O texto abaixo foi publicado na "Folha de S.Paulo". O link do original é este
Cena de "Seguindo Todos os Protocolos" |
Não, a pandemia ainda não acabou. Mas já temos alguma distância histórica para ver com certa incredulidade – e, em alguns casos, até achar divertida – nossa desorientação diante do início do alastramento da covid-19 pelo mundo. Rir, mesmo que um riso nervoso, daquelas nossas estabanadas práticas preventivas iniciais de higiene diante de outras pessoas, lugares ou mesmo produtos industrializados – naquele começo de “novo normal”.
“Seguindo Todos os Protocolos”, do pernambucano Fábio Leal, tem por foco o período do ápice do medo do vírus, com vacinas ainda raras, quando as pessoas confinadas não sabiam por quanto tempo aquele inferno continuaria. Ao zelo excessivo na hora de desinfectar embalagens de itens de supermercado, somava-se o pânico de sair de casa e de (talvez) a máscara não estar apertada o suficiente. Sem contar a ânsia por encontrar maneiras de não enlouquecer sozinho em casa.
Várias dessas práticas aparecem no filme, extraindo do espectador de hoje reações distintas e simultâneas. De um lado, tudo nos parece familiar – afinal, faz muito pouco tempo que passamos por aquelas situações. Por outro, o filme de Leal se impõe enquanto narrativa de modo matreiramente equilibrado, ao mesmo tempo risível e asfixiante – existe algo na feitura do longa que nos faz ter a impressão de que não estamos diante de algo que ocorreu há meses atrás; parece antes uma distopia cômica, cínica e improvável, elaborada por um cineasta de ideias perversamente inventivas.
O filme mostra Chico, um rapaz de classe média, que mora sozinho em seu apartamento e que está em desespero por falta de sexo durante o isolamento social. Ele tenta resolver esse problema de maneira segura: primeiro, pela pornografia; depois, por um relacionamento virtual. Obviamente, no entanto, não são a mesma coisa que contato corporal.
Ele decide, então, pesquisar formas seguras de ter um orgasmo na presença física de alguém, e segue literalmente “todos os protocolos” recomendados. Primeiro, com um ex-amante, que na pandemia se proletarizou e teve que virar entregador de comida a domicílio. E depois, com um médico, categoria profissional que, aos olhos de Chico, tende a se prevenir melhor contra o coronavírus.
Chico é acima de tudo um pragmático – não se permite sequer deixar passar batido o elogio exagerado de um parceiro, na empolgação pós-coito; corta o clima e rejeita o enaltecimento. Mas há um certo espírito fantasista no personagem (que se revela sobretudo no final), e sua compulsão por não se contaminar revela que, mesmo passando por uma depressão, ele traz em si uma “pulsão de vida” talvez ainda mais obsessiva.
Poderia ser um personagem um bocado chato, em seu rigor consigo e com os outros, mas a forma como Leal converte tudo isso em humor o redime; aproxima-o do espectador, fazendo-o se identificar.
O ponto alto do filme é a cena de sexo entre Chico e o entregador, que começa hilária, pelo exagero de medidas preventivas, mas que depois ganha uma textura inusitadamente erótica, com cortinas e máscaras impedindo o toque direto corpo-a-corpo – e, por isso mesmo, tornando o desejo ainda mais intenso.
Os atores contribuem fortemente para o êxito do longa. O também cineasta Marcus Curvelo, que dá vida ao amante virtual de Chico, talvez exagere um pouco na gaiatice de seu personagem, mas é graças ao contraponto entre sua propensão à malandragem e a sisudez do protagonista que suas cenas sejam tão engraçadas. Paulo César Freire, por sua vez, tem uma saudável contenção e um suave romantismo no papel do entregador. E, na pele do médico levemente cafajeste, Lucas Drummond atinge todas as nuances necessárias – e quando ele tira a máscara, arreganha os dentes e ri para o protagonista, mostra que tem o sorriso mais fotogênico a surgir no cinema nacional desde que Bárbara Colen nos apresentou ao dela, na primeira parte de “Aquarius”.
Mas o grande destaque é de fato o próprio Leal. Na pele do hipocondríaco Chico, ele sabe aproveitar a própria corpulência e o timing cômico para elevar o potencial humorístico de cada cena – extrapolando, inclusive, o que de específico tem a pandemia (a forma despudoradamente satírica como ele aborda certas questões identitárias dão ao filme um ar adicional de ousadia e sarcasmo). Mostra o próprio corpo fora do padrão sem a menor castidade – se há nisso um certo narcisismo, há também uma posição política, de apresentar uma fisicalidade não normativa como desejosa e merecedora de prazer, como qualquer outra.
Leal faz um filme sobre solidão, sobre a internet como salvação das relações interpessoais, sobre visões distintas a respeito do nível de rigor para seguir regras. Também fala de medo do futuro incerto, do recurso aos antidepressivos, da recorrência ao subemprego gerada pela crise pandêmica. E, é claro, da tragédia das mortes no país, com o noticiário despejando sobre nós a indiferença presidencial diante de todo o caos. Em sua breve minutagem (dura pouco mais de uma hora), seu filme consegue ser o mais completo feito até o momento sobre a pandemia.
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