O texto abaixo foi publicado na "Folha de S.Paulo", durante minha cobertura do Festival de Veneza de 2021. O link do original é este.
Oscar Isaac, excelente, em 'The Card Counter" |
O americano Paul Schrader não deve ter lembranças muito positivas de sua última participação no Festival de Veneza, em 2017. Afinal, seu “Fé Corrompida”, talvez o melhor filme daquela competição, foi solenemente ignorado pelo júri, a despeito da boa recepção crítica. Desta vez, porém, o evento tem uma ótima chance de se redimir, com pelo menos algum prêmio – quiçá o Leão de Ouro – ao novo filme do cineasta, “The Card Counter”, que não fica muito atrás do anterior em termos de excelência.
É a história de Bill (vivido por Oscar Isaac), um ex-torturador que cometeu crimes inenarráveis em Abu Ghraib, a vergonhosa prisão no Iraque onde militares americanos tratavam os internos com desumanidade e truculência – a história se tornou um escândalo internacional, quando imagens degradantes foram divulgadas, em 2004.
Bill foi reconhecido, julgado e passou quase dez anos na cadeia, onde teve tempo e oportunidade para refletir sobre seus atos passados, arrepender-se e decidir não mais voltar àquela época de sua vida. Depois que deixa a prisão, muda de nome e passa a levar uma rotina itinerante, pulando de hotel em hotel em cidades com cassinos, onde passa seus dias jogando cartas.
Não se trata, porém, de um viciado em jogo ou de alguém atrás de fortuna. Sua intenção é apenas conseguir dinheiro o suficiente para manter esse seu estilo de vida e, assim, continuar fugindo do mundo do lado de fora. Dois encontros, porém, o farão alterar seu dia a dia: primeiro, com La Linda, uma espécie de olheira de jogadores habilidosos pelos cassinos americanos, que ela tenta agenciar – e, assim, ficar com uma parte dos ganhos nas mesas de jogos. O segundo é com o estranho Cirk, um jovem cujo pai também foi torturador em Abu Ghraib e que acabou se suicidando após ser condenado. Ele propõe a Bill que o ajude a se vingar de John Gordo, o chefe das torturas no Iraque que, por não aparecer nos vídeos de 2004, acabou saindo ileso após o escândalo.
O filme é quase todo em ambientes internos, invariavelmente inóspitos, impessoais: celas de presídio, quartos de hotel de beira de estrada, cassinos cafonas e barulhentos. De fato, são cenários que compõem um mundo paralelo ao do lado de fora. A trilha sonora eletrônica, quase onipresente, reforça a sensação de frieza e agrega uma certa tensão, que existirá por todo o filme.
Oscar Isaac tem provavelmente a melhor atuação de sua carreira: sabe trabalhar toda a inquietação mental e emocional de Bill, personagem de uma enorme complexidade. “Os papeis que faço geralmente têm alguma coisa meio estranha, mas este é o mais misterioso”, disse o ator, em conversa com a imprensa de Veneza. “Enquanto eu lia o roteiro, nunca sabia muito bem quem ele era, para onde iria. Eu achava que ia para um lugar, mas de repente ele aparecia em outra direção”, revelou, descrevendo a reação que a maioria do público há de ter ao assistir ao filme.
Como “Fé Corrompida” e diversos outros filmes de Schrader, existe em Bill uma angústia existencial bastante profunda – e essa insatisfação surge para o público em uma narrativa em voice over, que interliga as dimensões filosóficas e místicas do personagem. Como Travis Bickle, personagem que Schrader criou para o roteiro de “Taxi Driver”, Bill tem um aspecto messiânico, que o faz encarar a salvação de quem ele julga vulnerável como uma missão.
Aliás, um dos produtores do longa é Martin Scorsese, que dirigiu o roteiro de Schrader em “Taxi Driver”. “Trabalhamos em alguns filmes juntos, mas depois nos separamos. Quando se trabalha com Martin, sempre tem que haver apenas um diretor – e, no caso, é sempre ele”, disse Schrader, bem-humorado, à imprensa. “Mas aí, agora já no fim de nossas vidas, achei que seria legal voltar a dirigirmos o mesmo ‘carro’ juntos.” O reencontro, como o Lido pode testemunhar, foi uma excelente ideia.
O Ataque dos cães
A neozelandesa Jane Campion também levou a Veneza um filme de sensações fortes. “The Power of the Dog” narra a história de dois irmãos muito diferentes, no Velho Oeste americano. Um deles, vivido por Jesse Plemmons, é um sujeito sensível e bonachão, que se apaixona pela dona de um restaurante local, vivida por Kirsten Dunst. Já o outro, papel de Benedict Cumberbatch, é um grosseirão, cujos comportamentos machistas e intimidadores revelam que no fundo, ele possui uma grande vulnerabilidade.
O longa tem o que seria uma visão feminina sobre o Velho Oeste, mas a verdade é que o filme não é nem tão Oeste (foi filmado na Nova Zelândia) e nem tão velho assim. Os temas são os do mundo de hoje: homofobia, alcoolismo, bullying, repressão sexual, o que nos leva a pensar o quanto nossa sociedade não evoluiu muita coisa desde o início do século passado.
Campion é uma cineasta do sensório, e aqui ela embute seu filme de energia sexual não canalizada, que vez por outra se manifestam de maneira inesperada – às vezes, parecem escapar do controle da cineasta. Na primeira metade, o filme flui de maneira mais acadêmica, mas emocionalmente eficaz – as atuações de Dunst e Plemmons se destacam. Mas a partir do meio, é Cumberbatch quem brilha, mas o filme vai se tornando cada vez mais obtuso, e nunca é possível acompanhar exatamente o que Campion pretendia com algumas cenas. Talvez seja uma imprecisão proposital, mas que inevitavelmente dificulta uma compreensão geral das verdadeiras intenções do longa.
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