Há filmes em que
a câmera se esforça, busca, procura, espera... Vai atrás o tempo todo de algum
tipo de frescor, de uma fagulha que torne o material original digno de ficar
registrado para sempre... mas esse “algo mais” simplesmente não aparece. Mas muitas
vezes, basta a ideia certa, o ator adequado e acreditar que ambos são uma
mistura interessante o suficiente para seduzir o acaso, que ele acaba intervindo
– e o que era para ser uma cena banal se torna um pequeno milagre.
O curta “This Is
Not Dancin Days”, de Julia Katharine, tem pelo menos uma cena que é um desses
pequenos milagres – e dado o esquema de produção caseiro e o fato de o filme ter
sido feito durante a pandemia, em tempo recorde, o curta em si também acaba sendo um. Aliás, o fato de não ter essa pretensão de captar alguma coisa muito
extraordinária já ajuda o filme: existia ali um encontro de sensibilidades e
uma desobrigação de perfeição (embora jamais um desleixo) que cria uma atmosfera
muito propícia para que o acaso opere livremente. E ele o faz.
O filme é sobre
uma atriz em isolamento social, que fala a uma diretora sobre sua ansiedade a
poucas horas de sua primeira live. Interpretada pela sempre excelente Gilda
Nomacce, a personagem é, a rigor, a própria Gilda, mas na verdade é um mix
entre ela mesma, Julia Katharine e alguma atriz qualquer em situação semelhante.
A tal cena miraculosa se dá quando Gilda fala, quando reflete sobre seu método
de composição artística, sobre sua tendência a elaborar demais as coisas, com
minúcia em excesso, e nada surgir dali – e, de repente, sua máscara de proteção
facial cai sobre um cálice de vinho. Gilda dá uma leve ajeitada, raciocina por
alguns segundos e, meio de bate-pronto, deixa sair: “Não parece uma freira?”.
É justamente desse
tipo de falta de minúcia na criação artística, de uma espontaneidade que é
capaz de fazer surgir uma freira onde menos se espera, é que às vezes um artista
precisa para que sua arte, enfim, aconteça. Muitas vezes, ele já tem o material
todo dentro de si – em sua mente, no seu coração, ou seja lá onde estiver: falta
apenas se entregar ao risco (e ter os meios materiais, evidentemente) e colocar
aquilo tudo para fora pela via da arte. É um “aquilo tudo” que muitas vezes
angustia um criador porque está aparentemente imaturo, existindo apenas no plano da intenção ou de um sentimento. É difícil até de
definir (e a fala algo desconexa de Gilda na cena ilustra isso muito bem), mas
que finalmente “acontece” quando o artista, enfim, entende que chegou a hora de
partir para a autoexpressão.
Não é que não
exista no cinema de Julia Katharine uma programação ou um roteiro, muito pelo
contrário. Seu trabalho com o cineasta Gustavo Vinagre, ao que parece, a instigou
a seguir pela mesma via criativa que ele tem trilhado em seus três longas: em
2018, ela protagonizou um filme dele com um princípio parecido, “Lembro Mais dos
Corvos”. Em cena, Julia era ela mesma (ou uma variação de si própria – assim
como Marcelo Diorio em “A Rosa Azul de Novalis” e Wilma Azevedo em “Vil, Má”):
conversava com a câmera e falava de sua vida – a experiência como artista, como
mulher trans, como ser humano em geral, sempre provocada por questões do
próprio diretor (que não aparece em cena, mas cuja voz ouvimos), ao que ela
responde de forma aparentemente improvisada.
A escola é boa:
o êxito do cinema de Vinagre está bem nesse jogo com o espectador, na dúvida
entre o que pode ser fala de um roteiro previamente escrito, o que é um
eventual improviso do protagonista, o que é uma performance de alguém sobre si,
o que é real mas parece script, o que é script e parece real, e por aí vai. E,
desta vez no papel de diretora, Katharine usa o mesmo princípio, e o curta
transita sempre nessa zona nebulosa típica da performance, entre a realidade e a
encenação – embora muitas vezes as falas tenham sido obviamente escritas, e alguns
“acasos” provavelmente tenham sido encenados (a própria cena da freira também
pode ter sido roteirizada, mas parece tão natural que, se foi ou deixou de ser,
isso já não tem mais qualquer importância).
Talvez em um
momento que não o de uma pandemia, em que as incertezas naturais das pessoas
são levadas à estratosfera, “This Is Not Dancin Days” não tivesse a mesma força:
o curta ganha uma interlocução com o público extremamente forte por ter sido
rodado e lançado no meio de uma crise como a que vivemos (aliás, em que fase
dela estamos? Gilda já começa o filme mostrando a nossa confusão: “É a primeira
vez q vou me apresentar depois da pandemia”, ela diz, corrigindo-se em seguida:
“Entre a pandemia... Na pandemia...”).
É claro que o
filme só existe por causa da pandemia – ele está em seu cerne dramatúrgico e em
seu espírito. A ansiedade de uma atriz nas horas que antecedem sua primeira
live é um excelente achado para um ponto de partida de um filme pandêmico: eis
uma intérprete tensa com sua estreia em um nova modalidade de produto
audiovisual, em que vários anônimos de repente se tornaram especialistas, enquanto
ela, atriz profissional, ainda é uma virgem.
A live não seria,
no fim das contas, também mais uma modalidade de “performance”, como as do
teatro, da TV ou do cinema? No caso, a diferença é que Gilda ainda não estreou
nesse formato, e se uma estreia é sempre fator de ansiedade, ela se duplica por
acontecer em um campo novo, uma “moda” que parece ter vindo para ficar, em que amadores
já estão mais do que estabelecidos, mas que para ela é um terreno totalmente
inexplorado. E para alguém que trabalha justamente com performance, caso não se
saia bem nessa sua primeira... o que será dela a partir dali?
