Cena de "Tremor Iê" |
“Tremor
Iê”, trabalho colaborativo de um grupo de mulheres cearenses, com direção
assinada por Elena Meirelles e Lívia de Paiva, é um filme que parece ter sido
feito sob encomenda para ilustrar o Brasil da era Bolsonaro.
Mostra
uma Fortaleza distópica, em que um governo extremamente autoritário, higienista
e controlador domina os cidadãos. As ruas vivem vazias, escuras, supervigiadas
por câmeras e estranhos agentes de segurança pública chamados de Soldados de
Bem. De tempos em tempos, vozes metálicas dão recados ao povo por meio de
alto-falantes: “Você pode tudo, cidadão de bem!”.
A
história tem início em 2013, quando um grupo de mulheres negras (algumas
lésbicas) foi abordada por policiais durante uma das tensas manifestações
políticas daquele ano. Todas são tratadas com agressividade, mas uma delas,
Janaína, acaba sendo levada a um presídio sufocante e violento.
Anos
depois, ela consegue fugir e planeja com as amigas um plano para resgatar
outras colegas presas em situações injustas e truculentas. Para isso,
arquitetam um plano: roubar os restos mortais do ex-presidente militar Humberto
Castelo Branco e usá-los como moeda de troca das prisioneiras.
O filme
é profundamente desigual e desbragadamente amador. Mas traz uma potência
latente tão forte, uma energia não completamente dominada tão pulsante que
mesmo em cenas longas, sem ação ou mal encenadas, há sempre alguma vibração que
impede por completo que o tédio domine a experiência. É como se o longa, em
algum momento, fosse explodir; a tela grande parece pequena demais para a fúria
daquelas mulheres.
Há algo
de naturalista e, ao mesmo tempo, performático nas atuações das protagonistas Deyse
Mara e Lila M. Salu. Esta última é o que muitos chamam de “força da natureza”:
quando ela fala, percebe-se uma musicalidade especial em sua voz, firme e
máscula, que por vezes faz parecer que está entoando versos de hip hop. Aliás,
o filme tem alguns trechos musicais (vários versos são cantados e compostos
pela própria Salu) que o tornam ainda mais pungente, sobretudo o rap que marca
logo a abertura do filme. “Politize-se!”, “Genocídio é projeto” e “Levo a cria
nas minhas costas e uma faca em minhas mãos”, dizem alguns dos versos.
“Tremor
Iê” tem todos os defeitos narrativos imagináveis, mas poucos deles vêm à
memória quando nos lembramos do filme após a sessão; não é isso que fica. O que
o espectador leva consigo é o canto desesperado, impaciente e furioso das
mulheres negras, lésbicas e pobres, cansadas de ser maltratadas e de não ter
voz na sociedade brasileira (de hoje ou de qualquer época). Ancestralmente
machista e elitista, o Brasil chega ao auge dessas particularidades com o
governo Bolsonaro. Mas também, como nunca, parece ter encontrado a mais poderosa
resistência possível: é a partir de mulheres como as de “Tremor Iê” que
mudanças fundamentais para o país hão de surgir.
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