segunda-feira, 22 de maio de 2023

Cannes 2023: Firebrand / Anatomie d'Une Chute / Les Feuilles Mortes

FIREBRAND (dir. Karim Aïnouz)

O cearense Karim Aïnouz estreou sua primeira produção internacional de alto orçamento na disputa pela Palma de Ouro em Cannes. “Firebrand” se passa na Inglaterra do século 16, durante os últimos instantes do reinado de Henrique 8º. O foco, porém, é em sua última esposa, Catarina Parr, mulher de extrema inteligência e esperteza, que tenta burlar o conservadorismo do marido às escondidas, financiando vozes religiosas alinhadas ao seu pensamento – ela era protestante fervorosa.

Parr escreveu livros e lutou para que a Bíblia fosse disseminada pela Inglaterra em língua inglesa, e não mais em latim – ela acreditava que isso tornaria o povo mais próximo aos ensinamentos religiosos. Mas Henrique não tinha a mesma visão e, traumatizado pelo que chamava de “traições” de suas sete esposas anteriores, suspeitava de que Catarina também estivesse lhe passando a perna, tanto em termos de ideias quanto em termos sexuais.

O filme mostra Catarina como uma feminista avant la lettre; ela, inclusive, é auxiliada pelo que hoje chamaríamos de sororidade de várias de suas aias e mesmo de uma filha de Henrique com outra de suas esposas, a jovem Elizabeth (a futura “Rainha Virgem”, que, na vida real, era rival de Catarina no campo afetivo: disputavam a preferência do mesmo nobre, Thomas Seymour). A união feminina, em “Firebrand”, faz a força, ainda que na Inglaterra daquela época as mulheres tivessem um papel social reduzidíssimo, servindo basicamente como procriadoras e objetos sexuais e afetivos de seus maridos.

Alicia Vikander tem uma atuação extremamente controlada e quase irretocável no papel de Catarina. Aïnouz conseguiu transformá-la fisicamente em uma figura que faz lembrar os retratos renascentistas de figuras reais inglesas; o trabalho de desenho de produção e de maquiagem, aliás, é bastante bem-sucedido. Jude Law surge irreconhecível como um Henrique 8º roliço e manco, de índole irritadiça – está muito bem no papel de uma criatura abominável, cheia de caprichos e ciúmes.

No longa, Henrique personifica o homem branco poderoso enquanto monstro, e Catarina é a mulher libertária das fantasias feministas dos anos 2020 (faltou apenas pertencer a alguma “minoria” étnica e sexual). O filme é quase que um monumento a Catarina Parr – ou, ao menos, um culto a sua personalidade; o roteiro trabalha abertamente com maniqueísmos.

A direção de Aïnouz, no entanto, consegue tornar o filme um produto com alguma distinção. No longa, ele obviamente não tem margem para injetar uma marca mais autoral como pode fazer em seus projetos brasileiros, mas ele consegue imprimir certa personalidade ao material, principalmente no uso que faz de alguns detalhes meio barrocos: as aves coloridas no castelo; a montagem que, de repente, se vale de jump cuts para causar uma pequena desestabilização do espectador. Apesar das limitações do roteiro, é um filme de fôlego, que marca uma boa estreia de Aïnouz em uma produção internacional, que se mostra muito menos diluída que os filmes de maior orçamento costumam ser para cineastas de língua não inglesa.


ANATOMIE D’UNE CHUTE (dir. Justine Trier)

Os filmes de tribunal parecem estar vivendo um momento especial na França. Além de “Saint Omer”, de Alice Diop, destaque no último Festival de Veneza, e “Le Procès Goldman”, de Cédric Kahn, que abriu a atual Quinzena dos Cineastas, “Anatomie d’une Chute” também tem em um julgamento o seu cerne. E é, igualmente, um filme de excepcional qualidade.

Mostra a história de uma escritora que vive com o marido e o filho pequeno em uma casa isolada, na neve. Um dia, o esposo é encontrado morto, após cair da janela do andar mais alto. A falta de clareza de como se deu essa morte acaba fazendo com que a própria romancista se torne uma das principais suspeitas, e o filme é uma investigação sobre aquela mulher – suas mentiras, seus temores, o que a fazem correr o risco de ir presa a partir de seu discurso diante do júri, tudo isso em uma narrativa extremamente bem conduzida, de um dos filmes de realização mais competentes deste festival.

Triet mereceria ao menos o prêmio de melhor direção, mas o mais provável é que o longa conquiste o troféu de melhor atuação feminina, pela formidável performance da alemã Sandra Hüller no papel da escritora – ela, aliás, também é a protagonista de “The Zone of Interest”, de Jonathan Glazer. Se o júri de Cannes optar por premiar Triet em vez de Hüller, Alicia Vikander tem grandes chances de ficar com o prêmio de atuação. Vai ser difícil, no entanto, que os jurados deixem passar essa oportunidade de laurear uma atriz de talento descomunal como a alemã, verdadeiramente em estado de graça nesse especialíssimo longa francês.


LES FEUILLES MORTES (dir. Aki Kaurismäki)

Ainda há espaço para a simplicidade no cinema, e o finlandês Aki Kaurismäki é a prova viva disso. Seu novo filme, “Les Feuilles Mortes”, tem um fiapo de dramaturgia: nada mais é do que a história de dois solitários que se encontram, se desencontram e, por fim, se arranjam (aliás, mencionar isso não configura spoiler: trata-se de um tipo de cinema que não trabalha com esse tipo de preocupação).

Não é que a filmografia de Kaurismäki, em si, não tenha sofisticação ou complexidade – estilisticamente, aliás, ocorre o contrário. O cineasta trabalha em uma chave estética que é muito mais complicada de tornar efetiva do que as dos filmes de natureza mais abertamente naturalista. Existe uma construção minuciosa por trás da aparente banalidade de seus filmes.

Desta vez, no entanto, Kaurismäki parece ter levado a estilização ao paroxismo: as atuações, os cenários, a cadência como as falas são dispostas pelo filme fazem de “Les Feuilles Mortes” algo próximo do cinema do sueco Roy Andersson. É quase um filme que permanece em um plano imaginado, e não materialmente construído.

Mas ele existe, sim, e está na tela, trazendo as preocupações kaurismakianas de hábito: o desemprego, o alcoolismo, as desavenças geopolíticas que levam à guerra. Mas existe desta vez uma paixão pelo cinema e pelas suas possibilidades que se sobressaem diante dos temas políticos – há pôsteres de filmes espalhados por todo o longa, que nos entregam algumas das influências sobre a obra do diretor, que vão de Godard a Bresson, passando por Visconti e David Lean. Aliás, de certa forma, seu novo filme é um “Desencontro” à moda finlandesa. E, assim como aquela pequena obra-prima leaniana, é um filme adorável -- e enorme em sua aparente “pequenez”.


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