A rigor, o grande
crime de "Assassinato no Expresso do Oriente" é o misterioso homicídio de um passageiro
de um célebre trem europeu. Mas no filme de Kenneth Branagh, há um
delito ainda pior: a opção por adaptar uma obra de Agatha Christie quase sem
humor e nem um pingo de leveza; o longa é espantosamente pesado e sisudo.
Branagh injeta análise
social e existencialismo onde, no material original, prevalecia a futilidade e
o prazer descompromissado. Quis trazer "densidade" e um elo com o mundo de 2017
ao que era expressamente datado e destinado ao prazer frívolo.
A intenção do diretor pode até ter sido boa, mas não o resultado. Porque o "Expresso do Oriente" de Branagh não é nem fútil para promover o tipo de excitação que os livros de Agatha Christie (e filmes que se baseiam neles) oferecem como poucos, mas também nem denso a ponto de o público tomar realmente o longa como uma obra ancorada na realidade moderna, com temas importantes devidamente desenvolvidos. Ao fim, parece apenas um drama exaustivo e um tanto deprimente, que tenta inserir questões atuais (e inexplicáveis cenas de ação e violência) para ganhar adesão dos espectadores de hoje, que não toleram mais filmes com valores e mesmo um ritmo da era pré-internet.
Agatha Christie era
uma mestra do entretenimento, mas não era uma artista que esmiuçava grandes
temas; o sucesso de sua literatura se deve ao prazer mais imediato, leve e
simples da leitura sem maiores responsabilidades estéticas ou temáticas. De
maneira indireta, porém, suas obras teciam, sim, comentários sociais, alguns
até bastante refinados. Com uma ajudinha da psicologia deliciosamente botequinesca
usada pelo detetive Hercule Poirot, Christie falava muito da natureza humana.
Mas era sempre uma abordagem tangencial – e arejada, cheia de bom humor. Mesmo as intrigas bem arquitetadas e as soluções algo mirabolantes de alguns crimes jamais eram criadas para serem levadas tão a sério; os próprios métodos "infalíveis" de Poirot são um produto claramente restrito ao mundo da ficção. Assim, querer tornar alguma obra de Christie em uma denúncia social solene e politizada
é basicamente não compreender nada do sentido de sua literatura. Como, parece, foi o caso de Branagh.
A graça de adaptar Christie para o cinema – especialmente uma trama que se passa em um trem altamente luxuoso, na década de 30 – é explorar as possibilidades que isso permite, sobretudo em termos de abusar do saudosismo e de recorrer sem amarras a um charme antiquado, fora de moda. Em 1974, Sidney Lumet adaptou a mesma trama e investiu todas as fichas nisso. Foi um acerto apenas parcial: talvez o livro não fosse tão cinematográfico quanto se pensava. Seu "Expresso do Oriente" não era em hipótese alguma um bom filme (é um dos mais fracos de sua carreira – o que não quer dizer que não tenha qualidades, já que Lumet foi um diretor de excepcional talento). Tinha, sim, várias boas cenas isoladas, todas de uma elegância pomposa à moda antiga, com algumas falas bem divertidas ditas por atores extraordinários. No todo, porém, o filme nunca funcionava muito bem – era estranhamente cansativo, quase tão emperrado quanto o trem do título em meio à neve balcânica –, apesar de ter nomes como Ingrid Bergman, Vanessa Redgrave, Lauren Bacall, Rachel Roberts, Wendy Hiller, John Gielgud, Sean Connery, Albert Finney e muitos outros (o elenco era um nocaute!).
