quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Crítica: "O Estranho que Nós Amamos"

(The Beguiled, 2017), de Sofia Coppola

Cena de "O Estranho que Nós Amamos", de Sofia Coppola

Por muito tempo, "Encontros e Desencontros" parecia ser o filme mais pessoal de Sofia Coppola. Mas "O Estranho que Nós Amamos" vem mostrar que, no fundo, o posto talvez sempre tenha pertencido a "Maria Antonieta". A garota de boa índole, mas alienada e um tanto frívola do filme de 2006 pode até ter sido inspirada na nobre que morreu na guilhotina, mas agora fica claro que Sofia certamente buscou em sua própria personalidade elementos essenciais para criar a personagem.

A postura artística por trás de "O Estranho que Nós Amamos" é muito parecida com a que se esperaria da Antonieta de Coppola: imatura, que nega a complexidade do mundo. E que, na tentativa de passar uma mensagem "positiva", evita (ou melhor: censura) assuntos espinhosos; aborda apenas o que lhe convém e o que não lhe trará maiores problemas. É o tipo de filme que poderia ter sido dirigido por Antonieta caso ela tivesse acesso a uma câmera (é um alívio que o item mais moderno que Coppola lhe permitiu tenha sido um par de tênis All Star).  

Em seu novo longa, Coppola parte do mesmo material que rendeu o filme homônimo de Don Siegel, de 1971, que abordava temas como incesto, sedução de menores, escravidão, desejo sexual reprimido e inveja feminina. Claro: nos anos 70, não havia nem de longe o mesmo tipo de pressão do politicamente correto que temos hoje, então o cineasta criava com muito mais liberdade, sem medo de agredir ou ser ofensivo (é preciso reconhecer, por outro lado, que essa mesma liberdade foi justamente o que permitiu que muitos dos filmes de Siegel fossem tão reacionários, misóginos e homofóbicos; é o outro lado da moeda).

A cineasta não muda muito a trama propriamente dita, sobre um grupo de mulheres que vivem isoladas em uma casa, durante a Guerra de Secessão dos EUA, mas que acolhem um soldado inimigo ferido, movidas por caridade cristã (além de uma inegável vontade de reduzir o próprio tédio). Mas ela drena toda a marca anos 70 do longa de Siegel. Substitui-a por um ponto de vista mais com o pé na sociedade moderna. Ou seja: sai fora o aspecto machista em potencial da primeira versão, entra em cena a força da união feminina enquanto primeiro passo rumo a um real empoderamento.

É saudável – e até necessário – que o cinema moderno aborde temas inclusivos, libertários e até revisionistas de situações conservadoras. Mas o que Coppola faz é uma pasteurização do filme de Siegel; extrai o que ele tinha de mais interessante – seu caráter ambíguo, os personagens cheios de contradições, a textura sexual que toma conta das imagens – e substitui tudo pelos dois ingredientes menos adequados possíveis: moralismo e assepsia.

Segundo a diretora, sua intenção era dar "uma versão feminina" do mesmo material que levou Siegel a fazer um filme erotizado, que explorava a ambivalência dos comportamentos femininos em um nível quase maníaco. Mas se a ideia de Coppola era mostrar uma visão apenas "positiva" da conduta de mulheres, por que raios então ela escolheu justo uma história como a de "O Estranho que Nós Amamos", que se destaca justamente pela complexidade das personagens, que não raro se comportam de forma discutível, condenável, ainda que por vezes compreensível?

O longa de 1971 podia até ser sexista e "incorreto" em alguns níveis, mas assumia que a mente humana, feminina ou masculina, tem áreas por demais pantanosas, gostem-se delas ou não; a grande questão é justamente enfrentá-las. Já Coppola nega a existência dessas zonas mais obscuras da nossa natureza. Em nome de um feminismo de soluções fáceis e algo publicitário (que se baseia apenas em um "a união faz a força" que ignora as contradições envolvidas nos jogos sociais entre homens e mulheres - e mesmo apenas entre mulheres - ainda mais do século 19), redesenha ao seu bel prazer o que era um universo necessariamente imperfeito. Guardadas as devidas proporções, é como se alguém se propusesse a refazer um quadro de Picasso, "corrigindo" os traços do artista, tornando-os mais "aceitáveis". É uma atitude artística não apenas infantilizada: é também empobrecedora.

Não é que "O Estranho que Nós Amamos" seja terrível; sem a comparação com o longa de Siegel, seria apenas um filme insípido, esquecível. Mas quando Coppola vende que sua intenção era dar uma "resposta feminina" à "visão masculina" do anterior, ela arma para si uma arapuca: o filme perde autonomia e passa a fazer sentido praticamente só quando contraposto à versão de 1971. Eu não li o romance em que ambos se basearam, mas a referência primária acaba deixando de ser o livro de Thomas Cullinan e passa a ser o longa de Siegel. E, no "confronto", não me ocorre nem mesmo um só aspecto em que a versão de Coppola se coloque no mesmo nível de interesse da obra que a antecedeu.

A diretora corta algumas das cenas mais instigantes do anterior: uma visita às mulheres por soldados bêbados que não parecem muito interessados em ir embora; o ainda hoje chocante beijo entre o homem adulto e a pré-adolescente; a curiosa interação entre "prisioneiros", na conversa do macho capturado com a escrava das brancas. E faz ainda uma espécie de whitewashing, com o sumiço dessa personagem negra e de toda a questão escravista, que muitos consideram o pecado mais mortal da versão de Coppola.

