THE KILLERS OF THE FLOWER MOON (dir. Martin Scorsese)
Na sessão mais disputada até o momento de Cannes 2023
(provavelmente rivalizando apenas com a de “Indiana Jones”), “The Killers of
the Flower Moon”, o novo longa de Martin Scorsese, foi exibido fora de
competição na Croisette.
É a história de um vilarejo no Oeste americano, em que
indígenas descobriram petróleo na década de 1920 – e ficaram milionários de uma
hora para a outra. Mas os homens brancos, obviamente, não aceitaram com boa
vontade ficar de fora dessa barbada, e logo trataram de se apropriar daquela
fortuna, por meio de trapaças, toda sorte de abuso de poder e até de assassinatos.
Muita gente tem chamado o filme de “western”, mas conferir
tal qualificação ao longa é desconhecer por completo as convenções do gênero. Tem
muito mais parentesco com os filmes de gângster, e é nas cenas típicas desse
cinema em que o diretor mais demonstra se sentir em casa, em sua zona de
conforto.
Robert De Niro interpreta uma espécie de “padrinho” dos
indígenas da região, um sujeito de enorme poder econômico e político, que se
passa por protetor, mas que no fundo quer apenas se apropriar do dinheiro dos
nativos. Quando seu sobrinho Ernest (Leonardo DiCaprio) aparece ali para tentar
ganhar alguns trocados, o tio sugere que o rapaz se case com uma das indígenas
para se tornar seu herdeiro e canalizar para sua família (e para ele próprio)
aquela riqueza toda. Para isso, no entanto, vários outros familiares dela terão
que ser eliminados no meio do caminho, e é sobre isso que o filme se constrói.
O longa tem inegavelmente qualidades – a começar pelo enorme elenco de atores de etnia nativa norte-americana, o que é uma raridade. E, em muitas cenas, de fato podemos sentir o pulso daquele Scorsese do auge, com a fluidez das
movimentações de câmera que fizeram sua reputação e aquele gosto por narrar uma
história tão característico do diretor. Mas é um filme interminável (tem 3
horas e meia de duração), e o cineasta dá claras evidências de que não tinha a
menor ideia de como filmar grande parte das sequências, que em geral resultam
mornas, por vezes até desformatadas. Mas se não fazem jus às gigantescas
expectativas da cinefilia presente em Cannes, também estão longe de configurar um
fracasso. É apenas um Scorsese em meio tom.
RETRATOS FANTASMAS (dir. Kleber Mendonça Filho)
“Retratos Fantasmas” é um documentário que transborda amor:
pelo cinema, pela arte, pelo Recife – e, em uma esfera mais ampla, pelo Brasil.
Kleber Mendonça Filho utiliza suas memórias e seu vasto material de arquivo fílmico
e fotográfico pessoal para discorrer sobre sua cidade e os lugares da capital
pernambucana que mais lhe falam ao coração.
No primeiro trecho, destaca o apartamento de sua mãe – que o
cineasta, por décadas, utilizou como cenário para diversos de seus filmes,
entre curtas e longas. Na segundo, os cinemas de rua do Recife – grande parte
deles hoje inexistentes, tendo cedido espaço a lanchonetes, lojas ou igrejas
neopentecostais. Mas que marcaram e até definiram a existência de milhares de
pessoas que passaram por ali.
É um projeto notadamente pessoal do cineasta – um filme
“pequeno”. Mas que, em alguns instantes, tem uma amplitude inesperadamente maior
que talvez as ambições do longa imaginassem. Porque quando o cineasta mostra o
apartamento de sua mãe e toda a mudança pela qual seu entorno passou com o
avançar dos anos, ele fala bem mais do que de suas memórias ou da história de
sua cidade; fala também do Brasil como um todo, de tensões sociais, de
expectativas da classe média, da ganância imobiliária das elites. Esse primeiro
pedaço do longa é um recorte da história recente de um país, narrada de maneira
fluida, com uma montagem especialmente inspirada, inteligente. É o melhor
trecho do filme.
