sexta-feira, 24 de junho de 2022

Festival de Veneza 2021: Spencer

 O texto abaixo foi publicado na "Folha de S.Paulo", durante minha cobertura do Festival de Veneza de 2021. O link do original é este.

Kristen Stewart é Lady Di em "Spencer"

A trajetória de Kristen Stewart é curiosa. Por anos foi uma atriz-mirim esforçada, até eficiente, em filmes como “O Quarto do Pânico”, de 2002 (em que viveu a filha de Jodie Foster). Mas com a adolescência, parecia um caso perdido: sua performance na franquia “Crepúsculo” é quase um manual do que uma atriz não deve fazer em cena. 

Mas alguma coisa inexplicável aconteceu depois que o francês Olivier Assayas a dirigiu em “Acima das Nuvens”, de 2014, e desde então Stewart não apenas tem se mostrado uma atriz de grande talento como também uma das melhores de sua geração. Seu último trabalho, em “Spencer”, exibido nesta quinta (dia 3) no Festival de Veneza, é apenas mais uma prova do quanto sua capacidade de transformação em cena é elástica. Ela interpreta a princesa Diana de Gales, em um filme que não se preocupa muito com fatos históricos. 

Desde o início, somos avisados por um letreiro que o longa se trata de “uma fábula a partir de uma história trágica”. O enredo se passa no intervalo de três dias, nos festejos de um Natal imaginário, em um castelo de campo da família real inglesa, quando Lady Di e o príncipe Charles já não dormiam juntos. Dizer que ela comparece ao evento a contragosto é um eufemismo; na verdade, enfrentar aqueles três dias é para Diana um martírio. 

A atriz capricha no sotaque e utiliza a favor da personagem sua própria disposição natural a entortar a coluna – Di também não era exatamente uma mulher de postura ereta. Fisicamente, Stewart se parece bastante com Naomi Watts quando caracterizada para viver a princesa no mal-sucedido “Diana”, de 2013, mas em nenhum segundo o espectador duvida de que ela é Di, em sua aflição eterna e sua ânsia por liberdade. “Quanto mais olhava [imagens de] Diana, mais via o quanto ela tinha mistério e magnetismo, que são atributos essenciais a um filme”, explicou Pablo Larraín, diretor do filme, à imprensa em Veneza. “Kristen tem esse mistério, que não se compreende. E acho interessante quando o cinema faz isso: permite ao público completar esse processo de compreensão.” 

Stewart disse que sempre se impressionou com a “energia penetrante” de Diana. “Mas uma coisa triste nela era que havia esta coisa de garota normal, mas ela era muito isolada, sozinha. Queria desesperadamente ter uma ligação com as outras pessoas.” Larraín opta por uma fotografia (da francesa Claire Mathon) em tons róseos e perolados, que suavizam a feiura cinzenta da paisagem campestre inglesa. É como se o diretor quisesse reforçar a ideia de que é um mundo de faz de conta – como se fosse contar uma história de princesa presa em um castelo. 

E o filme é basicamente isso: a exposição do quanto a família real é opressora, o quanto vigiava Di o tempo todo, o quanto a obrigou a tomar pequenas decisões (como que roupa vai vestir), que, para Diana, eram uma enorme violência. Entre crises de bulimia e uma constante vontade de fugir, o filme a apresenta como uma mulher altamente infeliz. Ou seja: mostra o que todo mundo sabia – ou, ao menos, imaginava – sobre a complicada relação entre Diana e a coroa britânica. E o filme fica quase toda sua duração repetindo, cena atrás de cena, essa mesma ideia, de que Di era uma mulher comum, enjaulada pela tradição real. Não traz absolutamente nada de novo sobre ela. 

E o roteiro, de Steven Knight, tem algumas ideias especialmente ruins, como colocar Diana conversando com uma velha jaqueta, ou interagindo com o fantasma de Ana Bolena, ou dizendo a um pássaro perdido coisas do tipo: “Você deveria estar voando livre por aí”. Não é um material que condiz com a inteligência de Larraín, que até então nunca havia dado um passo em falso na carreira – seu último longa, “Ema”, não foi exatamente um êxito, mas ao menos ali ele estava tateando algo novo e por vezes chegou muito perto de acertar. 

Há cinco anos, o chileno parecia uma escolha altamente inadequada para dirigir um filme sobre Jacqueline Kennedy, mas surpreendeu meio mundo quando fez de “Jackie” um dos longas mais estimulantes de 2016. A proeza abriu-lhe portas, mas talvez tenha lhe dado autoconfiança em excesso, a ponto de achar que um roteiro tão limitado como o de “Spencer” pudesse ser salvo na direção. A Diana do filme sofre por não aguentar a força da tradição real, mas ela não tem lá muita coisa a oferecer como outra opção de vida. Ela gosta de cultura pop e de fast food, o que é uma visão que poderia aproximá-la ainda mais do público, que sempre a teve como um ídolo. Mas por vezes ela parece mais uma garota fútil, por vezes birrenta, do que a tal “mulher misteriosa” que Larraín diz ver na Diana verdadeira. 

Já na reta final, porém, há uma pequena cena que chacoalha o filme e quase o retira do estado vegetativo, com uma revelação feita pela camareira vivida pela sempre excelente Sally Hawkins. O filme ganha um elemento transgressor, que liberta “Spencer” da prostração afetada em que seguia até então, mas o problema é que esse desvio surge tarde demais. A impressão que fica é mesmo a de um filme sem novidades, que não faz jus aos talentos envolvidos e nem à personagem que o inspirou.




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