(dir. Wagner Moura, 2019)
A crítica postada abaixo foi escrita logo após a première mundial de "Marighella", no festival de Berlim, no dia 14 de fevereiro de 2019. Para seguir as regras da Berlinale sobre a divulgação de críticas, o texto foi publicado no dia seguinte, no UOL. Muitos leitores, afoitos, acharam que no texto eu me refiro a Marighella como "um humanista", mas basta reler o parágrafo para notar que quando utilizo o termo é para me referir à ideia que o filme quer transmitir. Tenho minha opinião pessoal sobre Marighella e sua luta e, em momento mais oportuno, teria tranquilidade de expor. Mas, no momento, para evitar confusões, mantenho apenas a minha visão sobre o o filme. Segue abaixo:
Seu Jorge em close no poster oficial de "Marighella" |
Bruno Ghetti
Colaboração para o UOL, em Berlim (Alemanha)
15/02/2019 15h30
A vida de Carlos
Marighella gerou narrativas de naturezas tão díspares quanto as paixões de
quem se dispunha a contá-las. Detratores o difamaram na mesma medida em que
admiradores o idealizaram. Em comum, apenas a incapacidade de um olhar
indiferente ou frio sobre o maior líder da guerrilha urbana no Brasil. Mas qual
o sentido de ser neutro diante de um ser humano que sempre procurou passar
distante da neutralidade? Seria uma enorme traição ao homem e a sua essência, e
Wagner Moura parece estar ciente disso em "Marighella", sua aguardada
estreia como diretor de cinema.
Como o filme é
o primeiro longa de ficção a se dedicar especificamente à trajetória do
guerrilheiro (em seus últimos quatro anos de vida), era de se esperar que a
narrativa tivesse viés claramente esquerdista - e, logo, inevitavelmente
apaixonado. Moura joga limpo: em nenhum instante nega o fascínio que tem por
Marighella - assim como o livro homônimo que o inspira, escrito pelo jornalista
Mário Magalhães.
No filme, o
personagem é acima de tudo um homem íntegro. Que pode ter errado nos métodos
que escolheu para resistir aos militares, ou talvez apenas tenha feito o que
estava ao seu alcance (o filme não toma partido quanto a isso). Mas que sabia
que a resistência, de qualquer tipo, era fundamental naquele período histórico
do Brasil.
O que funciona no filme
Se em grande parte
do filme - sobretudo a primeira hora - a narrativa de Moura funciona tão bem é
justamente porque existe paixão em sua lente: pelo personagem, pelo ator
principal (Seu Jorge), pelos temas. E há também nesse primeiro trecho do longa
um respeitável domínio técnico do manejo da câmera - quase sempre na mão, com
foco no rosto dos personagens, tornando o fundo algo desimportante; o cenário
poderia ser o Brasil dos Anos de Chumbo - ou o atual. A face humana, e seu
sofrimento, tem o privilégio.
Seu Jorge tem uma
presença tão poderosa, marcante, que mesmo suas falhas técnicas enquanto ator
passam despercebidas. Quando o roteiro se afasta dele para costurar a situação
que desembocará na morte do personagem, o longa decai; perde o fôlego quase que
irrecuperavelmente. Mas quando ele ressurge em cena, Moura não apenas tem
diante de si um homem 100% convincente na pele de um líder nato como também uma
figura capaz de reinserir o filme no prumo e lhe devolver a vida.
Independentemente do tipo de cena em que surja - cômica, romântica, de ação,
dramática -, ele é capaz de manter o longa pulsante.
Qualquer um que
pretendesse interpretar Marighella precisaria ter pelo menos dois elementos:
imponência física e magnetismo. Mas Seu Jorge ainda traz um terceiro: a fúria.
Seu Marighella é um homem doce e bem-humorado, mas essencialmente furioso - com
a situação de seu país, de sua família, de seu povo.
