Cena de "Seus Ossos e Seus Olhos" |
Há tantas boas ideias, tantos diálogos (e monólogos)
interessantes e tantos detalhes significantes em “Seus Ossos e Seus Olhos” que
chega a ser assombroso o quanto um mesmo filme pode trazer tanta inteligência. O
diretor, Caetano Gotardo, fez uma excelente síntese sobre o próprio longa em
sua apresentação, no palco da estreia do filme, na Mostra Aurora: “É [um filme]
sobre conversa, encontros, a dificuldade e a beleza de estar com outras pessoas
no mundo.”
O longa é um apanhado de situações mais ou menos aleatórias
na vida de João (interpretado pelo próprio Gotardo), um rapaz de classe média em
termos financeiros, mas de uma certa elite intelectual, que mora com o
namorado, com o qual tem um relacionamento aberto.
O filme se distribui em cenas em que João se encontra com
diversas pessoas (uma amiga, o namorado, um amante, desconhecidos) e conversa
com elas. Nos assuntos, há de tudo: banalidades variadas, confissões sexuais,
reflexões intimas sobre amor e a paixão, conversas de cunho social. Nenhuma
delas leva a lugar nenhum ou modifica radicalmente nenhum dos envolvidos no
diálogo, mas sempre se leva alguma coisa dali.
“Alimenta todo o resto do processo”, diz a certa altura o namorado de João, que vive um ator, sobre seus aparentemente vãos ensaios rotineiros
para uma peça. Mas ele poderia estar se referindo ao tema central do filme:
tudo o que experimentamos em um encontro, em maior ou menor escala, servirá de
alimento para um processo maior, que podemos chamar de formação individual – ou
simplesmente de vida.
O filme mostra o quanto em nossas conversas nós repetimos
padrões, posturas, narrações, estilos narrativos e mesmo conteúdos absorvidos
em encontros que temos ao longo da vida. Gotardo apresenta isso com perspicácia na
repetição de várias situações e em papos recorrentes filme afora, mas que
surgem sempre com algumas alterações; a vida é uma eterna mesma coisa, porém
sempre recriada.
O longa é fascinante ao mostrar isso, mas também quando
Gotardo faz considerações mais específicas sobre os encontros: na melhor cena
do filme, João perde vários minutos em busca de uma posição confortável para
conversar com uma amiga que foi buscar uma cerveja. Há também excelentes
instantes em que os personagens ficam em silêncio, buscando controlar o
mal-estar da situação com piscadelas, viradas de pescoço, coçadas nas pernas
etc. Gotardo é um excelente observador.
O filme, no entanto, tem uma propensão à reiteração de
ideias que o enfraquecem lastimavelmente. Quando já se compreendeu muito bem do
que o longa fala, o diretor repete procedimentos cuja recorrência nada mais têm
a acrescentar (mesmo sendo um filme justamente sobre recorrências); aborrecem,
apenas. E há uma camada extra não muito bem explorada sobre o fazer
cinematográfico, quando o próprio Gotardo aparece editando o som de cenas do
seu filme, mostrando o quanto algumas situações poderiam desembocar em
conclusões distintas se não fosse por algum mísero detalhe (a falta de cerveja
na geladeira, por exemplo). Essa ideia aparece também quando os diálogos são
quase 100% repetidos em situações distintas (uma conversa na sala de estar é
deslocada para um museu), mas ela nunca passa de um nível abstrato demais e
acaba apenas sobrecarregando desnecessariamente o filme.
Gotardo não é mau ator e traz uma certa naturalidade às cenas
em que aparece, mas o contraste da atuação dele com a de outros colegas de
elenco por vezes opera contra seu personagem, que se torna algo maçante. “Seus
Ossos e Seus Olhos” é um filme claramente pessoal, mas (talvez até por isso)
provavelmente funcionasse melhor se o diretor tivesse cedido o personagem a
algum outro ator – ou editasse com mais precisão as cenas em que João aparece.
Estranhamente, porém, a presença dele em cena parece fundamental para que o
filme tenha a consistência que possui. Uma situação irremediável.
“Seus Olhos e Seus Ossos” teria muitíssimo a ganhar se
voltasse à ilha de edição e, ali, fossem cortadas partes excessivas de certas
cenas (com meia hora menos, o filme seria quase perfeito). Mas mesmo em suas limitações,
o longa é uma joia e com algumas das melhores ideias colocadas em palavras do
cinema nacional recente. Ajuda a desfazer a pecha de que o Brasil não é capaz
de gerar bons roteiristas.
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