Cena do filme "Donbass", da mostra Un Certain Regard |
Sergei Loznitsa é um diretor de talento excepcional e parece
saber disso. Mas é o tipo de artista a quem a autoconfiança não é muito
saudável. Porque de filme a filme (ao menos os de ficção, porque sua brilhante obra
documental segue outro princípio), tem enveredado por um caminho cada vez mais discutível,
muito certo de que, ao intensificar sua denúncia corrosiva da vida pós-soviética
na Rússia e Ucrânia, está fazendo um grande bem à humanidade.
Seu leitmotiv tem sido mostrar
nem tanto as contradições, mas sobretudo a herança nefasta do comunismo para esses
países, o que se pode notar tanto na imutável estrutura burocrática estatal, jamais
superada, quanto na assimilação da violência como elemento naturalizado, até cultural,
nas relações humanas da cultura russa/eslava atual.
Em seu primeiro longa, o extraordinário "Minha Felicidade",
isso já se fazia notar com força, assim como no seu trabalho mais recente, "A
Gentle Creature", que ele mostrou ano passado em competição em Cannes. Neste
último, um tanto irregular, ele não dava trégua a sua protagonista: era uma
personagem que sofria diretamente todas as mazelas do pós-comunismo – e permanecia
calada, aceitando cada desgraça como se estivesse predestinada àquilo. Mas ali,
apesar de tudo, ficava mais ou menos marcada uma certa condescendência do
diretor com a sua personagem, que era claramente uma vítima; ao seu modo, o
filme se solidarizava com ela, como que em uma piedosa empatia pelo horror ao
qual ela não podia escapar.
Mas em "Donbass", o filme apresentado por Loznitsa hoje em
Cannes (na mostra Un Certain Regard), não há mais o menor traço de comiseração.
O diretor parece ter chegado a um ponto em sua carreira que se encantou a tal
nível com a própria capacidade de ser combativo, crítico com o modo de vida em
seu país, que ficou insensível para a tragédia alheia em si. Seu cinema perdeu por
completo o último resquício de humanismo e se tornou altamente sádico, para não
dizer cruel. Ao que tudo indica, Loznitsa agora tem prazer em encenar o sofrimento
humano.
A história se passa na região de Donbass, Ucrânia, onde o caos social impera, com grupos de nazistas ameaçando o estado. Em reação a isso (usando como mera desculpa para
se fortalecer?), o governo investe na força bruta e na retomada do controle
social nos moldes de como provavelmente funcionava na era stalinista. Ideologicamente,
é um filme confuso; a ideia é claramente mostrar toda sua aversão à herança soviética e em como ela ainda marca as decisões sócio-políticas na região. Mas em vários instantes dá a entender que até o nazismo era
preferível ao que se tem hoje em Donbass – o que, convenhamos,
não é lá uma base de comparação das mais sensatas.
O filme é de uma
violência atroz, por vezes cortada por cenas com um pé no surrealismo que se
pretendem um alivio ao peso insustentável das sequências mais truculentas (mas
que, em seu humor estilizado, quase expressionista, são praticamente tão amedrontadoras
quanto as de violência física). "Donbass" parece sempre ir longe demais, em tudo,
mas isso se percebe em especial em uma sequência abjeta envolvendo um homem que
desafiou o governo e é exposto em praça pública. Atado a uma placa dizendo algo
como "Voluntário para ser fuzilado", o sujeito é entregue à fúria de uma população pouco
esclarecida e despolitizada, que o violenta, humilha e tortura, em um
linchamento que todos nós sabemos que é bem possível de acontecer no mundo
atual (e não só na Rússia e Ucrânia).
Bastaria um minuto de cena – dois no máximo – para o diretor
transmitir a ideia do quanto a atitude dos justiceiros pode ser execrável, mas Loznitsa
prolonga a sequência por tanto tempo que ultrapassa qualquer limite do
humanisticamente tolerável. Nota-se ali o quanto a segurança do cineasta em
seus próprios métodos de mostrar em sua "arte" a miséria do mundo é capaz de cegá-lo, afastando-o de sua intenção critica original;
o diretor e seu filme se tornam tão violentos quanto quem ele pretende recriminar.
Que tipo de denúncia de catástrofe social é essa, que investe com tanta
insistência no sofrimento alheio, de maneira quase voyeuse? Loznitsa pode ser até
um humanista em essência (e muitos de seus documentários e curtas atestam isso),
mas seu cinema de ficção toma em "Donbass" um rumo completamente oposto. Apesar de uma realização cinematográfica notável (como se Loznitsa fosse uma Leni Riefenstahl bem intencionada), espera-se que não seja o início de um perigoso caminho sem volta.
Alá. Você desistiu de publicar neste blog?
ResponderExcluirandei sem tempo, e agora tá quase sem estreia nenhuma... mas tô pensando em retomar assim que os filmes voltarem a estrear
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