James Franco dirige e estrela "Artista do Desastre" |
Em "Artista do Desastre", temos Tommy Wiseau, um homem que
ama o cinema acima de tudo. No entanto, sem ter a menor noção do quão pouco
talentoso de fato é, insiste em se achar capaz de fazer filmes do mais alto
nível. Em "Florence", a cantora desafinada, também por amor à música, ilude-se
de que com muito treino é capaz de cantar com a mesma perícia das grandes
intérpretes líricas. Tanto Tommy quanto Florence são esforçados: sabem que não
se chega longe sem empenho. Mas são dois casos em que a vontade de vencer na
profissão não basta: a completa inaptidão de ambos para o ofício que tanto
adoram não permite que se tornem grandes.
E, no entanto, ambos conseguem momentos de êxito e ser
reverenciados... mas não pelos motivos que gostariam. A "arte" que produzem é
ridícula a tal nível que acaba os tornando pessoas risíveis – se não exatamente
"artistas", viram ao menos entertainers
de espetáculos grotescamente divertidos. E conseguem fãs.
Mas a maneira como encaram o sucesso por vias inusitadas é
diferente em Florence e em Tommy. A cantora vivia em uma época em que predominava
uma visão aristocrática, elitista, da arte; os artistas prestigiados eram os
que mostravam capacidade técnica e inspiração criadora – então Florence, após
ficar ciente de não ser apreciada por esses
méritos, sofre intensamente. Mas ao fim, sente-se vitoriosa, porque apesar de
tudo, fez ao longo da vida o que amava: "Eu cantei!", ela diz, no leito de
morte.
Já Tommy é fruto de uma outra época, em que a sensibilidade
pop tornou o que é de “bom gosto” muitas vezes pedante e antiquado; hoje em
dia, o tosco e o grotesco têm por vezes um status ainda maior do que uma arte
mediana – ou boa, porém não inovadora. E Tommy compreende isso (ainda que a
contragosto, já que seu sonho era ser um gênio) e aceita a maneira como é
exaltado; passa, inclusive, a capitalizar em cima de sua própria fraqueza – e explorar
isso.
Mas talvez o maior elo entre os dois personagens venha do fato
de serem blindados de suas incompetências por uma redoma de ilusão. Muitos
aspirantes a artista desistem da carreira ao notarem que não levam jeito para a
coisa, mas não Florence e Tommy – pelo simples fato de não saberem de sua
incapacidade. No caso de Florence, ela vive isolada da realidade graças ao amor
do marido, que, com pena do sofrimento que a realidade dura poderia lhe causar,
a deixa completamente alienada a respeito de suas potencialidades musicais. Já
Tommy, certamente por em algum momento ter jogada na cara a sua própria
incompetência, forja para si um mundo fantasioso muito particular – que ele
chama de “meu universo” – no qual ele é um gênio.
Cria inclusive uma carapaça: a persona excêntrica e
autoconfiante, que na cara dura rejeita as críticas “injustas” que recebe pela
frente. Quando vemos Tommy no set de filmagem repelindo as
sugestões do resto de uma constrangida equipe, a recusa vem de uma crença
genuína de que ele de fato tem a razão. E quando, no começo do filme, o
personagem urra “Stellaaaa!” (uma cena hilária) em um workshop de teatro, fica
claro que Tommy tem certeza de que está fazendo uma arte da mesma estatura da que Marlon
Brando fazia.
O estilo de atuação dos atores do Método, sempre de fundo freudiano,
cheio de pathos e dramas interiorizados,
tende a ficar no fio da navalha entre a genialidade e o ridículo. Como há
poucos Marlon Brandos e James Deans pelo mundo, muitas vezes Stanislavski levado
às últimas consequências resulta em grandes vexames. É preciso muita cautela ao
utilizá-lo.