Mas a verdade é
que o nervosismo da atriz diante da primeira live é um ponto de largada,
apenas, para o filme falar em angústias mais amplas. A Gilda do filme tem uma
série de questões pessoais – de natureza profissional (“nunca fiz um monólogo
no teatro”), mas também existenciais – sobre as quais ela fala de forma quase sempre
meio genérica, com frases não 100% alinhavadas ou concluídas, o que mostra sua
dificuldade (dela e da diretora, provavelmente) em articular seus pensamentos e
sentimentos.
Não há ser vivo que não se identifique com Gilda quando ela chora e diz: “Vai passar, vai passar, mas... Não sei se vai passar”. A identificação é obviamente maior porque enfrentamos uma pandemia, quando tudo no mundo está imprevisível, mas também se dá em um nível muito mais profundo e abrangente. É óbvio que não podemos menosprezar ali o específico da situação de uma atriz falando de questões bem pontuais da falta de perspectivas na área artística causadas pela necessidade de isolamento social - e agravadas pelo desastroso desempenho do atual governo na área da cultura. Mas é de angústia humana, em um nível mais universal, que ela está falando - e angústia é algo sobre o que nós, pessoas, em geral não costumamos ter completo domínio.
O choro ajuda,
no entanto, a suavizar a vida. As coisas também ficam menos insuportáveis se tomamos algumas atitudes banais, como se entregar a alguns devaneios mais descompromissados, observando o que nos cerca de forma menos pragmática e mais poética (ver uma freira em um copo; enxergar os buracos da casinha da planta como se fossem olhos/bocas). Ou mesmo buscar sentido em situações que são fruto da aleatoriedade
(a escolha do caderno com a capa da Barbie; a numerologia de uma determinada
data).
Mas o que certamente
torna tudo mais fácil são os encontros, e a impossibilidade deles durante a pandemia é uma limitação das mais terríveis. Mas quando Gilda encontra Katharine e ambas se
consolam, as duas parecem ganhar força – e essa troca de energia entre ambas é
quase palpável ao espectador; o filme, ali, se eleva. Elas falam sobre Julia Matos, a ex-presidiária da
novela “Dancin’ Days” (1978-79) vivida por Sonia Braga, que luta para se reerguer
após passar 11 anos na prisão – e que, mais adiante na trama, sofre uma
reviravolta: fica rica e linda, e causa inveja a todos ao brilhar com seu corpo livre na pista de
dança, com suas meias de lurex.
Mas não: a vida
de Gilda não é “Dancin’ Days”. Mas a de qual entre nós de fato é? Nem a da
própria Sonia Braga: todos somos, no fundo, Julias Matos da vida real, tentando
achar o caminho da pista de dança, atrás de uma meia de lurex que só eventualmente
conseguimos encontrar. A vida não consiste em brilhar na discoteca: é a
busca por isso, simplesmente.
Mas o encontro
também é terapêutico quando Gilda e Katharine falam de coisas mais
banais – sobre perucas, um sapato que Gilda afanou após um de seus trabalhos (e
que Katharine jura que não incluiria no filme). Aliás, o humor se mostra fundamental, e a montagem de João Marcos de Almeida ajuda bastante: na cena sobre o caderno da Barbie, há uma hilária menção a um
trabalho de Gilda com uma tal Regina (na vida real, Nomacce já contracenou com Regina Duarte
em um filme, quando a ex-atriz global ainda não era a figura massivamente rejeitada
pela classe artística, devido ao seu alinhamento ao governo Bolsonaro e sua
patética passagem pela secretaria da cultura durante a pandemia).
Uma das forças
do estilo de Gilda Nomacce é jamais tentar esconder por completo as
inseguranças dela própria na composição de suas personagens, e nunca antes em
sua carreira isso foi tão positivo como aqui. Suas fragilidades (encenadas ou
não, porque ela também é uma atriz com sólidos recursos técnicos) a tornam desta vez hipnótica como nunca: é um filme de pouco mais de 9
minutos, mas é seguramente um de seus melhores momentos em sua (admirável) carreira.
E Julia
Katharine também dá um passo adiante enquanto cineasta – seu curta anterior, “Tea
for Two”, transbordava ternura e sensibilidade sobre um tema áspero, mas em
termos formais era um bocado convencional. Aqui, embora partindo de uma matriz
criativa ainda muito escorada na influência de Gustavo Vinagre, ela encontra
uma forma de se (auto)expressar mais arejada, sem as amarras de um roteiro mais
tradicional. Se em um filme tão pequeno ela conseguiu abarcar tantos mundos,
tantas ideias e tantas emoções, o acaso não há de lhe negar futuramente novos pequenos
milagres. E, provavelmente, até grandes.
Adorei! Gosto muito desta atriz e não conhecia seu blog. Tem o link do curta? Abraços e parabéns pelo texto:).
ResponderExcluirola, Felipe, obrigado.
ExcluirAqui vai o link:
https://www.youtube.com/watch?v=nyi0huSNLSk
Abraçao
Oi Bruno!!!
ResponderExcluirMuito obrigado.
Adorei:).
Abraços.
Bruno, boa noite!
ResponderExcluirVocê viu o documentário "Chão" e "Indianara" gostei muito:).
Abraços.
Faltou o ponto de interrogação acima... :)?????
ResponderExcluirvi "Indianara" (gostei também), mas não "Chão"
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