utopista. Mas é acima de tudo um tipo de projeto político por demais inocente, inane – é preciso ter muito amor por Coppola para ver o personagem como uma personificação aceitável do sonho por um futuro melhor. Na verdade, para um filme tão espalhafatoso e de ambições tão elevadas, “Megalópolis” é bem como o entendimento de César sobre política: fundamentalmente simplório.

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