Mia Wasikowska e Robert Pattinson em "Damsel" |
"Damsel" é uma paródia aos filmes sobre o Velho Oeste que se
propõe a ressignificar uma série de cânones típicos dos westerns clássicos. O
herói é desajeitado, sofre de úlceras e não aguenta sequer beber um gole de uísque;
a moça nada tem de frágil e é empoderada e destemida; o índio não é mocinho nem
bandido; o pároco não tem fé, é manhoso e carente de afeto.
Pela descrição, parece um material promissor para uma divertida comédia.
Mas o humor nonsense propositadamente de mão pesada e sem sutileza proposto
pelos irmãos David e Nathan Zellner é quase sempre tão pouco engraçado que os
risos surgem antes por constrangimento que por qualquer outro motivo. Mas o que isso importa? Afinal, ri-se, achando ou não graça; o que conta é que o filme, mesmo em sua grosseria, consegue se impor sobre o público, então a aposta da dupla de irmãos de humor duvidoso é vencida por eles, no fim das
contas.
A ideia de inserir uma personagem feminina empoderada não é nada
nova, como certamente parte dos jornalistas há de alardear ("Johnny Guitar",
não nos esqueçamos, é de 1954, e "Viva Maria!" é de 1965). Não é aí que está a novidade de "Damsel": está
na maneira como um filme tão mal compassado, que não dosa bem as cenas
de violência e drama com as de humor, consiga chegar até o fim segurando o espectador pelo
cabresto. Os irmãos Zellner subvertem os parâmetros clássicos de narrativa e, da sua maneira peculiarmente esdrúxula, conseguem que, com o tempo, a
estranheza de seu filme passe a ser vista como normalidade; o espectador até começa a se divertir em
algum nível com toda aquela bobagem que está na tela.
(Há, no entanto, ao menos uma cena que arranca risadas por ser verdadeiramente divertida: quando Robert Pattinson entoa uma cançoneta de melodia primária e versos mais pobres ainda, que compôs para sua amada. O ator, aliás, se mostra mais competente a cada novo filme.)
Os diretores, ao que parece,
sabem muito mais o que estão fazendo do que deixam transparecer. Por menos que se goste do filme (que recebeu algumas vaias
ao fim da sessão para a imprensa), é preciso reconhecer que é um trabalho original
de duas mentes ousadas – além de assustadoramente autoconfiantes. Ter a pachorra
de fazer um filme como "Damsel" é algo digno de admiração. Pode ser uma das
comédias menos genuinamente engraçadas já feitas, mas conseguir que um filme desses dê as
cartas da maneira como ele o faz, a despeito de suas fraquezas, é algo que merece respeito.
(Zentralflughafen THF, Karim Aïnouz)
"Aeroporto Central" é o nome do documentário que marca a
volta do cearense Karim Aïnouz à Berlinale (a última vez em que ele apresentou um longa no evento
foi em 2014, quando disputou o Urso de Ouro com "Praia do Futuro"). Seu novo filme,
exibido fora de competição, mostra o aeroporto de Tempelhof, em Berlim, concebido
por Hitler para ser o maior do mundo, mas que acabou se tornando um grande
elefante branco depois da Segunda Guerra Mundial. Virou um lugar sem uma função
específica, nas últimas décadas servindo como área de lazer e práticas esportivas. De uns anos para cá, acumulou uma nova funcionalidade: tornou-se centro de acolhimento de refugiados de conflitos pelo mundo, sobretudo o da Síria; é em Tempelhof que grande parte dos sírios que conseguiram permanecer em solo alemão estão ainda hoje.
O foco do filme é em alguns desses personagens que tentam
começar uma nova vida em um país de cultura completamente distinta, muitas
vezes sozinhos e sem conhecer a língua alemã. Refugiados de guerra são sempre um material humano riquíssimo; filmar trechos de suas vidas resulta inevitavelmente em um
registro de enorme importância tanto histórica e quanto sócio-antropológica. Mas o filme de Aïnouz
nunca vai além desse registro; é uma plataforma exibidora de um bom tema, sem dúvida, mas nunca é verdadeiramente um bom filme.
Sua direção é convencional, acomodada, e o filme consegue a
proeza de ser cansativo e bem menos interessante que deveria, dado o material com o qual trabalha. A opção por uma
câmera e uma montagem discretas pode até ser louvável, no sentido em que
prioriza os personagens e não chama atenção para si. Por outro lado, há uma certa indolência nessa postura de deixar o
filme todo nas costas dos personagens, não fazendo nada além de mero artesanato rotineiro ao redor. "Aeroporto Central" é um filme um bocado frustrante, para dizer o mínimo.
Vem do Paraguai a melhor surpresa da Berlinale até o
momento. "Las Herederas", de Marcelo Martinessi, mostra a história de uma
mulher que se reencontra consigo mesma já na terceira idade, depois de anos de
uma vida rotineira cuja falta de novidades a levou à depressão e a uma vida
quase vegetativa.
A trama se passa na confortável casa de duas lésbicas, Chela
e Chiquita, que há anos vivem juntas, mas sem "dar bandeira" de que são
amantes. Afundadas em dívidas, as duas colocam os móveis e louças da mansão à
venda. O amor entre elas ainda existe, mas não o fogo sexual; Chela parece o tempo
todo incomodada com a presença e as insistências de afeto de Chiquita. Quando
esta vai parar na prisão por conta de dívidas no banco, é ao mesmo tempo um
choque e um alívio para Chela, que vê ali uma chance de voltar a se empolgar
com a vida.
O filme, estreia do diretor em longas, é
lento e contido, mas acertadamente delicado ao falar dos temas que se propõe
debater. É um filme bonito sobre voltar a si após muitos anos devotados a um relacionamento. Talvez pudesse, também, trazer à personagem um certo despertar político, que fizesse Chela dar mais atenção ao mundo fora do ambiente burguês ao qual ela se habituou ao longo da vida. Mas é o tipo de exigência que não se pode fazer a um filme que não se propõe a esse tipo de questão. A jornada de Chela, afinal de contas, é antes voltada para uma redescoberta íntima, pessoal, que para o mundo que a rodeia.
A lamentar apenas que o roteiro tenha algumas soluções que soam "fáceis" demais – o envolvimento
de Chela com uma moça mais jovem, por exemplo, podia ficar em um campo do
sugestivo ou imaginário, mas Martinessi torna a situação palpável demais, sem
necessidade nenhuma (parece o tipo de situação "corrigida" em alguma oficina de
roteiro, essa praga que empobrece tão frequentemente filmes que poderiam ser
bem melhores caso seguissem os instintos originais dos roteiristas). Mas
isso não é tão sério; em sua lentidão e seus leves tropeços, Martinessi
consegue criar uma personagem cativante e um filme respeitável, sobre o quanto
situações adversas por vezes podem ser grandes lições.
Ana Brun, no papel de
Chela, tem uma atuação exemplarmente introspectiva, em total consonância com o estado de espírito pós-depressivo da personagem; outras atrizes talvez incorressem no erro de enfatizar demais suas expressões e reações (segundo o site IMDB, é sua primeira experiência como atriz). É uma bela performance, que
tem tudo para deixar Berlim merecidamente premiada.
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