quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Crítica: "República"

 (dir. Grace Passô, 2020)



É sempre meio incômodo ouvir ou ler por aí que Grace Passô é a “Viola Davis brasileira”. Não é: Viola é uma ótima atriz, mas Grace é melhor ainda. Maior que ela, em atividade no mundo, dificilmente há alguém.

Em “República”, curta que Passô protagoniza e dirige, ela surge grande parte do tempo atuando sozinha, apenas falando ao celular. Cenas com monólogos de uma mulher ao telefone sempre de alguma forma fazem pensar em “A Voz Humana”, texto de Jean Cocteau que é quase um clichê na carreira das grandes atrizes que querem mostrar até que ponto seu talento pode ir. No caso de “A Voz”, é uma conversa entre uma mulher e o amante que acaba de deixá-la, mas embora “República” não tenha absolutamente nenhuma conexão com o intimismo romântico e melodramático do universo do texto de Cocteau, traz um desafio de mesma natureza à atriz principal: exige um grande repertório de expressões faciais e uma prodigiosa capacidade de alternar nuances em uma mesma face – e isso, sem um outro ator em cena para estimular as reações, pode ser algo dificílimo.

O texto de Passô é bem mais curto, e embora isso lhe traga a conveniência de ter menos falas para memorizar, tem também um lado desvantajoso: o material-base lhe oferece muito menos substrato para elaborar suas próprias emoções em cena. Ela precisa buscar dentro de si o gatilho para suas reações.

 “República” mostra uma mulher (sem nome, mas que vamos chamar aqui de Grace) falando com duas pessoas ao celular em momentos distintos: a primeira interlocutora é provavelmente uma amiga; a segunda é a mãe da protagonista. O assunto é tão simples quanto inusitado: um xamã descobre que “o Brasil é um sonho”. Nada da experiência que se tem do país é real; a qualquer momento, seja lá quem estiver “sonhando” o Brasil pode acordar – e, assim, tudo o que nós vivemos e conhecemos sobre nossa nação pode acabar, de uma hora para a outra.

“Graças a Deus!”, diz Grace para si mesma, ao descobrir a verdade, e ela fala isso com uma expressão de alívio tão genuína que o espectador sente uma melancolia algo invejosa por não poder dizer o mesmo. Afinal, quem está vivo e minimamente informado no Brasil de 2020, em tempos em que uma pandemia imprevisível e um governo desumano se unem para tornar a experiência brasileira uma catástrofe, não seria ruim que tudo não passasse mesmo de um “sonho”. Que, aliás, é um termo que não faz lá muita justiça a nossa realidade: teria sido melhor que Passô usasse a palavra “pesadelo”.

O filme é extremamente habilidoso como peça de suspense ou mesmo de horror. Há uma atmosfera tenebrosa rondado a personagem, desde as cenas iniciais, abstratas de um sonho, com som e imagens de fogo e uma cantiga que remete a algum culto africano (na verdade, é um bullerengue colombiano, gênero musical cantado apenas por mulheres). Grace está isolada em sua casa, e logo que acorda com o toque do celular, o filme já aborda questões específicas da quarentena: em sua primeira conversa, Grace acha estar diante de mais uma (das tantas) fake news tipicamente pandêmicas. Do outro lado da linha, alguém lhe apresenta a aparentemente estapafúrdia história do xamã.

“Você acredita em tudo!”, Grace exclama impaciente a essa sua primeira interlocutora, chamada Anastácia – talvez uma escolha de nome aleatória, mas provavelmente uma alusão à personagem histórica de mesmo nome: a mulher negra escravizada no Brasil do século 18, que se tornou muito conhecida tanto pelo intenso sofrimento por que passou quanto pela sua capacidade de operar milagres.

E a Anastácia do filme opera um: é a mensageira daquilo que, hoje, uma parte gigantesca da população brasileira adoraria ouvir: nada disso é real. Quando quem “sonha o Brasil” acordar, tudo estará acabado – e seja qual for a realidade, há de ser melhor do que isto daqui.

Grace olha pela janela e vê o que parece ser um mendigo em surto, que passa enquanto cães não param de latir. A cidade é decadente – os créditos informam que o curta foi filmado na República São Paulo, e apesar de certamente se tratar da região da praça da República, no centro paulistano, a falta de vírgula sugere uma brincadeira com São Paulo ser em si quase que um país isolado. Tudo parece em ruínas, mas pela barulheira tem-se a impressão de que, quando Grace está na janela, outras pessoas já estavam cientes da visão do xamã – inclusive o mendigo –, e o país vive um transe coletivo.

Essa atmosfera de pesadelo tem algo de distópico e absurdista, mas é interrompida após o fim da segunda conversa de Grace pelo telefone, quando ela olha para a câmera, e, ali descobrimos que aquilo tudo era apenas uma filmagem. O curta entra em seu segundo “ato”, agora com Grace trocando algumas palavras sobre a cena com sua cinegrafista (a quem não vemos), que logo vai beber água na cozinha (com a câmera ligada).

