MAY DECEMBER (dir. Todd Haynes)
Todd Haynes deve ter se inspirado em “Persona”, de Ingmar
Bergman, para o ponto de partida de “May December”, que apresentou em Cannes. No
filme sueco, uma atriz observa sua enfermeira e tenta se apropriar da história e
da personalidade dela, de modo a compor sua próxima personagem. Estrelado pelas
excelentes Julianne Moore e Natalie Portman, o filme de Haynes é um pouco
diferente, mas traz citações inclusive visuais ao longa bergmaniano.
Mostra uma ex-atriz que se envolveu em um escândalo sexual no
começo dos anos 1990, tendo sua carreira abreviada. Muitos anos depois, a
história dela está prestes a virar filme, então a atriz que vai interpretá-la
na tela buscar conviver com ex-estrela para se inspirar na composição da
personagem.
Esteticamente, o filme é Haynes em estado puro – o gosto
pelo camp se faz notar por todo o longa, sobretudo no uso da trilha sonora. A
relação ambígua entre a jovem atriz que tenta ruminar e pegar para si parte da vida
da atriz mais velha parece o material perfeito para as ambições estilísticas do
cineasta, que de fato faz um filme que deve agradar bastante quem aprecia sua
obra. Mas a verdade é que o filme é um bocado oco, e afora o prazer
deliciosamente fútil de vermos Portman achar que está sugando a aura de Moore –
quando, talvez, seja justamente o oposto que esteja acontecendo –, o filme não oferece
lá muita coisa ao espectador. É um deleite momentâneo, mas um filme facilmente
esquecível.
LES HERBES SÈCHES (dir. Nuri Bilge Ceylan)
O turco Nuri Bilge Ceylan voltou a trazer a Cannes um filme
longo e contemplativo – seu “Winter Sleep”, laureado com a Palma de Ouro em
2014, é ainda hoje a produção de maior minutagem a levar o prêmio máximo na
história do festival.
Seu novo filme, “Les Herbes Sèches”, se passa em uma cidade
muito pequena no interior da Turquia, tendo como foco um colégio de
pré-adolescentes. Samet trabalha ali como professor, mas sonha com o dia em que
poderá ser transferido de cidade; acha que a província é bastante limitadora.
No entanto, é um homem amargo e sem maiores expectativas diante de seu futuro;
o mundo, em sua configuração moderna, o deixou assim.
Essa sensação apenas piora devido a sua rotina, já que ele dá aulas para uma turma de estudantes medíocres, com exceção de uma aluna, que além de brilhante é muito simpática. Um dia, no entanto, o professor recebe uma reclamação formal na diretoria e fica sabendo que foi sua melhor aluna quem o denunciou, dizendo que se sente desconfortável com tanta proximidade de seu tutor. Samet se irrita e não consegue entender a razão de ela ter tomado tal atitude, tornando-se cada vez mais agressivo e até violento.
O longa não trabalha com certezas ou verdades universais. É
uma obra sobre as diferentes percepções das pessoas diante de certas situações,
em que nada é “preto no branco”; a vida é uma profusão de tons de cinza, Ceylan nos diz.
E o filme em si é meio cinzento – a paisagem gelada da Turquia o torna áspero, como o cotidiano naquele vilarejo. Como a alma em desalento de Samet, que se tornou um homem rude e em estado de anomia. É um dos filmes mais duros do festival até o momento e, igualmente, um dos melhores a passarem pela Croisette nesta edição.
BANEL & ADAMA (dir. Ramara-Toulaye Sy)
Uma das melhores surpresas desta edição de Cannes foi o
longa “Banel & Adama”, estreia em longas-metragens da franco-senegalesa Ramata-Toulaye
Sy. O filme talvez seja o que apresenta as imagens mais belas de todo o
festival até o momento – a câmera de Sy registra não apenas paisagens
naturais de inacreditável fotogenia do continente africano, mas sobretudo consegue
rechear o seu longa de grande força mística.
A história se concentra em um casal apaixonado, a jovem
Banel e seu namorado Adama, que vivem em um povoado no interior do Senegal. As
leis locais são rígidas, mas os dois enamorados pertencem a uma outra geração,
com uma cabeça mais arejada e disposta a romper com certas tradições de seu
povo. Adama, por exemplo, deveria se tornar o líder da aldeia, mas ele recusa a
honraria e prefere seguir uma vida simples, ao lado de Banel em uma casa
afastada. Mas os anciãos não gostam da ideia e farão pressões sobre o casal para que
ele se separe e que Adama siga o caminho que, segundo eles, o destino lhe
reservou.
O longa tem uma energia ao mesmo tempo terrena e mágica, que vem das imagens
registradas por Sy mas também por muitas das falas e histórias narradas pelos
aldeões. Apesar de pressionada pelos mais velhos e mesmo por demonstrações da
natureza de que Banel deve se separar de Adama, a jovem não se dá por
satisfeita e rejeita a predestinação que lhe foi reservada, de mera
procriadora; ela tem desejos e aspirações próprias. É uma guerreira incansável,
cuja certeza de que sua sina é viver livre é mais intensa do que a força de qualquer tradição. “Banel
& Adama” é um dos favoritos a receber o Caméra d’Or, prêmio de Cannes ao
melhor filme de estreia a ser exibido no festival.
FOUR DAUGHTERS (dir. Kaouther Ben Hania)
Outra africana, a tunisiana Kaouther Ben Hania, também
apresentou um filme de premissa bastante promissora. “Four Daughters” mostra a própria
diretora filmando a história de Olfa, uma mulher muçulmana mãe de quatro
filhas, sendo que duas delas se meteram com grupos terroristas e, após deixarem
a Tunísia, hoje se encontram presas na Líbia. Apesar de terem sido crianças
liberadas, com os anos foram se tornando cada vez mais radicais dentro da
cultura islâmica. Não usavam sequer o véu quando mais jovens, mas por fim não
tiravam a burca por nada e acabaram se alistando para defender grupos extremistas
no país vizinho.
O princípio da mescla entre documentário e ficção dá a impressão de que o filme alçará um belo vôo ao longo da narrativa. Olfa e suas duas filhas mais novas, que representam
a si mesmas em grande parte das cenas, são expressivas e carismáticas. Mas a cineasta não consegue
sustentar sua premissa, e o longa acaba se convertendo em uma semificção
chorosa, cansativa, sobre uma mãe que perde as filhas para o radicalismo. Há
algumas reflexões importantes ali, mas a sensação que fica é a de que a ideia
certa foi parar nas mãos da cineasta errada. Não há, no fim das contas, nenhuma razão que justifique o procedimento de misturar os trechos documentais com os encenados.
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