O personagem Gaúcho, de "Vermelha" |
O grande vencedor da Mostra de Tiradentes 2019, “Vermelha” é um corpo estranho na filmografia brasileira (e mundial) recente. É um filme que parece existir com a intenção primordial de quebrar a expectativa do público: quando se imagina que a história vai tomar um certo rumo, o diretor (o talentoso Getúlio Ribeiro, estreante em longas) se encarrega de driblar o espectador e desviar a obra para um caminho completamente imprevisto. E faz isso diversas vezes, conseguindo um efeito a priori de frustração, mas que, com o tempo, se torna quase hipnótico: é fascinante aguardar pelas novas surpresas e verificar até que ponto Ribeiro é capaz de conduzir sua insólita narrativa.
Existe algo melhor no cinema do que justamente essa capacidade de surpreender? Muito de “Vermelha” parece ser completa e absolutamente aleatório, improvisado, mas seja isso uma impressão ou uma verdade, o fato é que Ribeiro é um formidável artista instintivo; suas ideias da etapa do roteiro e/ou suas decisões na mesa de montagem resultam em um material que ao mesmo tempo desafia o espectador (deixando-o por vezes totalmente perdido) como também o satisfaz, mesmo diante de escolhas estéticas de sentido indecifrável. Em seus gaps, buracos, pontos de interrogação (e mesmo falhas), o filme compõe um todo coerente, aceitável. E mais ainda: um todo deliciosamente afetivo e engraçado.
Os protagonista é Gaúcho, um pai de família que mora em uma casa simples na periferia de Goiânia, junto da mulher e de sua filha (além de, talvez, um filho, mas isso nunca fica claro). Ele tem um amigo que mora no mesmo bairro, Beto, que faz visitas de vez em quando. E há a cachorra Vermelha, que batiza o filme e é uma espectadora – embora também participante – do dia a dia daquele lar.
O longa é sobre a rotina de gente simples, a quem nada de muito extraordinário acontece. Há, no entanto, uma fabulação (em geral em tom paródico, humorístico) de certas situações que afasta “Vermelha” do cinema de “cenas do cotidiano” clássico. Um exemplo: um vizinho que emprestou dinheiro a Gaúcho aparece algumas vezes para cobrar o que lhe é devido. Quando ele surge acompanhado de capangas, para reaver na marra o empréstimo, a sequência é encenada em estilo em falso pastiche de um faroeste, incluindo ainda alusões coreográficas aos musicais e toques de cinema de ação e de arte marcial. É uma maneira de apresentar de forma cômica, até lúdica, uma cena que, na vida real, talvez tivesse sido violenta e desagradável. Mas a opção pelo humor não é apenas uma forma de suavizar aquela situação: é também um modo de ressaltar o quanto aqueles personagens, em um contexto em que se tomam por imponentes, respeitáveis, são no fundo ridículos – como somos ridículos todos nós, mesmo nos instantes em que nos julgamos solenes e dignos de reverência. “Vermelha” é um filme que ri do ser humano, mas com um sarcasmo sempre tão doce, terno, que o torna uma obra especialmente apreciável.
Gaúcho e Beto são daquelas pessoas que têm um gestual e uma forma de se expressar naturalmente performáticos; são atores inatos, além de duas personalidades bastante carismáticas. Quando são estimulados por Ribeiro a cenas de teatrinho (não documentais), tiram de letra. E têm algumas semelhanças físicas que geram entre ambos um curioso espelhamento – e que Ribeiro, na cena provavelmente fantasiosa (ou talvez alusiva e romantizada de um evento passado) da briga física dois dois, explora especialmente bem (eles se encaram como se estivessem diante de um espelho). São dois homens teimosos, de gênio forte, mas de bom coração; não à toa, são grandes amigos.
Dos demais personagens, sabemos praticamente nada. A mãe talvez seja a de construção mais incompleta, mas da filha temos ainda menos dados. Há talvez um outro filho, mas ele quase não aparece, assim como um namorado da filha, que não tem a menor relevância para a trama (se é que existe uma). Por outro lado, o sujeito que cobra dinheiro tem uma cena impagável, que mistura onirismo, alguma carga espiritual e um humor saborosamente interiorano: ele surge do Além para cobrar o dinheiro novamente – desta vez, de forma amistosa (até fumam juntos um cigarro).