James Franco sabe disso muito bem, e a grande prova disso
foi quando ele próprio deu vida a Dean, no início de sua carreira, no telefilme
"James Dean" (2001). Ali, nas cenas de choro, ele mostrava ter ciência de que
não podia ir longe demais no extravasamento de seus fantasmas pessoais. Ia até
onde seu potencial conseguia e parava por ali – mesmo que ficasse claro que um
abismo distanciava seu talento daquele do ídolo morto nos anos 50. Mas Franco tratava
de compensar suas fraquezas justamente naquilo em que ele tem de mais valioso
enquanto ator: o charme. Quando seu Dean abria o sorriso, Franco sabia que
estava em pé de igualdade com o Dean original, e era nessas cenas que ele se
redimia dos pontos mais frágeis de sua performance. Franco é um ator esperto e bastante inteligente.
Em grande parte de seus filmes, aliás, o defeito de Franco é
confiar em excesso no próprio magnetismo, como se fosse algo infalível e sempre irresistível;
muitas vezes, porém, soa arrogante e cansativo. Mas em "Artista do Desastre", ele
não precisa recorrer tanto ao charme pessoal para que sua atuação seja cativante;
sabe que tem um personagem extraordinário nas mãos e (como diretor do filme)
compreende exatamente até onde deve ser "simpático". Desta vez, o ator não precisa seduzir
o público abrindo seu amplo sorriso (que é exatamente o que faz seu irmão, Dave
Franco, que ainda depende muito dos atributos físicos para conquistar o
espectador; ainda tem muita técnica a aprender). James Franco sabe que possui outras ferramentas ao seu dispor para compor seu personagem (a fisicalidade, por exemplo) e está ciente de que as domina.
Os irmãos Dave e James Franco em cena |
O papel de Tommy Wiseau é dificílimo porque pode pender para
o excesso, o caricatural. E exige do intérprete uma autoconfiança que existe na
personagem a partir de uma total falta de razões para ser autoconfiante. E além
disso, o que talvez seja mais desafiador: pede que ele tenha uma boa performance
ao imitar um ator... tendo uma performance ruim. E Franco acerta praticamente
em todas as cenas, sem soar uma caricatura do caricato Tommy Wiseau da vida
real – no fim do filme, quando cenas do original são exibidas lado a lado com
as versões de Franco e sua equipe, fica evidente o quanto bons atores, ainda que
interpretando maus intérpretes, são um espetáculo bem mais rico e interessante.
Porque há arte na imitação bem feita, que não pretende apenas reproduzir ou se
apropriar do imitado, mas recriá-lo em um a nova visão, autoirônica mas
respeitosa, que é exatamente o que Franco faz. Seu Tommy Wiseau é mais que um
simples entertainer malgré lui, como
o da vida real: é de fato uma criação artística.
A atuação tem, no entanto, uma falha: o sotaque "indefinido"
de Tommy parece em certas cenas mais pronunciado (e com mais erros gramaticais)
que em outras partes do filme. E enquanto diretor, Franco nem sempre consegue
ir além de uma encenação sem diferencial – falta-lhe um estilo visual mais
apurado. Mas o roteiro é ótimo e acerta em não mostrar Tommy como mero personagem
de circo de horrores; percebemos sua humanidade. E o filme também acerta no que
"Florence" também era certeiro (e "Ed Wood", ao contrário, não debatia tanto,
por ter outros interesses): o quão justo é roubar de alguém a chance de
lutar por seus sonhos? E, afinal, cada um não deveria ter o direito de fazer o que gosta?
No final, por pior que seja a qualidade da obra de Tommy (como foi a de Florence), ambos entraram para a posteridade – ao passo que muitos que compreensivelmente desistiram antes da hora, sucumbindo às exigências da vida (e do mercado), são mais um na multidão. Ainda que por vias tortas, a persistência é muitas vezes realmente capaz de tornar as pessoas vitoriosas.
No final, por pior que seja a qualidade da obra de Tommy (como foi a de Florence), ambos entraram para a posteridade – ao passo que muitos que compreensivelmente desistiram antes da hora, sucumbindo às exigências da vida (e do mercado), são mais um na multidão. Ainda que por vias tortas, a persistência é muitas vezes realmente capaz de tornar as pessoas vitoriosas.
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