A segunda parte, que tem por foco os antigos cinemas
recifenses, não chega a ser tão efetiva, mas traz também alguns momentos
bastante ricos, com especial destaque para a observação sobre o que seria a
linguagem secreta dos letreiros de cinema – uma visão algo lúdica sobre a
maneira estranha e meio cômica de uma pretensa maneira meio cifrada de as salas de
cinema se comunicarem com os passantes da rua. Ali, o filme tem seu auge em
termos de inventividade.
A terceira parte é a menos feliz, com uma discussão sem
fôlego sobre os cinemas terem se tornado templos religiosos, e uma alegoria não
muito bem alinhavada de um motorista de táxi que consegue se tornar invisível.
Mas nada que comprometa esse belo filme de Mendonça Filho, uma obra leve e
lírica, mas também ao seu modo combativa, com o frescor e criatividade que fazem lembrar os
curtas-metragens que fizeram do cineasta um dos grandes nomes do nosso cinema
atual.
THE ZONE OF
INTEREST (dir. Jonathan Glazer)
O novo filme de Jonathan Glazer, “The Zone of Interest”, se
passa em Auschwitz nos anos 1940 – e apenas saber essa informação pode fazer um
espectador desistir de ver o longa. Afinal, quantas vezes a questão do
Holocausto já foi explorada (e de maneiras bem sensacionalistas) pelo cinema
desde que o mundo ficou sabendo das atrocidades nazistas durante a Segunda
Guerra?
Mas Glazer opta pelo que seria uma maneira “nova” de abordar
o tema: falar sobre campos de concentração sem mostrar diretamente um. A trama
acompanha a família de um oficial alemão que mora ao lado do campo de
Auschwitz. Suas inquietações são triviais: a esposa do militar se preocupa com
as flores, a limpeza da casa e o estilo de vida confortável que ela acaba de
conquistar, com a ascensão profissional do marido na guerra. Ela em nada se
importa com a tragédia humana que ocorre literalmente ali ao lado: o que a
perturba são questões fundamentalmente domésticas e que ameaçam os privilégios
burgueses recém-conquistados.
O “não mostrar” visualmente em um filme a violência e a
desgraça humana é uma escolha tanto estética quanto ética. Mas há uma armadilha
nessa atitude que é muitas vezes difícil de evitar: a propensão à
autocongratulação (o húngaro “O Filho de Saul”, de Laszlo Nemes, por exemplo,
tinha nisso seu maior problema). Como se o cineasta, por esse gesto artístico
grandioso, esperasse não só total adesão como sobretudo a reverência do
espectador, e “The Zone of Interest” parece criado sob essa égide.
O filme parte do pressuposto de que tem um conceito “inovador”
(embora ainda nos anos 1950 Resnais já tenha abordado o Holocausto sem
enfatizar a tragédia humana de modo sensacionalista, em “Noite e Neblina”), mas a passagem da ideia
para a representação se mostra frustrantemente pouco imaginativa. Sim, vemos a
família nazista em sua indiferença e frieza com a dor alheia, mas... até ai, já
não era exatamente isso que imaginávamos sobre essas pessoas? Apesar de ser um filme que se propõe
a mostrar Auschwitz a partir da (falta de) visão de um clã aliado a Hitler, em
essência o filme não traz novidade alguma ao que já se imaginava. E é bastante impreciso a respeito da questão da noção de "banalidade do mal", a que ele certamente quer aludir.
Poderia dar algum indício sobre como o
ser humano pode chegar ao ponto de se tornar insensível a uma catástrofe como a
que acontecia logo ao lado da tal família do filme – seria, aliás, um filme de
gigantesca atualidade se seguisse por esse caminho. Mas, como a família aparece no longa, apenas reforça o estereótipo que já tínhamos na mente bem
antes de a sessão do filme começar.
“The Zone of
Interest” está longe de ser um filme gratuito ou mal-intencionado, mas tampouco
é revolucionário como se julga.
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