Há todo um admirável trabalho de montagem (que Ribeiro assina com Luciano Evangelista) que opera no sentido de concatenar cenas isoladas de modo a parecerem sempre um bocado desconexas; há um rompimento constante – e intencional – com a narrativa canônica, esmiuçada nos manuais de roteiro. As cenas inseridas possuem diferentes estilos de filmagem, duração e natureza semiótica, fazendo sentido apenas como peças de um mosaico. Pode-se não entender a função de determinada cena ou sequer o que está sendo filmado; a simples presença dessas imagens inusitadas causam um efeito de unheimlich que se presta muitas vezes antes a resultados sensoriais que de importância narrativa. São sempre um pequeno mistério a ser desvendado pelo público – não tão enigmáticos a ponto de o espectador se enfurecer quando alguns trechos jamais são “explicados” pela lógica convencional, mas a ponto de tornar o filme uma experiência de constante e prazerosa decifração de uma charada. “Vermelha” não entrega quase nada de mãos beijadas; é feito para desestabilizar o espectador.
É difícil detectar no filme um princípio mais geral de montagem. É um longa episódico, mas mesmo entre cada trecho, não há exatamente um padrão de estilo: tem de tudo um pouco, e Ribeiro utiliza quando bem entende cada um deles. Há, por exemplo, no começo do filme, um longo trecho de montagem alternada (ou talvez paralela, já que há uma possibilidade de correlação simbólica entre cada trecho): dois homens de idade (Gaúcho e Beto) conversam no telhado de uma casa, arrancando telhas velhas. Ao mesmo tempo, dois homens jovens estão em um carro, a caminho de uma região rural de onde arrancarão do solo a raiz de uma grande árvore morta. As cenas envolvendo cada dupla se alternam por um bom tempo, até que os jovens levam, enfim, a raiz para a casa das telhas.
A partir daí, trechos rapidíssimos e aparentemente sem relação com o que parece ser uma trama surgem do nada, de quando em quando. Insolentemente, também desaparecem sem dar o menor indício do motivo de sua existência naquele ponto específico do filme. Alguns parecem ser flash forwards, mas ao fim do filme se verá que muitos deles jamais são retomados adiante. Outros sugerem imagens de um plano paralelo, por vezes espiritual, por outros metafórico, de vez em quando apenas imaginado. Tudo é tão solto e displicentemente desinteressado em entregar um sentido fechado que cabe ao espectador classificá-los em sua cabeça da maneira que achar mais apropriado. No geral, porém, quase todos transmitem algum tipo de informação sobre a vida naquela casa ou sobre os personagens.
Mas “Vermelha” não é um filme apenas definido na montagem; a encenação e a captação de imagens é algo especialmente feliz. Existe um grafismo em certas imagens que surgem ali de uma maneira inesperada, natural; o diretor pode até ter feito um story board prévio, mas o que acontece dentro do quadro é sempre algo notoriamente ocorrido ao sabor do momento. E a presença de uma cachorra em grande parte das cenas reforça essa ideia -- por mais adestrada que Vermelha possa ser, muito do que de gráfico ela contribui em diversas cenas do filme é inegavelmente casual, obra do acaso. Quando ela assiste pela janela a uma alegre dança dos familiares na sala ou quando repete, no fundo do campo, o gesto da filha em primeiro plano de balançar os cabelos, o filme atinge um inigualável tipo de poesia visual não planejada, natural, que só uma câmera que não pretende captar nada de muito excepcional geralmente consegue registrar.
