quinta-feira, 18 de maio de 2023

Cannes 2023: Monster / Le Procès Goldman

MONSTER (dir. Hirokazu Kore-eda) 

Os festivais de cinema raramente começam sua programação com filmes que conseguem se manter fortes na disputa até o final, a ponto de levar o prêmio mais importante da competição. Mas em Cannes 2023, ao que parece, as possibilidades de isso acontecer são grandes.

“Monster”, do japonês Hirokazu Kore-eda, abriu a briga pela Palma de Ouro já com um vigor surpreendente para um começo de maratona. O cineasta, que venceu o troféu principal em Cannes em 2018 por “Assunto de Família”, volta agora com um filme ainda melhor, bem mais desafiador em termos narrativos e com a mesma marca afetiva que caracteriza sua obra em geral.

É um filme de gramática estranha, com um estilo de montagem pontilhada que quase nunca se justifica em termos mais lógicos; existe um traço de aleatoriedade no modo em como grande parte das cenas é concatenada – ao menos na primeira parte do longa. São sequências em sobressaltos, como se o cineasta quisesse inserir ali um senso de mistério, ou de meramente dificultar a compreensão do espectador – o que Kore-eda de fato consegue com êxito por um bom tempo. O filme é, ao menos até o terço final, simplesmente impenetrável.

O longa abre com um prédio em chamas, visto da janela do apartamento de uma mulher que vive sozinha com seu filho adolescente. Logo veremos que algo não vai bem com o rapaz, que sente muito a falta do pai, que morreu há alguns anos – a mãe percebe que o problema tem raízes em sua rotina escolar e decide ir tomar satisfações com a diretora do colégio em que o filho estuda.

Na verdade, a trama está longe de se limitar a isso, mas “Monster” é o tipo de filme sobre o qual o quanto menos for revelado, mais intensa será a experiência de assisti-lo. Podemos dizer sem prejuízo ao espectador, no entanto, que a narrativa é fragmentada em três partes – cada uma a partir do ponto de vista de um personagem. Algo que inevitavelmente nos remete ao canônico “Rashomon”, de Akira Kurosawa, mas que ganha contornos muito específicos na intrincada trama desenvolvida por Kore-eda, que só com o passar do tempo vai se desvelando.

“Monster” é um filme sobre medo de pressões sociais, sobre a descoberta do amor, sobre se reconhecer enquanto agente causador de injustiças. E mesmo sobre o quanto o sofrimento pessoal pode ser combustível para a criação artística – há uma cena extraordinariamente lírica já quase no fim, em que uma idosa ensina a um jovem como canalizar suas frustrações para a criação musical. O filme é de uma beleza inacreditável, tanto em sua mensagem como em sua forma – Kore-eda tem o dom para um tipo de poesia visual sem afetação que reitera as intenções mais genuinamente humanistas do cineasta. Ainda que os fios deixados sem ponta nas primeiras partes nem sempre encontrem prolongamentos satisfatórias na parte final, a eletricidade do filme se faz notar, de uma maneira meio mágica, apesar de um roteiro meticulosamente arquitetado. É um filme extraordinário, de uma complexidade narrativa ainda a ser estudada – é desde já uma das grandes obras cinematográficas dos anos 2020.


LE PROCÈS GOLDMAN (dir. Cédric Kahn) 

O eficiente drama de tribunal “Le Procès Goldman”, do francês Cédric Kahn, abriu nesta quarta a Quinzena dos Cineastas, evento paralelo ao Festival de Cannes que antes se chamava Quinzena dos Realizadores – mas que cedeu ao marketing identitário e se autorrebatizou com um termo que pudesse servir para os mais diversos gêneros.

O filme parece um projeto pessoal de Kahn, que o dedica ao seu pai. Resgata o julgamento ocorrido nos anos 1970 de Pierre Goldman, um judeu franco-polonês condenado à prisão perpétua por uma série de assaltos e pela morte de duas mulheres durante um deles. Embora reconhecesse a autoria dos roubos a mão armada, negava com veemência a acusação de assassinato; alegando-se vítima de racismo, conseguiu revisão em seu processo e redução de sua pena.

Goldman não era lá um grande amigo da ordem nem da lei; militante de esquerda desde muito jovem, meteu-se com a luta armada em diversos países de regime ditatorial. Em Paris, no entanto, era uma espécie de bon vivant, cujo estilo de vida não custava barato; participou dos assaltos que o levaram à condenação antes para manter seus hábitos hedonistas do que para arrecadar dinheiro a alguma causa revolucionária.

Na vida real, ao que parece, Goldman era um sujeito desbocado e com um agudo senso de ironia. No tribunal, mesmo com a própria liberdade em sério risco, não conseguia evitar tiradas sarcásticas e mesmo afrontas diretas ao sistema judiciário francês e, sobretudo, à polícia (para desespero de seu advogado). Não tinha paciência para elaborar a própria defesa e insistia que ser inocente já deveria bastar para que não pagasse pelo crime de assassinato.

Mais do que um idealista, parecia um homem desejoso de fazer alguma coisa grandiosa na vida – se não fosse uma revolução social, ao menos entrar para a história como um homem de honestidade a toda prova, que denunciou com bravura o racismo das autoridades legais francesas.

A não ser por um prólogo que se passa na sala do advogado de Goldman, o longa todo ocorre na sala de julgamento. Seria certamente um filme de grande interesse caso acompanhasse Goldman fora do tribunal, mas Kahn consegue pincelar com bastante habilidade alguns traços de sua personalidade, ainda que apenas naquele ambiente fechado e sufocante.

Não é um filme fluido em sua totalidade, mas o trabalho de roteirização e de direção é admirável, sobretudo se levarmos em conta as quase duas horas de trama restritas a um único local. O problema é que o longa surge muito pouco tempo depois de outro que também se passa majoritariamente em um tribunal – “Saint Omer”, de Alice Diop, que apresenta um caso tão complexo e nuançado envolvendo outra criminosa confessa que praticamente redefiniu os filmes de julgamento de a partir de agora. O fato de Kahn optar por um registro mais cômico e literal o faz se tornar até fútil na comparação direta com o magnífico filme de Diop. Mas é apenas uma infelicidade de coincidência de calendário; o trabalho de Kahn é bastante venerável, também trazendo (ao seu modo) sua contribuição aos filmes do gênero, em sua opção pela denúncia de uma tema sério, mas tratado com instantes de humor, que se sobressaem apesar de ser um filme de feitura bastante austera.

Nenhum comentário:

Postar um comentário