segunda-feira, 22 de maio de 2023

Cannes 2023: May December / Les Herbes Sèches / Banel & Adama / Four Daughters

MAY DECEMBER (dir. Todd Haynes)

Todd Haynes deve ter se inspirado em “Persona”, de Ingmar Bergman, para o ponto de partida de “May December”, que apresentou em Cannes. No filme sueco, uma atriz observa sua enfermeira e tenta se apropriar da história e da personalidade dela, de modo a compor sua próxima personagem. Estrelado pelas excelentes Julianne Moore e Natalie Portman, o filme de Haynes é um pouco diferente, mas traz citações inclusive visuais ao longa bergmaniano.

Mostra uma ex-atriz que se envolveu em um escândalo sexual no começo dos anos 1990, tendo sua carreira abreviada. Muitos anos depois, a história dela está prestes a virar filme, então a atriz que vai interpretá-la na tela buscar conviver com ex-estrela para se inspirar na composição da personagem.

Esteticamente, o filme é Haynes em estado puro – o gosto pelo camp se faz notar por todo o longa, sobretudo no uso da trilha sonora. A relação ambígua entre a jovem atriz que tenta ruminar e pegar para si parte da vida da atriz mais velha parece o material perfeito para as ambições estilísticas do cineasta, que de fato faz um filme que deve agradar bastante quem aprecia sua obra. Mas a verdade é que o filme é um bocado oco, e afora o prazer deliciosamente fútil de vermos Portman achar que está sugando a aura de Moore – quando, talvez, seja justamente o oposto que esteja acontecendo –, o filme não oferece lá muita coisa ao espectador. É um deleite momentâneo, mas um filme facilmente esquecível.

LES HERBES SÈCHES (dir. Nuri Bilge Ceylan)

O turco Nuri Bilge Ceylan voltou a trazer a Cannes um filme longo e contemplativo – seu “Winter Sleep”, laureado com a Palma de Ouro em 2014, é ainda hoje a produção de maior minutagem a levar o prêmio máximo na história do festival.

Seu novo filme, “Les Herbes Sèches”, se passa em uma cidade muito pequena no interior da Turquia, tendo como foco um colégio de pré-adolescentes. Samet trabalha ali como professor, mas sonha com o dia em que poderá ser transferido de cidade; acha que a província é bastante limitadora. No entanto, é um homem amargo e sem maiores expectativas diante de seu futuro; o mundo, em sua configuração moderna, o deixou assim.

Essa sensação apenas piora devido a sua rotina, já que ele dá aulas para uma turma de estudantes medíocres, com exceção de uma aluna, que além de brilhante é muito simpática. Um dia, no entanto, o professor recebe uma reclamação formal na diretoria e fica sabendo que foi sua melhor aluna quem o denunciou, dizendo que se sente desconfortável com tanta proximidade de seu tutor. Samet se irrita e não consegue entender a razão de ela ter tomado tal atitude, tornando-se cada vez mais agressivo e até violento.

O longa não trabalha com certezas ou verdades universais. É uma obra sobre as diferentes percepções das pessoas diante de certas situações, em que nada é “preto no branco”; a vida é uma profusão de tons de cinza, Ceylan nos diz.

E o filme em si é meio cinzento – a paisagem gelada da Turquia o torna áspero, como o cotidiano naquele vilarejo. Como a alma em desalento de Samet, que se tornou um homem rude e em estado de anomia. É um dos filmes mais duros do festival até o momento e, igualmente, um dos melhores a passarem pela Croisette nesta edição.    


BANEL & ADAMA (dir. Ramara-Toulaye Sy)

Uma das melhores surpresas desta edição de Cannes foi o longa “Banel & Adama”, estreia em longas-metragens da franco-senegalesa Ramata-Toulaye Sy. O filme talvez seja o que apresenta as imagens mais belas de todo o festival até o momento – a câmera de Sy registra não apenas paisagens naturais de inacreditável fotogenia do continente africano, mas sobretudo consegue rechear o seu longa de grande força mística.

A história se concentra em um casal apaixonado, a jovem Banel e seu namorado Adama, que vivem em um povoado no interior do Senegal. As leis locais são rígidas, mas os dois enamorados pertencem a uma outra geração, com uma cabeça mais arejada e disposta a romper com certas tradições de seu povo. Adama, por exemplo, deveria se tornar o líder da aldeia, mas ele recusa a honraria e prefere seguir uma vida simples, ao lado de Banel em uma casa afastada. Mas os anciãos não gostam da ideia e farão pressões sobre o casal para que ele se separe e que Adama siga o caminho que, segundo eles, o destino lhe reservou.

O longa tem uma energia ao mesmo tempo terrena e mágica, que vem das imagens registradas por Sy mas também por muitas das falas e histórias narradas pelos aldeões. Apesar de pressionada pelos mais velhos e mesmo por demonstrações da natureza de que Banel deve se separar de Adama, a jovem não se dá por satisfeita e rejeita a predestinação que lhe foi reservada, de mera procriadora; ela tem desejos e aspirações próprias. É uma guerreira incansável, cuja certeza de que sua sina é viver livre é mais intensa do que a força de qualquer tradição. “Banel & Adama” é um dos favoritos a receber o Caméra d’Or, prêmio de Cannes ao melhor filme de estreia a ser exibido no festival. 


FOUR DAUGHTERS (dir. Kaouther Ben Hania)

Outra africana, a tunisiana Kaouther Ben Hania, também apresentou um filme de premissa bastante promissora. “Four Daughters” mostra a própria diretora filmando a história de Olfa, uma mulher muçulmana mãe de quatro filhas, sendo que duas delas se meteram com grupos terroristas e, após deixarem a Tunísia, hoje se encontram presas na Líbia. Apesar de terem sido crianças liberadas, com os anos foram se tornando cada vez mais radicais dentro da cultura islâmica. Não usavam sequer o véu quando mais jovens, mas por fim não tiravam a burca por nada e acabaram se alistando para defender grupos extremistas no país vizinho.

O princípio da mescla entre documentário e ficção dá a impressão de que o filme alçará um belo vôo ao longo da narrativa. Olfa e suas duas filhas mais novas, que representam a si mesmas em grande parte das cenas, são expressivas e carismáticas. Mas a cineasta não consegue sustentar sua premissa, e o longa acaba se convertendo em uma semificção chorosa, cansativa, sobre uma mãe que perde as filhas para o radicalismo. Há algumas reflexões importantes ali, mas a sensação que fica é a de que a ideia certa foi parar nas mãos da cineasta errada. Não há, no fim das contas, nenhuma razão que justifique o procedimento de misturar os trechos documentais com os encenados.

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