O longa transita entre o paródico, o alusivo, o simbólico e o naturalista. Tem também cenas oníricas, de absurdo e mesmo metafísicas. Tudo abarcado por um nonsense peculiarmente cômico, que ganha um lirismo e uma beleza especial graça a esses toques de acaso. Pouco importa a simbologia da raiz plantada no quintal da casa: a mensagem do filme parece ser a de que nem tudo é explicável ou faz sentido. “Mistério sempre há de pintar por aí”, como dizia Gilberto Gil, e “Vermelha” nos convida a todo tempo a não apenas prestar atenção a eles mas também – e sobretudo – a saber apreciá-los naquilo que eles são. Mistérios, simplesmente.
Existe algo melhor no cinema do que justamente essa capacidade de surpreender? Muito de “Vermelha” parece ser completa e absolutamente aleatório, improvisado, mas seja isso uma impressão ou uma verdade, o fato é que Ribeiro é um formidável artista instintivo; suas ideias da etapa do roteiro e/ou suas decisões na mesa de montagem resultam em um material que ao mesmo tempo desafia o espectador (deixando-o por vezes totalmente perdido) como também o satisfaz, mesmo diante de escolhas estéticas de sentido indecifrável. Em seus gaps, buracos, pontos de interrogação (e mesmo falhas), o filme compõe um todo coerente, aceitável. E mais ainda: um todo deliciosamente afetivo e engraçado.
Os protagonista é Gaúcho, um pai de família que mora em uma casa simples na periferia de Goiânia, junto da mulher e de sua filha (além de, talvez, um filho, mas isso nunca fica claro). Ele tem um amigo que mora no mesmo bairro, Beto, que faz visitas de vez em quando. E há a cachorra Vermelha, que batiza o filme e é uma espectadora – embora também participante – do dia a dia daquele lar.
O longa é sobre a rotina de gente simples, a quem nada de muito extraordinário acontece. Há, no entanto, uma fabulação (em geral em tom paródico, humorístico) de certas situações que afasta “Vermelha” do cinema de “cenas do cotidiano” clássico. Um exemplo: um vizinho que emprestou dinheiro a Gaúcho aparece algumas vezes para cobrar o que lhe é devido. Quando ele surge acompanhado de capangas, para reaver na marra o empréstimo, a sequência é encenada em estilo em falso pastiche de um faroeste, incluindo ainda alusões coreográficas aos musicais e toques de cinema de ação e de arte marcial. É uma maneira de apresentar de forma cômica, até lúdica, uma cena que, na vida real, talvez tivesse sido violenta e desagradável. Mas a opção pelo humor não é apenas uma forma de suavizar aquela situação: é também um modo de ressaltar o quanto aqueles personagens, em um contexto em que se tomam por imponentes, respeitáveis, são no fundo ridículos – como somos ridículos todos nós, mesmo nos instantes em que nos julgamos solenes e dignos de reverência. “Vermelha” é um filme que ri do ser humano, mas com um sarcasmo sempre tão doce, terno, que o torna uma obra especialmente apreciável.
Gaúcho e Beto são daquelas pessoas que têm um gestual e uma forma de se expressar naturalmente performáticos; são atores inatos, além de duas personalidades bastante carismáticas. Quando são estimulados por Ribeiro a cenas de teatrinho (não documentais), tiram de letra. E têm algumas semelhanças físicas que geram entre ambos um curioso espelhamento – e que Ribeiro, na cena provavelmente fantasiosa (ou talvez alusiva e romantizada de um evento passado) da briga física dois dois, explora especialmente bem (eles se encaram como se estivessem diante de um espelho). São dois homens teimosos, de gênio forte, mas de bom coração; não à toa, são grandes amigos.
Beto e Gaúcho, na cena da briga |
Dos demais personagens, sabemos praticamente nada. A mãe talvez seja a de construção mais incompleta, mas da filha temos ainda menos dados. Há talvez um outro filho, mas ele quase não aparece, assim como um namorado da filha, que não tem a menor relevância para a trama (se é que existe uma). Por outro lado, o sujeito que cobra dinheiro tem uma cena impagável, que mistura onirismo, alguma carga espiritual e um humor saborosamente interiorano: ele surge do Além para cobrar o dinheiro novamente – desta vez, de forma amistosa (até fumam juntos um cigarro).
