Norma Bengell no início de "Mar de Rosas" |
Tudo é ironia em "Mar de Rosas", a começar pelo título. A
promessa de um estado de coisas ideal, alegre e perfeito não poderia estar mais
distante do que o longa de Ana Carolina oferece. A primeira cena após os
créditos já introduz o espírito anárquico que se imporá por todo o filme: vê-se
um líquido farto e espumoso invadir a tela. Mas nada do "mar" sugerido no
título; é um fluido bem menos nobre – uma poça de urina, caudalosa e amarelada,
jorrada por uma adolescente (e respingando em sua sandália). A jovem, Betinha, se
alivia em uma parada na viagem que faz com os pais na via Dutra, uma pausa que
também atenua seu tédio mortal diante das discussões conjugais nos bancos
dianteiros.
Na primeira parte do filme, a real protagonista parece ser a
mãe da garota, Felicidade (outra ironia), uma quarentona em crise já cheia de aturar o marido machista e insensível. Em um hotel
no Rio, onde o casal tenta se acertar, o convívio é impossível; em um rompante
de ódio (e os personagens têm vários, a todo instante), Felicidade tenta matá-lo
e volta à estrada, levando consigo a filha (já não tão entediada assim).
O filme tinha tudo para se tornar, a partir daí, um drama
libertário, de inspiração e motivações feministas, bem ao gosto de um certo cinema
“no feminino” praticado nos anos 70. Mas Ana Carolina mostra um louvável desapego
a qualquer modismo – e parece menos ainda interessada em permitir que seu longa
se torne o que o público espera dele; quem dá as cartas é ela, e não há
qualquer possibilidade de negociação. A essa altura, "Mar de Rosas" já virou um
road movie absurdista, com mãe e
filha tentando voltar a São Paulo em uma viagem marcada por toques de suspense,
mas sobretudo por um humor desconcertante, ora buñueliano ora à moda de Ionesco.
No caminho, Betinha constantemente faz sabotagens contra a mãe,
com graus variadíssimos de crueldade. É divertidamente pueril ao desenhar fios
de barba no queixo de Felicidade, atrapalhando-a no trânsito, mas atinge níveis
de assombrosa truculência ao atear fogo no vestido e nas pernas da própria mãe
em um posto de gasolina (chegará ao ápice da brutalidade mais adiante, ao
despejar um caminhão de terra sobre o corpo materno). Curiosamente, porém, o longa
não parece vitimizar Felicidade e nem condenar Betinha; ao fim de cada "travessura"
da menina, a diretora toca o filme adiante, como se nada daquilo tivesse lá
tanta importância. Como em um cartoon,
em que bombas explodem na cara dos personagens, na cena seguinte já está tudo
certo – e segue-se em frente.
O circo de personagens excêntricos se completa quando mãe e
filha conhecem Orlando, um sujeito rude que lhes dá carona na estrada, e um
histriônico casal de classe média interiorano, Nióbi e Dirceu, que eles encontram
em um vilarejo no caminho. Em breve, o inusitado grupo estará confinado no huis clos de uma sala de estar pequeno-burguesa,
com todos falando ao mesmo tempo chavões e frases de efeito – e ninguém
prestando atenção a nada dito pelos demais.
Ali, de repente o público passa a notar que Felicidade não é
o centro do filme, mas sim Betinha, a espectadora enfastiada dos fatos grotescos
e surreais (dos quais, é bem verdade, ela também participa) naquele universo de
loucos. Todo o nonsense que surge na
tela é a percepção daquela adolescente sobre uma realidade que, para ela, não
faz o menor sentido.
"Mar de Rosas" estreou em circuito em 1978, e não se pode
ignorar o contexto sócio-político em que o longa foi concebido e lançado. Ana
Carolina já contou que o filme é bem pessoal, inclusive no sentido freudiano de
que toda garota, alguma vez, já quis a morte da própria genitora (a mãe da
cineasta, aliás, é creditada como uma das roteiristas – o script traz trechos
de cartas escritas por ela). Mas no filme, o ódio incontido de Betinha em
relação à figura materna ganha significação (e ressonância) para além das
explicações meramente psicanalíticas. Em um nível mais simbólico, a ira da
menina pode ser apreendida como parte de um movimento bem mais amplo,
geracional, de um grupo de jovens que, entre meados e fins dos anos 70, estavam
sedentos por um novo mundo.
Para aqueles jovens, as gerações anteriores sugeriam a ideia
de decrepitude. Não se identificavam em nada com os "velhos" de tendência mais conservadora,
que simbolizavam a caretice comportamental e a repressão (apoiando, inclusive, a
terrível ditadura que dominava o país). Mas tampouco os "velhos" libertários, os
que resistiram e lutaram diretamente contra a opressão, eram um exemplo para esses
jovens; àquela altura, as revoluções sessentistas e o flower power cheiravam a mofo e derrota – os combatentes de 1968 foram
ineficazes ao articular seu próprio discurso, deixando seus herdeiros sem
compreender em quase nada o sentido de sua luta. No contexto mundial mais
materialista e menos idealista da segunda metade dos anos 70, a juventude
desejava ruptura total.
