Em celebração ao centenário de Ingmar Bergman, em julho de 2018, republico aqui uma reportagem minha sobre o relançamento do livro "Lanterna Mágica" no Brasil, publicada no jornal Valor Econômico em março/2013.
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Ingmar Bergman, que faria 100 anos em julho de 2018 |
Bergman além da persona
Reza a lenda que Ingmar Bergman (1918-2007) era um cineasta
obscuro, conhecido apenas em sua Suécia natal, até que os críticos de São Paulo
o "descobriram", em 1953. Na capital paulista, jornalistas se
impressionaram com as qualidades de "Noites de Circo", exibido em uma
mostra: mesmo na longínqua Escandinávia, aquele diretor falava de temas
universais - a morte, a vergonha, o medo - e exibia uma técnica cinematográfica
admirável. Só anos mais tarde, o cineasta se tornaria conhecido no resto do
mundo, virando em seguida um mito - um dos maiores do cinema.
Ou talvez não tenha sido bem assim. "Interessante, não
conhecia essa história!", diz Jan Holmberg, diretor da Fundação Ingmar
Bergman, em Estocolmo, que cuida de preservar a memória do diretor e seu
legado. "Mas seria mais justo dizer que foram os franceses que o
'descobriram', no sentido em que distribuíram seus filmes ainda no início dos
anos 50, escreveram boas críticas e lhe deram seu primeiro prêmio importante,
em Cannes, 1955, por 'Sorrisos de uma Noite de Amor'. Mas não duvido que o
Brasil tenha descoberto Bergman por si só, independentemente disso. Aliás, a
América do Sul é de longe onde é mais apreciado", completa.
De fato: quase seis anos depois da morte do cineasta, sua
obra ainda desperta grande interesse no público brasileiro. Uma bem-sucedida
retrospectiva de seus filmes percorreu três capitais no ano passado.
Recentemente, o documentário "Liv e Ingmar" revelou aos fãs detalhes
do romance com a atriz Liv Ullmann. E agora chega às livrarias uma nova edição
de sua autobiografia, "Lanterna Mágica" (Cosac Naify, 320 págs.).
Lançado pela primeira vez no Brasil em 1988, em edição logo
esgotada, o livro ganha agora nova tradução, de Marion Xavier. Traz também um
prefácio que reproduz artigo publicado no fim dos anos 80 no "New York
Times" escrito por Woody Allen, um dos cineastas que mais compreenderam (e
admiraram) a obra bergmaniana.
Ernst Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, no verão de 1918,
filho de uma enfermeira e um severo pastor luterano. O livro comprova o que, no
fundo, todos já imaginavam: a angústia, o desespero e os medos que tanto
assombravam personagens de filmes como "Persona" (1966) e
"Gritos e Sussurros" (1972) tinham como inspiração os fantasmas do
próprio diretor. Não são poucas as passagens em que descreve cenas de
humilhação, ódio e intenso sofrimento - na infância, sobretudo. Como diz Allen
em seu inspirado prefácio, Bergman se mostra "um ser altamente emocional,
sem grande facilidade para se adaptar à vida neste mundo frio e cruel".
Assim que ficou adulto, Bergman fugiu de casa e foi
trabalhar no teatro. Seu talento foi logo reconhecido e não demorou até que
estreasse como cineasta, com o drama agridoce "Crise" (1946). Foi
tateando técnicas naturalistas ("Mônica e o Desejo", em 1953),
expressionistas ("Noites de Circo") e elementos oníricos
("Morangos Silvestres", de 1957) que conseguiu chegar a um estilo
muito peculiar, com um sofisticado uso de recursos como close-ups e fades,
pontuando cenas não raro passadas em ambiente fechados e protagonizadas por
(belas) mulheres. O herói bergmaniano se tornou icônico: é antes de tudo um
atormentado que forja máscaras sociais como escudos defensivos - os conflitos
com outros seres (também atormentados e mascarados) são inevitáveis, e é fácil
entender por que há tantas falas ríspidas e cruéis espalhadas por toda a sua
obra.