Há todo um admirável trabalho de montagem (que Ribeiro assina com Luciano Evangelista) que opera no sentido de concatenar cenas isoladas de modo a parecerem sempre um bocado desconexas; há um rompimento constante – e intencional – com a narrativa canônica, esmiuçada nos manuais de roteiro. As cenas inseridas possuem diferentes estilos de filmagem, duração e natureza semiótica, fazendo sentido apenas como peças de um mosaico. Pode-se não entender a função de determinada cena ou sequer o que está sendo filmado; a simples presença dessas imagens inusitadas causam um efeito de unheimlich que se presta muitas vezes antes a resultados sensoriais que de importância narrativa. São sempre um pequeno mistério a ser desvendado pelo público – não tão enigmáticos a ponto de o espectador se enfurecer quando alguns trechos jamais são “explicados” pela lógica convencional, mas a ponto de tornar o filme uma experiência de constante e prazerosa decifração de uma charada. “Vermelha” não entrega quase nada de mãos beijadas; é feito para desestabilizar o espectador.
É difícil detectar no filme um princípio mais geral de montagem. É um longa episódico, mas mesmo entre cada trecho, não há exatamente um padrão de estilo: tem de tudo um pouco, e Ribeiro utiliza quando bem entende cada um deles. Há, por exemplo, no começo do filme, um longo trecho de montagem alternada (ou talvez paralela, já que há uma possibilidade de correlação simbólica entre cada trecho): dois homens de idade (Gaúcho e Beto) conversam no telhado de uma casa, arrancando telhas velhas. Ao mesmo tempo, dois homens jovens estão em um carro, a caminho de uma região rural de onde arrancarão do solo a raiz de uma grande árvore morta. As cenas envolvendo cada dupla se alternam por um bom tempo, até que os jovens levam, enfim, a raiz para a casa das telhas.
A partir daí, trechos rapidíssimos e aparentemente sem relação com o que parece ser uma trama surgem do nada, de quando em quando. Insolentemente, também desaparecem sem dar o menor indício do motivo de sua existência naquele ponto específico do filme. Alguns parecem ser flash forwards, mas ao fim do filme se verá que muitos deles jamais são retomados adiante. Outros sugerem imagens de um plano paralelo, por vezes espiritual, por outros metafórico, de vez em quando apenas imaginado. Tudo é tão solto e displicentemente desinteressado em entregar um sentido fechado que cabe ao espectador classificá-los em sua cabeça da maneira que achar mais apropriado. No geral, porém, quase todos transmitem algum tipo de informação sobre a vida naquela casa ou sobre os personagens.
Mas “Vermelha” não é um filme apenas definido na montagem; a encenação e a captação de imagens é algo especialmente feliz. Existe um grafismo em certas imagens que surgem ali de uma maneira inesperada, natural; o diretor pode até ter feito um story board prévio, mas o que acontece dentro do quadro é sempre algo notoriamente ocorrido ao sabor do momento. E a presença de uma cachorra em grande parte das cenas reforça essa ideia -- por mais adestrada que Vermelha possa ser, muito do que de gráfico ela contribui em diversas cenas do filme é inegavelmente casual, obra do acaso. Quando ela assiste pela janela a uma alegre dança dos familiares na sala ou quando repete, no fundo do campo, o gesto da filha em primeiro plano de balançar os cabelos, o filme atinge um inigualável tipo de poesia visual não planejada, natural, que só uma câmera que não pretende captar nada de muito excepcional geralmente consegue registrar.
O longa transita entre o paródico, o alusivo, o simbólico e o naturalista. Tem também cenas oníricas, de absurdo e mesmo metafísicas. Tudo abarcado por um nonsense peculiarmente cômico, que ganha um lirismo e uma beleza especial graça a esses toques de acaso. Pouco importa a simbologia da raiz plantada no quintal da casa: a mensagem do filme parece ser a de que nem tudo é explicável ou faz sentido. “Mistério sempre há de pintar por aí”, como dizia Gilberto Gil, e “Vermelha” nos convida a todo tempo a não apenas prestar atenção a eles mas também – e sobretudo – a saber apreciá-los naquilo que eles são. Mistérios, simplesmente.
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