Não é à toa que, no fim, Betinha empurra de um trem em
movimento os dois representantes dessa "velharia" a ser superada: Orlando e
Felicidade, os dois símbolos opostos de um mundo "arcaico". Tal gesto – seguido
de uma bem dada "banana" ao espectador – prenuncia a geração que estava por vir
a partir dos anos 80: jovens individualistas, hedonistas, avessos à “chatice” dos
discursos politizados.
Mas "Mar de Rosas" é, ao seu modo, um filme engajado – sua
ação "política" está em sua anarquia, no seu deboche. E é prodigiosa a
inteligência com que a diretora constrói (e filma) grande parte das situações
dramáticas, de cunho metafórico. Mesmo as cenas que parecem mais caóticas são,
no fundo, bastante estruturadas, sobretudo as na casa de Nióbi e Dirceu. Ali, o
filme parece perder de vez qualquer conexão com a lógica, mas em cada
gargalhada aparentemente fora de hora, em cada frase repetida pelo que parece
ser mero cacoete, em cada divagação pretensamente descontextualizada, há uma
intenção de mordacidade, de sátira por trás.
Os grandes Ary Fontoura e Myriam Muniz em "Mar de Rosas" |
E há cenas de fato memoráveis: como esquecer quando Myriam Muniz, sentada sobre o monte de terra em sua sala, é tomada por uma epifania religiosa e faz seu sermão da montanha particular, esfregando poeira no rosto e bradando sobre a necessidade de "o iníquo ficar inócuo, o histérico ficar histórico"? Ironicamente, porém, é também naquele ambiente que o longa traz suas maiores fraquezas; a certa altura, o excesso de ruídos, ideias e alegorias começa a se tornar um peso que a estrutura criada por Ana Carolina nem sempre consegue segurar – o ritmo decai.
Os atores, porém, sustentam o espetáculo com brio. A grande Myriam
Muniz recebe em Nióbi uma personagem sob medida para seu talento expansivo (ela
não fala: berra). Ary Fontoura, como Dirceu, consegue a proeza de não se deixar
eclipsar, assim como Otávio Augusto, eficiente como o truculento Orlando. E o
que dizer de Cristina Pereira, como Betinha? Ela não estava longe dos 30 anos
quando o filme foi feito, mas está tão perfeita em cada detalhe, nos gestos juvenis
e nas expressões de escárnio, que ninguém percebe que ela não é uma adolescente.
E é notável a entrega de Norma Bengell à personagem Felicidade, sobretudo se
pensarmos que ela talvez fosse uma escolha duvidosa para o papel (às vezes passivo
demais para a persona que a atriz criou
ao longo da carreira). Mas Norma alterna com sabedoria seus instantes de vulnerabilidade
e de força; é um de seus grandes momentos.
Olhando hoje, à distância, soa quase heroico que uma mulher
cineasta (ainda raras no Brasil dos anos 70), em seu primeiro longa de ficção,
demonstrasse tamanha autoconfiança em sua capacidade como realizadora. Ana
Carolina não era uma iniciante: já tinha no currículo dezenas de documentários,
como "Getúlio Vargas". Mas segurou firme sua primeira chance ficcional, sem
abrir mão de suas intenções iniciais nem de sua visão de "autora" – algo que,
aliás, ela manteria ao longo de toda sua admirável carreira. Dirigiria,
inclusive, mais dois filmes nos anos 80 ("Das Tripas Coração" e "Sonho de
Valsa") que comporiam com "Mar de Rosas" uma trilogia personalista. Mas jamais
outra vez ela conseguiria resultados tão satisfatórios como em sua ficção de
estreia (embora anos mais tarde, com “Amélia”, ela chegasse bem perto disso).
Em
"Mar de Rosas", Ana Carolina não nega sua identificação com Betinha: prega
peças o tempo todo no espectador, também com níveis variados de violência. O
filme parece aqueles sonhos (pesadelos?) que começam com alguma lógica, mas que
escapam com tamanha desenvoltura ao nosso "controle", tomando rumos tão
inusitados e cedendo espaço a tantas digressões, que, por fim, já mal nos
lembramos de como tudo começou. Mas é um "pesadelo" que temos com prazer – meio
masoquista, meio sádico, mas definitivamente um prazer. O longa não tem
antecessores diretos (ao menos facilmente identificáveis) e não parece ter
deixado descendentes, sequer entre os da trilogia; é ímpar. E aos que tentam
incluí-lo em rótulos ou categorizações fáceis, ele repete o gesto final de sua
protagonista: dá uma "banana" e ri, com deboche.
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