O texto abaixo foi publicado na "Folha de S.Paulo", durante minha cobertura do Festival de Veneza de 2021. O link do original é este.
Cena de "O Acontecimento" (L'Événement) |
A maternidade foi o grande tema da 78ª edição do Festival de Veneza. Em tempos de um planeta apavorado com o coronavírus, governos opressores e a natureza em destruição, pode soar estranho – e até decepcionante – que a arte se volte a uma questão que não está na linha de frente das grandes preocupações da humanidade no momento.
Mas levando em conta a abordagem que o tema “ser mãe” recebeu nos filmes, fica mais claro o quanto, no fundo, o assunto tem a ver com o atual estado de coisas. Porque uma das grandes discussões envolvendo as mães nesses filmes é, ainda que indiretamente, a dimensão ética de dar vida a um ser humano em um planeta tão complicado. O quão justo isso é, seja para quem vem ao mundo (e tem um futuro pouco promissor pela frente), seja para quem já está nele (e mal dá conta de cuidar de si, quem dirá de si e de um bebê)?
Foi assim com o vencedor do Leão de Ouro, o pungente “L’Évenément”, da franco-libanesa Audrey Diwan, sobre uma garota francesa que tenta fazer um aborto nos anos 1960 – muito embora, a trama pudesse se passar hoje, na maioria dos países. A protagonista aceita resignadamente a própria recusa a esse papel de geradora de vida, apesar de todas as dificuldades que encontra.
O foco do filme é, sim, acima de tudo na liberdade de uma mulher não querer ter um filho, de ter o poder sobre seu próprio corpo. Mas por tabela fala também da compreensão do quanto pode ser terrível colocar na Terra mais uma criatura perdida, assim como são seus pais e eram seus avós.
A maternidade já foi sagrada no cinema, mas hoje em dia, não há mais espaço para heroísmo. Isso se percebe em “Madres Paralelas”, que fala de duas mães “problemáticas”, para usar o termo do próprio diretor, Pedro Almodóvar – aliás, injustamente ignorado pelo júri. Uma delas é a personagem vivida por Penélope Cruz, merecidamente eleita a melhor atriz em Veneza. Naquela que é provavelmente a melhor performance de sua carreira, a espanhola vive uma mulher que opta por ter uma filha, mas que sente na pele uma série de sensações ambivalentes diante da condição materna, sobretudo quando sua própria maternidade é colocada em questão.
São sensações não são muito distantes das vividas por Leda, a protagonista de “The Lost Daughter”, estreia na direção da atriz Maggie Gyllenhaal, que lhe valeu um discutível prêmio de melhor roteiro. Adaptação do formidável livro “A Filha Perdida”, de Elena Ferrante, o filme consegue trazer para a tela só parcialmente as fragilidades e dúvidas de uma mulher de férias, que relembra sua relação com as filhas ao observar, diariamente em uma praia, uma jovem cuidando de sua bebê. Muitas das hesitações de Leda permanecem no livro, mas grande parte de sua inquietação de fato está lá, impregnada na personagem de Olivia Colman.
Embora alguns longas tenham sido rodado já após o surgimento do coronavírus, viu-se em Veneza que ainda não deu tempo de os cineastas refletirem sobre o mundo pandêmico e suas implicações: a covid passou longe dos filmes exibidos. A temática mais diretamente política surgiu forte, sobretudo nas obras do leste europeu. A presença massiva da violência no polonês “Leave No Traces”, de Jan P. Matuszynski, do ucraniano “Reflection”, de Valentyn Vasyanovych, e do russo “Captain Volkonogov Escaped”, de Natalya Merkulova e Alexey Chupov, não é algo à toa: mostram as escaras de países que ainda não se resolveram com o passado ditatorial socialista. Mas nenhum deles foi premiado pelo júri presidido por Bong Joon-ho, que parecia mais empenhado em questões intimistas, como as exploradas por “The Power of the Dog”, que valeu a Jane Campion o prêmio de melhor direção.
O único filme a tratar de uma situação política específica de um país a levar um troféu foi o filipino “On the Job: The Missing 8”, lembrado com o prêmio de melhor ator, para a enérgica performance de John Arcilla. Os dramas humanos do belo “A Mão de Deus”, do italiano Paolo Sorrentino, estavam mais próximos da sensibilidade dos jurados. O longa, que reconstitui a adolescência do diretor nos anos 1980, na Nápoles da Camorra e de Maradona, levou o Grande Prêmio do Júri e o troféu Marcello Mastroianni, reservado a atores em início de carreira – o premiado foi o promissor Filippo Scotti, que interpreta o alter ego de Sorrentino na tela.
É bom ver entre os premiados um filme como “Il Buco”, do também italiano Michelangelo Frammartino, que muitos tendem a não compreender. Em sua inação – oscila entre imagens de um grupo de espeleólogos estudando uma caverna e um velho camponês cuidando de seus animais – o vencedor do Prêmio Especial do Júri faz uma constante proposição para que o espectador olhe de maneira diferente as imagens que estão diante de si; elas sempre têm algo mais a oferecer do que uma observação rápida e rotineira costuma reservar.
O prêmio foi um grande aceno à experimentação estilística. Mas se o júri estava tão empenhado assim em premiar grandes iniciativas estéticas, como pode ignorar o já mencionado “Captain Volkonogov Escaped”, talvez o projeto mais inovador em termos formais a surgir no Lido neste ano? Pior ainda: como deixaram passar um filme brilhante como “The Card Counter”, de Paul Schrader, que une o rigor estético ao intimismo que os jurados tanto parecem adorar? Menos mal que o júri não se deixou levar pelas lamúrias da Lady Di decepcionante de Pablo Larraín, em “Spencer”, ou nas esquisitices de Ana Lily Amirpour e seu “Mona Lisa and the Blood Moon”. E o que é melhor: não se importou tanto em, com seus prêmios, dar a largada para a corrida do Oscar, como premiações de anos anteriores vinham fazendo. A premiação de Veneza, desta vez, pareceu mais voltada para si mesma.
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