O livro mostra que, como seus personagens, Bergman também
buscou mecanismos para se defender e se adaptar à vida. Era ainda garoto quando
descobriu na mentira um subterfúgio. "Bergman se proclamava um 'mentiroso
compulsivo e profissional', incapaz de separar ficção de realidade. E essa
falha admitida foi uma importante ferramenta para ele como artista",
afirma Holmberg. "O que não quer dizer, porém, que na biografia não haja
passagens verídicas - a maior parte provavelmente é. Mas são filtradas por uma
percepção própria. Ele nunca se furtou de dar tratamentos dramatúrgicos a
histórias. Aliás, as primeiras versões do livro, guardadas nos arquivos da
fundação, são ainda mais fictícias", conta.
Fictícias ou verdadeiras, muitas histórias do livro são
saborosas. É divertido imaginar, por exemplo, como foi o insólito encontro
entre o autor e Greta Garbo, outro grande mito sueco, diante do qual o diretor
ficou embasbacado: "Sua beleza era imortal". Mais tarde, porém,
reparar em um pequeno detalhe no rosto da diva fez que o entusiasmo cedesse
espaço à decepção: "Sua boca era feia!"
Há também interessantes relatos de sua tensa (mas sempre
cordial) relação com outra estrela conterrânea, Ingrid Bergman, nas filmagens
de "Sonata de Outono" (1978), e do convívio com Laurence Olivier,
quando foi a Londres dirigir uma peça (davam-se bem, mas quando o sueco ousou
criticar um filme do britânico a amizade esfriou abruptamente).
Em narrativa não linear, Bergman expõe-se em tom quase
sempre autodepreciativo, que sugere em geral um genuíno ódio de si, mas às
vezes um certo jogo de charme (o cineasta era um incansável sedutor). Revela
também detalhes de si que muitos prefeririam ocultar, como episódios
constrangedores envolvendo problemas gastrintestinais. E não evita mostrar um
lado obscuro: tinha rompantes de ira (certa vez foi multado por agredir um
crítico que lhe era hostil) e muitas vezes desejou a morte - a de desafetos e a
própria (mas dizia amar demais a vida para pensar em se privar dela). E em um
escandaloso caso da acusação de sonegação fiscal, em 1976, livrou a própria
cara, dizendo ter só assinado papéis sem lhes dar a devida atenção.
Às vezes, Bergman parece um monstro: reconhece não gostar do
pai, ter ódio do irmão e desprezar a irmã. Mas é especialmente desconcertante a
honestidade com que assume a indiferença pelos filhos (no livro, não fica claro
sequer quantos eles foram; é possível que alguns não tenham sido nem
mencionados). Paradoxalmente, é doce ao falar da mãe e da avó, de amigos e de
mulheres por quem se apaixonou. Também dá depoimentos saudosos de eventos
ocorridos no teatro - é sobre essa arte, e não o cinema, aliás, que ele mais
discorre.
É um tanto frustrante que fale tão pouco de seus filmes, mas
aqui e ali deixa escapar pílulas. Diz, por exemplo, não gostar (e com certa
razão) de "Face a Face" (1976) e "O Ovo da Serpente"
(1977). Confessa achar "O Sétimo Selo" (1957) desigual e, embora
jamais demonstre muita exaltação, deixa entrever orgulho por "Sorrisos de
uma Noite de Amor", "Persona" e "Gritos e Sussurros"
(de novo, tinha razão: são talvez seus três melhores filmes).
Bergman foi um grande profissional do teatro e, maior ainda, no
cinema. A julgar pela escrita, poderia também ter sido grande na literatura.
"Trabalhamos agora na publicação de seus escritos variados, que são
absolutamente maravilhosos", informa o diretor da fundação. "Às
vezes, acho-o até melhor escritor que diretor. Mas essa carreira em potencial
foi muito comprometida quando seus escritos antigos foram recusados por
editoras suecas: uma humilhação que ele jamais superou."