Ok: Branagh
também tem à disposição alguns astros, como Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz,
Johnny Depp e Judi Dench, mas ao contrário de Lumet, ele subutiliza seu elenco
estelar. As melhores cenas, Branagh malandramente reserva a si mesmo. Como grande ator que
é, ele consegue segurar a atenção, mas surge a questão: qual o sentido de ter tantos astros em
um filme se sequer uma grande cena é ofertada a qualquer um deles? Michelle
Pfeiffer tem um pouquinho mais do que o resto e por isso ela é a melhor do
elenco (é mais bem-sucedida, inclusive, que Lauren Bacall na primeira versão,
que era apenas uma presença visual e uma alusão viva ao cinema de outra era, mas nunca conseguia fazer sua falastrona
senhora Hubbard "acontecer" de fato). Mas, no todo, o "Assassinato no Expresso do Oriente" de Branagh é um assombroso desperdício de altos cachês.
Michelle Pfeiffer em cena do filme |
No contexto mais socialmente inquieto do filme de Branagh, a revelação final do crime praticado por vários personagens ganha um significado completamente distinto – talvez a contragosto do diretor. Embora haja ali a tomada de consciência por Poirot de que nem tudo é completamente "bom" ou "mau", a moral da história vai no sentido inverso: subentende-se que há, sim, um Mal, e que ele precisa ser combatido, nem que usando as mesmas táticas que ele utiliza. Poirot compreende que, ao fazê-lo, as pessoas tidas como "do Bem" de certo modo se assemelham ao inimigo, passando a integrar algum lugar entre os dois extremos. Mas algumas vezes é preciso dar de ombros: certas situações simplesmente não podem ser resolvidas de outra maneira.
Do que Branagh está falando exatamente quando inclui um personagem que personifica o Mal? Provavelmente seja uma alegoria a Trump, aos extremismos, ao pensamento de direita que renasce hoje com força. Mas se for isso mesmo, será que ele de fato defende que todos nós nos unamos e façamos uso das táticas baixas desses mesmos inimigos para combatê-los? (ou seja: sugere uma justiça com as próprias mãos, quando as leis não se encarregam de punir quem deveria?). Se for isso, é uma conclusão perigosa – não estaria tão longe da apologia ao linchamento que a versão de Lumet tão elegantemente soube evitar. Não era o filme mais adequado para sugestões tão graves, que demandariam mais desenvolvimento.
Ou será que leituras como essa são apenas fruto de um descontrole do filme, que tomou vias tão austeras que inserem o espectador em um clima pesado e nebuloso, a ponto de não ver possibilidades de interpretação em um nível mais prosaico, como o da versão de 1974? Fica realmente difícil ter certeza; talvez o filme de Branagh, no fundo, nem tivesse tantas pretensões; os rumos que tomou, no entanto, fazem crer que sim.
Todo o filme de Branagh se ancora em questões impactantes de 2017; usa as várias nacionalidades dos passageiros para refletir sobre xenofobia e intolerância. O diretor até muda alguns personagens, optando por incluir, por exemplo, um negro (os que exigem a tão falada "representatividade" no cinema vão adorar, mas é uma aberração em termos de verossimilhança histórica; um ambiente elitista como o Orient Express dificilmente comportaria afrodescendentes). Há também um professor alemão de tendências nazistas (Willem Dafoe, cujo imenso talento é jogado fora em cenas decepcionantes) e a troca de nacionalidade da missionária religiosa, que no primeiro filme era sueca e agora se tornou espanhola (a não ser pelo fato de justificar o sotaque de Penélope Cruz, a mudança não leva a lugar nenhum).
Do que Branagh está falando exatamente quando inclui um personagem que personifica o Mal? Provavelmente seja uma alegoria a Trump, aos extremismos, ao pensamento de direita que renasce hoje com força. Mas se for isso mesmo, será que ele de fato defende que todos nós nos unamos e façamos uso das táticas baixas desses mesmos inimigos para combatê-los? (ou seja: sugere uma justiça com as próprias mãos, quando as leis não se encarregam de punir quem deveria?). Se for isso, é uma conclusão perigosa – não estaria tão longe da apologia ao linchamento que a versão de Lumet tão elegantemente soube evitar. Não era o filme mais adequado para sugestões tão graves, que demandariam mais desenvolvimento.
