FIREBRAND (dir. Karim Aïnouz)
O cearense Karim Aïnouz estreou sua primeira produção internacional
de alto orçamento na disputa pela Palma de Ouro em Cannes. “Firebrand” se passa
na Inglaterra do século 16, durante os últimos instantes do reinado de Henrique
8º. O foco, porém, é em sua última esposa, Catarina Parr, mulher de extrema
inteligência e esperteza, que tenta burlar o conservadorismo do marido às
escondidas, financiando vozes religiosas alinhadas ao seu pensamento – ela era
protestante fervorosa.
Parr escreveu livros e lutou para que a Bíblia fosse
disseminada pela Inglaterra em língua inglesa, e não mais em latim – ela acreditava
que isso tornaria o povo mais próximo aos ensinamentos religiosos. Mas Henrique
não tinha a mesma visão e, traumatizado pelo que chamava de “traições” de suas
sete esposas anteriores, suspeitava de que Catarina também estivesse lhe
passando a perna, tanto em termos de ideias quanto em termos sexuais.
O filme mostra Catarina como uma feminista avant la lettre;
ela, inclusive, é auxiliada pelo que hoje chamaríamos de sororidade de várias
de suas aias e mesmo de uma filha de Henrique com outra de suas esposas, a
jovem Elizabeth (a futura “Rainha Virgem”, que, na vida real, era rival de
Catarina no campo afetivo: disputavam a preferência do mesmo nobre, Thomas
Seymour). A união feminina, em “Firebrand”, faz a força, ainda que na
Inglaterra daquela época as mulheres tivessem um papel social reduzidíssimo,
servindo basicamente como procriadoras e objetos sexuais e afetivos de seus
maridos.
Alicia Vikander tem uma atuação extremamente controlada e
quase irretocável no papel de Catarina. Aïnouz conseguiu transformá-la
fisicamente em uma figura que faz lembrar os retratos renascentistas de figuras
reais inglesas; o trabalho de desenho de produção e de maquiagem, aliás, é
bastante bem-sucedido. Jude Law surge irreconhecível como um Henrique 8º roliço
e manco, de índole irritadiça – está muito bem no papel de uma criatura
abominável, cheia de caprichos e ciúmes.
No longa, Henrique personifica o homem branco poderoso
enquanto monstro, e Catarina é a mulher libertária das fantasias feministas
dos anos 2020 (faltou apenas pertencer a alguma “minoria” étnica e sexual). O
filme é quase que um monumento a Catarina Parr – ou, ao menos, um culto a sua personalidade;
o roteiro trabalha abertamente com maniqueísmos.
A direção de Aïnouz, no entanto, consegue tornar o filme um
produto com alguma distinção. No longa, ele obviamente não tem margem para injetar
uma marca mais autoral como pode fazer em seus projetos brasileiros, mas ele
consegue imprimir certa personalidade ao material, principalmente no uso que
faz de alguns detalhes meio barrocos: as aves coloridas no castelo; a montagem
que, de repente, se vale de jump cuts para causar uma pequena desestabilização
do espectador. Apesar das limitações do roteiro, é um filme de fôlego, que
marca uma boa estreia de Aïnouz em uma produção internacional, que se mostra muito
menos diluída que os filmes de maior orçamento costumam ser para cineastas de
língua não inglesa.
ANATOMIE D’UNE
CHUTE (dir. Justine Trier)
Os filmes de tribunal parecem estar vivendo um momento
especial na França. Além de “Saint Omer”, de Alice Diop, destaque no último Festival
de Veneza, e “Le Procès Goldman”, de Cédric Kahn, que abriu a atual Quinzena
dos Cineastas, “Anatomie d’une Chute” também tem em um julgamento o seu cerne.
E é, igualmente, um filme de excepcional qualidade.
Mostra a história de uma escritora que vive com o marido e o
filho pequeno em uma casa isolada, na neve. Um dia, o esposo é encontrado
morto, após cair da janela do andar mais alto. A falta de clareza de como se
deu essa morte acaba fazendo com que a própria romancista se torne uma das
principais suspeitas, e o filme é uma investigação sobre aquela mulher – suas mentiras,
seus temores, o que a fazem correr o risco de ir presa a partir de seu discurso
diante do júri, tudo isso em uma narrativa extremamente bem conduzida, de um dos
filmes de realização mais competentes deste festival.
Triet mereceria ao menos o prêmio de melhor direção, mas o
mais provável é que o longa conquiste o troféu de melhor atuação feminina, pela
formidável performance da alemã Sandra Hüller no papel da escritora – ela,
aliás, também é a protagonista de “The Zone of Interest”, de Jonathan Glazer.
Se o júri de Cannes optar por premiar Triet em vez de Hüller, Alicia Vikander
tem grandes chances de ficar com o prêmio de atuação. Vai ser difícil, no
entanto, que os jurados deixem passar essa oportunidade de laurear uma atriz de
talento descomunal como a alemã, verdadeiramente em estado de graça nesse especialíssimo
longa francês.
LES FEUILLES MORTES (dir. Aki Kaurismäki)
Ainda há espaço para a simplicidade no cinema, e o finlandês
Aki Kaurismäki é a prova viva disso. Seu novo filme, “Les Feuilles Mortes”, tem
um fiapo de dramaturgia: nada mais é do que a história de dois solitários que
se encontram, se desencontram e, por fim, se arranjam (aliás, mencionar isso não configura
spoiler: trata-se de um tipo de cinema que não trabalha com esse tipo de preocupação).
Não é que a filmografia de Kaurismäki, em si, não tenha
sofisticação ou complexidade – estilisticamente, aliás, ocorre o contrário. O
cineasta trabalha em uma chave estética que é muito mais complicada de
tornar efetiva do que as dos filmes de natureza mais abertamente naturalista. Existe
uma construção minuciosa por trás da aparente banalidade de seus filmes.
Desta vez, no entanto, Kaurismäki parece ter levado a
estilização ao paroxismo: as atuações, os cenários, a cadência como as falas
são dispostas pelo filme fazem de “Les Feuilles Mortes” algo próximo do cinema do
sueco Roy Andersson. É quase um filme que permanece em um plano imaginado, e não materialmente construído.
Mas ele existe, sim, e está na tela, trazendo as preocupações
kaurismakianas de hábito: o desemprego, o alcoolismo, as desavenças
geopolíticas que levam à guerra. Mas existe desta vez uma paixão pelo cinema e
pelas suas possibilidades que se sobressaem diante dos temas políticos – há pôsteres
de filmes espalhados por todo o longa, que nos entregam algumas das influências
sobre a obra do diretor, que vão de Godard a Bresson, passando por Visconti e David Lean. Aliás,
de certa forma, seu novo filme é um “Desencontro” à moda finlandesa. E, assim
como aquela pequena obra-prima leaniana, é um filme adorável -- e enorme em sua aparente “pequenez”.
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