Le livre d'image, de Jean-Luc Godard
Trecho de "Le Plaisir" na colagem "Le Livre d'Image" |
Ver uma estreia mundial de um novo Jean-Luc Godard, no
Festival de Cannes, e ainda por cima em competição, é um evento cinematográfico
e tanto, independentemente do filme em si. Mas “Le Livre d'Image” [lançado no Brasil como "Imagem e Palavra"] atinge
momentos de excelência que o cineasta veterano não conseguia desde “Nossa
Música” (2004), seu melhor filme do terceiro milênio.
O longa apresentado ontem na sala Lumière tem parentesco com
“Historia(s) do Cinema”, no sentido de realizar uma colagem de diversos filmes,
com ruídos e comentários em off, mas com uma pretensão mais
filosófico-histórica sobre a humanidade do que sobre a estética dos filmes. Há
também cenas breves de reportagens, vídeos amadores, registros de obras de
arte, imagens feitas por computador... um caos imagético, enfim.
A ideia é falar sobre o ser humano e sua relação com o mundo
a partir desse vastíssimo repertório de imagens escolhidos pelo cineasta. Sem esconder
que uma imagem (e um discurso, em geral) sempre traz uma representação de algo,
não aquele algo em si. Um registro imagético também é uma mentira, e esse jogo
entre o que se vê, o que é real, o que é versão, ques e estende, também, para a
interpretação do que se apresenta como imagem. Talvez para lembrar isso que, no
início, Godard inclui um trecho de “Johnny Guitar”, um de seus fetiches, em que
Joan Crawford diz a Sterling Hayden uma mentira que ele deseja ouvir (o cineasta
logo manipula e cena e deixa apenas o som do que é dito, sem a imagem, em um
tipo de procedimento audiovisual que ele apresentará ao longo de todo o filme).
O espectador está, então, devidamente alertado sobre o que vem adiante.
No comecinho, a voz
do próprio Godard diz: “A verdadeira condição humana consiste em pensar com as
mãos”. Se juntarmos com uma das últimas frases do longa (“Eu ainda acredito na
revolução”), talvez seja possível encontrar uma das chaves para interpretar e
absorver este enigmático filme-mosaico: seria uma forma de dizer que é próprio
do ser humano a reflexão e também a ação; é isso que nos move e dá sentido à
nossa existência.
A imagem da mão é a metáfora utilizada por Godard para
estruturar seu filme em cinco partes, como se cada uma fosse um dos dedos. A
primeira, “Remakes”, é a mais fácil de acompanhar, porque mesmo que Godard
sempre use uma lógica muito própria de escolher e concatenar as cenas de seus
filmes, aqui a intenção é sempre clara. Vemos imagens de longas conhecidos (“Salò”,
“Paisà” etc) alternadas com cenas de guerra recentes, e não é muito difícil de
compreender o sentido dessa justaposição: mostra a tendência humana a sempre
repetir os mesmos erros. As situações geopolíticas do mundo são constantes “remakes”
de outras já vividas, apenas em novas roupagens, de acordo com os novos
contextos.
A segunda parte tem por título “As Noites de São Petersburgo”.
Leva a crer que é um prolongamento filosófico sobre a revolução socialista, sobre
união dos mais fracos no rumo de sua emancipação, mas o conceito nunca é
devidamente explorado nem fica muito claro. Algo que chama a atenção, porém, é
o foco em vários instantes sobre a situação feminina – a cenas desoladoras de
mulheres humilhadas e violentadas, em filmes de ficção e da vida real. Talvez, o
desdobramento necessário para uma real luta de oprimidos contra opressores, nos
diz Godard, passe por uma consciência mais ampla de exploração, que não só a
econômica. Mas sabe-se lá se era mesmo essa a intenção do diretor; a leitura
cabe, de qualquer forma, e se encaixa como uma luva na sensibilidade moderna:
embora viva isolado na Suíça, ao que parece Godard acompanha de perto as lutas identitárias
femininas.
A terceira parte é mais poética, lírica: usa o trem como
metáfora para a vida enquanto passagem, viagem. Mas também como forma de transportar
fisicamente as pessoas, povos que migram de um ponto a outro – os judeus, por
exemplo (aos campos de concentração, mas também à terra prometida). Pela
própria elasticidade simbólica da proposta, as liberdades tomadas pelo diretor
tendem a ser mais bem aceitas nesse trecho – que, de fato, traz alguns dos
momentos mais bonitos do filme.
A parte a seguir, “O Espírito das Leis”, fala de repressão
estatal e legal e de conflitos humanos. É o trecho mais sanguinário, mas talvez
o menos feliz, porque embora o conceito seja claro, a (não-)narrativa, que até
então corria com fluidez, começa a apresentar desgastes; a fórmula da colagem
começa a perder o efeito de maravilhamento e de fruição intelectual que o filme
conseguia no começo. Mas resta espaço para trechos instigantes: “O terrorismo é
reconhecido como uma das artes”, diz um provocativo recorte de jornal (se não
me engano, já usado em algum outro filme do proprio Godard), e talvez com essa
frase polêmica o diretor esteja querendo ressaltar a necessidade de a arte ter
um poder de mudança social, ainda que violento.
O trecho final, “A Região Central”, é especificamente sobre
o mundo árabe; a ideia é mostrar que a civilização humana nasceu ali e que ainda
hoje é no Oriente Médio e adjacências que os maiores conflitos se prolongam. É
uma região “central” em termos de importância geopolítica, sim, mas também em
termos de compreensão da organização social humana. Godard faz uma narrativa
complexa em off, sobre um suposto reino árabe, sobre a relação entre um rei e
seu primo. Infelizmente, os ruídos do filme (de som e imagem) impedem que se
compreenda exatamente o que a metáfora quer dizer. Mas as imagens são sempre
expressivas e dão uma boa noção do paralelo entre mundo árabe e mundo humano
que Godard pretende.
O filme termina de maneira anticlimática, com os créditos
surgindo do nada, quando o filme parecia ainda ter muito o que mostrar, mas a história
é arrematada mais adiante de maneira pungente: o último fotograma traz a famosa
cena de “Le Plaisir”, de Max Ophuls, em que o dançarino mascarado cai na pista
de dança. Traz a visão final do filme sobre a condição humana: a falibilidade
dos homens, a capacidade de tentar sempre viver, de conseguir prazer, mas falhar
em algum momento por conta de suas próprias limitações. “Le Livre d'Image”,
ao que parece, é um filme muito mais compreensivo das falhas humanas que
condenatório. É um dos filmes mais humanistas da carreira de Godard.
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