Na cozinha, a cinegrafista apoia a câmera em uma mesa e vai se servir de água – o foco da lente fica por alguns segundos sobre uma fotografia decorativa, que mostra os expressivos olhos de uma mulher, que poderiam ser de Grace, mas que não conseguimos identificar ao certo. Há algo de tão perturbador nesse olhar que, mesmo sem saber o motivo, o espectador se sente confrontado por aquela mirada, talvez até envergonhado. É um olhar a priori "neutro", mas que, naquele contexto, surge terrivelmente acusatório. Mas do que nos acusa? Temos alguma culpa de o Brasil ser esse pesadelo que ele é? Ou os olhos nos repreendem por apenas sermos inconvenientes testemunhas de que o tal “o Brasil é um sonho” era somente... um sonho, um devaneio encenado em um curta-metragem feito na quarentena?

O filme talvez devesse terminar ali, mas ainda nos reserva um terceiro “ato” que ainda é mais assombroso: de repente, o mendigo da rua aparece na casa de Grace e vocifera: “O seu Brasil acabou, e o meu nunca existiu!”. A cinegrafista volta rapidamente para a sala e, em vez de focar no mendigo, estranhamente registra a reação de Grace, que está atônita: afinal, a mendiga é ela mesma. Em breve, seu semblante demonstrará um sentimento próximo ao de uma grande culpa – ainda mais intensa que a nossa, quando diante do olhar inquisitivo da mulher na foto da cozinha.

É um terceiro ato poderosíssimo em termos emocionais, mas ainda antes de o filme terminar, a encenação deixa sobre o espectador uma sensação residual de alguma coisa ali não está muito certa – um after taste que indica que, essa terceira parte é, na verdade, dispensável. Porque começa a ficar claro que o filme pretende nos confrontar com o quanto somos egoístas: enquanto reclamamos do nosso Brasil, no aconchego dos nossos lares, há gente que nem “Brasil” possui para reclamar como seu. São os desvalidos, esquecidos, abandonados pela sociedade – uma outra face de nós mesmos enquanto povo.

Mas existe algo de decepcionantemente sensacionalista nesse desfecho do filme. Porque a miséria, a mendicância e a subcidadania são desde sempre parte fundamental da nossa insatisfação como o Brasil, com o nosso imaginário de “Brasil enquanto pesadelo”. Aliás, é o centro dele: a desigualdade, a fome, a indigência são marcas centrais do que tornam o nosso país uma nação de horror – a cena extrema de um mendigo entrando na nossa casa e despejando isso na nossa cara é uma reiteração excessiva e desnecessária dessa ideia.

Pelos termos do filme, nosso ódio pelo Brasil se daria por questões fundamentalmente egoístas, que nos tangem mais especialmente em nosso mundinho e nossa realidade burguesa. Mas mesmo que fôssemos completamente insensíveis ao horror da miséria do país e vivêssemos 100% encastelados na nossa realidade burguesa (como parte da nossa elite certamente faz), o próprio filme já havia tratado algumas cenas antes de nos colocar em contato com o mundo lá fora: ao olhar pela janela, Grace vê o mendigo e os cães, além da rua enquanto um lugar tenebroso, assustador – o que por si já reafirmava essa ideia de país que era melhor nunca nem ter existido. De modo que o “susto” final, embora funcione em termos de suspense e impacto emocional, é no fundo uma estratégia escandalosa de abalamento do espectador. Não é que seja uma opção desonesta, mas certamente é um procedimento desmedido – não tanto em termos fílmicos, porque é um clímax potente, típico de cinema de gênero, mas em termos de moral da história, de fato é um exagero dispensável.

Há alguns outros equívocos menores que talvez tenham sido propositais para a criação de um universo de dúvida e pavor, além de um jogo complexo de encenação, mas que poderiam ter sido evitados ou  contornados com soluções mais interessantes: por exemplo, há um corte no primeiro trecho, o que contradiz a ideia de que, a todo tempo, a conversa de Grace pelo telefone era uma mesma tomada de um filme (a cena da janela não é parte do primeiro plano-sequência, sugerindo que houve ali um trabalho de edição). E não há uma explicação razoável para a moça que segura a câmera manter o aparelho ligado enquanto ela vai à cozinha – a não ser a mais óbvia: uma maneira de ampliar a tensão do espectador, enquanto aguarda o que está por acontecer. Já no trecho final, quando a cinegrafista simplesmente some (e, antes, sua câmera se volta exclusivamente para Grace, quando o esperado seria filmar o mendigo invasor), já é mais aceitável, porque ali tudo faz parte da mesma atmosfera de suspense, de terror, de confusão. Talvez haja também alguma reflexão sobre o fazer cinematográfico, o limite entre a representação, a cena e a realidade, mas é uma complexificação que nem sempre se justifica - o filme tem um tema forte demais (e minutagem de menos) para de fato abarcar essa proposta reflexiva com alguma proficiência.

Mas há pequenos detalhes que são muito sagazes e que dão um respiro a um filme tão intenso: durante a fala com a mãe, Grace dá um tom entre o realista e o cômico ao ensiná-la qual controle remoto precisa usar e que ela tem que pressionar a tecla “soúrce” – para além da comicidade em si, é uma maneira inteligente de revelar o lado classe média das personagens. Parece uma tolice, mas esse tipo de inserção espirituosa tira o ar de solenidade que muitos filmes infelizmente não conseguem evitar.

Não assisti ainda a “Vaga Carne”, média que marcou a estreia de Passô como diretora, mas aqui ela demonstra grande habilida. Já como atriz, qualquer outro comentário seria mera redundância. Viola Davis que me desculpe, mas, quando muito, ela é que é a Grace Passô americana.

 

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