O que não funciona no filme
É também a paixão
excessiva que talvez tenha impedido que o cineasta não percebesse certos
desacertos do filme: a caricatura na construção de alguns personagens, a
inserção de eventos irrelevantes para o que é central na narrativa, o desnível
na qualidade das performances. E há falta de clareza no significado de
determinadas situações, talvez compreendidas apenas por quem já conhece a
história de Marighella ou já sabe de detalhes de como funcionava a luta armada
no Brasil. Embora seja um filme de intenções didáticas, "Marighella"
é muitas vezes uma obra um bocado afoita, dominada por um incontrolável (ainda
que compreensível) sentido de urgência.
O longa tem 155
minutos, mas poderia ter menos de duas horas. Aliás, talvez fosse até mais
efetivo, porque Moura já tinha diante de si o mais importante para o projeto:
um Marighella crível. Poderia se concentrar mais nele. Pouco importa que Seu
Jorge tenha um tom de pele bem mais escuro que a do guerrilheiro na vida real
(que era descendente de sudaneses e italianos): a escolha por um homem negro
quase sem traços perceptíveis de miscigenação é um acerto, se a observamos
enquanto um ato político da parte de Moura. Cria um herói negro e ciente (além
de orgulhoso) dessa sua ancestralidade. Uma opção que vem a calhar: o filme
"Marighella" é fundamentalmente sobre tomadas de posições.
Isso, porém, não
justifica alguns arroubos de pieguice que Moura infelizmente não consegue
evitar. Quando Marighella é assassinado, uma militante de esquerda cai em
prantos e grita: "Esse homem amou o Brasil! Esse homem amou o
Brasil!" Além de lamuriosa, a frase soa desnecessária: o que o filme havia
mostrado até então já era suficiente para que o espectador chegasse a essa
conclusão por conta própria.
Filme importante para os dias de hoje
"Marighella"
é genuinamente um produto do Brasil polarizado pós-2013. Em vários momentos,
fala sobre o país dos anos 1960, mas com frases que se encaixam com facilidade
no Brasil de hoje - poderiam sair de qualquer boca progressista diante do
recrudescimento das forças conservadoras na era Bolsonaro. Logo no começo, um
letreiro diz que o discurso do Golpe de 1964 visava "acabar com a corrupção
e com a ameaça comunista". Mais adiante, o protagonista justifica sua
opção pela guerrilha: "Ninguém fez nada quando tinha que fazer!". E
posteriormente: "As pessoas precisam saber que, no Brasil, tem gente
resistindo."
Sim: é um diálogo
claro com a plateia de esquerda. Mas o filme não é de nicho: é importante para
qualquer brasileiro, seja qual for sua inclinação política. O espectador não
precisa comprar a ideia de que Marighella foi um santo - até porque o filme
jamais se propõe a vendê-la. Quer transmitir, no entanto, a ideia de que ele
apenas não foi um monstro, mas um ser humano capaz de errar, de ser truculento
e de cometer assassinatos e violências variadas. Só que, acima de tudo, foi um
homem fiel aos seus princípios. E, a seu modo, um humanista.
Se o espectador
considera sua luta digna de admiração ou uma postura que merece apenas
reprimendas, fica a seu próprio critério julgar. O que não se pode negar é que
um personagem importante como Carlos Marighella precisava ter sua história
contada - ainda que sob uma perspectiva esquerdista. Até porque, veio da
direita a história "oficial" dos fatos que "Marighella", o
livro e o filme, procuram revisar.
Link para o texto
original do UOL: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/15/marighella-de-wagner-moura-e-um-produto-do-brasil-polarizado-pos-2013.htm
Que critica ótima, me deu MT vontade de assistir mesmo não gostando de filmes com mais de duas horas, vi suas matérias no huffpost, e fui pesquisar seu nome, parabéns pelos textos.
ResponderExcluirobrigado!
ExcluirCrítica escrita por um esquerdista.
ResponderExcluirEntão.... vim saber quem era o crítico após ler o seu “desabafo” sobre o mais recente filme do Tarantino. Pela sua crítica a este filme ruim do Moura, deduzo que o do Tarantino será, mais uma vez, ótimo.
ResponderExcluiro filme "ruim" do Moura até hoje não estreou, então muito me admira que você já o ache "ruim" antes de assistir. Uma pena, porque o filme tem qualidades
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