Ou será que leituras como essa são apenas fruto de um descontrole do filme, que tomou vias tão austeras que inserem o espectador em um clima pesado e nebuloso, a ponto de não ver possibilidades de interpretação em um nível mais prosaico, como o da versão de 1974? Fica realmente difícil ter certeza; talvez o filme de Branagh, no fundo, nem tivesse tantas pretensões; os rumos que tomou, no entanto, fazem crer que sim.
Todo o filme de Branagh se ancora em questões impactantes de 2017; usa as várias nacionalidades dos passageiros para refletir sobre xenofobia e intolerância. O diretor até muda alguns personagens, optando por incluir, por exemplo, um negro (os que exigem a tão falada "representatividade" no cinema vão adorar, mas é uma aberração em termos de verossimilhança histórica; um ambiente elitista como o Orient Express dificilmente comportaria afrodescendentes). Há também um professor alemão de tendências nazistas (Willem Dafoe, cujo imenso talento é jogado fora em cenas decepcionantes) e a troca de nacionalidade da missionária religiosa, que no primeiro filme era sueca e agora se tornou espanhola (a não ser pelo fato de justificar o sotaque de Penélope Cruz, a mudança não leva a lugar nenhum).
O Poirot
de Branagh começa o filme algo clownesco – seu bigode exagerado é um adereço quase
circense. Ele é um sujeito altamente perfeccionista, cujos TOCs o fazem
sofrer em todos os campos da vida, menos na hora de solucionar crimes imperfeitos;
aliás, a atenção para as falhas é o que o torna tão hábil em sua área de
atuação. Mas depois de embarcar no trem, se torna um homem circunspecto, socialmente
consciente (ele só aceita investigar o crime para que um negro ou um latino não
sejam injustamente condenados só por sua etnia) e atormentado por fantasmas
relativos ao próprio passado. Torna-se um personagem angustiado; parece desvendar mistérios por um amor elevado à Justiça e à Verdade, e não pelo simples e exibicionista prazer de solucionar
enigmas que ninguém mais conseguiria (que é o que motivava o Poirot dos livros). O detetive de Branagh torna-se
mais sisudo ainda que todo o resto do filme. É uma performance bastante sólida,
mas não é de modo algum Hercule Poirot, o homenzinho belga intrometido que
Albert Finney soube criar com ironia e enorme talento na versão de 1974. Tornar Poirot um homem honrado e "moralmente superior" é aniquilá-lo enquanto personagem. Seria mais honesto se o detetive interpretado por Branagh tivesse sido rebatizado com outro nome.
O "Assassinato
no Expresso do Oriente" de 2017 é um filme mal formatado e com um discutível senso de estilo.
Há computação gráfica demais, cortes e cenas mais ligeiros que o desejado, atuações "anos 2010" em excesso. Tudo isso só o
desprende ainda mais do mergulho no passado que a adaptação poderia ser. Branagh se preocupou mais com o poder envolvente da trama (que era uma falha na versão de Lumet, onde ninguém dava a mínima à intriga) e com o fundo dos personagens, mas em termos formais seu filme carece de imaginação. O máximo
de ousadia estética se dá em uma dispensável alusão à Última Ceia na cena da
revelação final ou quando a câmera filma por cima, em
plongée, as cenas passadas na cabine do cadáver (a não ser por uma questão de maneirismo puro e
simples, não faço ideia de que motivos teriam levado o cineasta a essa opção de
enquadramento).
Se o trem de Lumet não chegava ao destino final porque, de tão leve, flutuava e saía dos trilhos antes do meio do caminho, o de Branagh atravessa o trajeto todo com avidez demais, em um passeio funcional, mas saculejante e sem grandes paisagens pela janela. Se é para viajar assim, não seria melhor pegar um avião?
Se o trem de Lumet não chegava ao destino final porque, de tão leve, flutuava e saía dos trilhos antes do meio do caminho, o de Branagh atravessa o trajeto todo com avidez demais, em um passeio funcional, mas saculejante e sem grandes paisagens pela janela. Se é para viajar assim, não seria melhor pegar um avião?