É sem dúvida um equívoco - e sério -, mas quem dera fosse o maior do longa. É apenas um sintoma daquilo que eu acredito ser o problema fundamental, do âmago do projeto: a opção pela sanitarização do mundo. Que se nota na escolha dos temas, por certo, mas também em termos estéticos, resultando em uma assexualização generalizada. Enquanto as moças da versão de Siegel eram terrenas, carnais, com as faces ruborizadas pela tentação diante do homem desconhecido (o que há de errado, afinal, em sentir desejo?), as loiras aguadas de Coppola são figuras anêmicas, gélidas, como espectros que zanzam pela casa atrás apenas de futricos. De vez em quando, até se comportam e dão a entender que têm interesse sexual no rapaz, mas a diretora não consegue (não quer?) tornar isso perceptível visualmente (a fotografia escura de Philippe Le Sourd não ajuda: mal dá para ver o rosto das atrizes; o filme falha miseravelmente em obter um efeito semelhante ao da luz minimalista e revolucionária de "Barry Lyndon"). E ainda por cima, elas têm uma elegância de porte e uma alvura nas vestimentas que nada têm a ver com como provavelmente eram as garotas (mesmo as de educação europeizada) do Sul dos EUA naquela época - há muito mais realismo na cafonice e desajeito das moças sardentas de Siegel que nas it girls de ensaio de moda retrô fake do filme de Coppola.

Colin Farrell, o "homem objeto" do filme de Sofia Coppola

Mas Coppola tem ao menos uma ótima ideia: reverter o jogo e explorar o corpo de Colin Farrell de maneira objetificante - dar, assim, o troco nos cineastas machões, que sempre fizeram o mesmo em relação às musas. Mas ela não imprime ao longa a textura nem as cores quentes que fazem do anterior um filme quase em chamas; as cenas com o Farrell "homem objeto", no máximo, chegam às raias do soft porn. Talvez Coppola queira, com isso, dizer que as mulheres são menos visuais na hora da representação de suas fantasias que os homens. Pode até ser, mas tantas outras cineastas mulheres (Breillat, Cavani, Denis, por exemplo) já mostraram uma capacidade sensualista bem mais aguçada; antes de apresentar o que seria uma "visão feminina", Coppola parece estar dando apenas uma amostra do quanto as suas próprias fantasias são pouco imaginativas.

O leitor que não me leve a mal: eu por muito tempo admirei e tive altíssimas expectativas a respeito de Sofia Coppola. "As Virgens Suicidas" me parece uma atipicamente bem-sucedida estreia em longas-metragens, e seu filme seguinte, "Encontros e Desencontros", deve estar entre os cinco melhores da década de 2000. Mas desde então, Coppola não parece mais ter acertado a mão – ao menos não como seu potencial dava indícios de que ela poderia acertar.
   
"Maria Antonieta" era um filme que tinha uma proposta ousada: defender o direito de todo ser humano a algum nível de futilidade; dizia que o fato de uma aristocrata não se importar com a miséria alheia tem menos relação com maldade ou ausência de caráter que com falta de informação, de costume em exercer empatia. Era uma visão corajosa, promissora, mas, convenhamos, muito difícil de desenvolver; o filme, enquanto realização, se esgueirava no apelo pop e no charme juvenil para ofuscar as limitações do roteiro. Deu certo, e o longa (que eu reconheço ser agradável) é ainda hoje um de seus trabalhos mais lembrados.

Já "Um Lugar Qualquer" era um claro retrocesso – um sub-Antonioni (ou um "Encontros e Desencontros" de bolso) que parecia feito mais por pressa em mostrar logo um novo filme que como fruto de uma necessidade verdadeira de autoexpressão. Não há ali sinal algum de prolongamento em sua visão sobre a solidão e da já desgastada questão da "incomunicabilidade" humana. Era filme para ganhar festivais - e nesse sentido (e talvez só nele), foi um êxito, já que levou um Leão de Ouro, em Veneza.

Em "Bling Ring", Coppola teve nas mãos a chance de se retratar e voltar à linha de análise sociológica que havia ensaiado em "Maria Antonieta". Era o filme ideal para mostrar uma visão crítica contundente sobre um assunto importante: as gangues de patricinhas que roubam mansões de luxo na Califórnia. E era a oportunidade de ela ir além em um tema que a obceca: o tédio e a falta de sentido da vida no meio burguês. Mas o longa não extrapolava as obviedades. Somente quando os olhos das patricinhas brilhavam diante de vestidos de grife, joias e sapatos Louboutin, a câmera de Coppola parecia se interessar verdadeiramente pelo que filmava – e brilhava junto (e isso talvez revele mais sobre a personalidade da cineasta do que seus fãs gostariam de pensar). Ficava evidente que Coppola tinha mais afinidade com a meninas da gangue que com os estudiosos que se dedicam a compreender o fenômeno da delinquência entre abastados. Mas, ainda assim, havia o benefício da dúvida – então, mais uma vez, a diretora se safou, e seu silêncio, sua indiferença diante do tema com que estava lidando, foi interpretada por muitos como "crítica social". 

Mas qual exatamente era a visão de Sofia Coppola sobre aqueles jovens? Aliás, afinal: qual a visão da diretora sobre o que quer que seja? Talvez seu discurso lacônico e blasé em entrevistas não seja mera timidez ou sprezzatura. A verdade é que, se pensarmos bem, ela muito poucas vezes apresentou uma visão devidamente lapidada ou sequer formatada sobre algo; é o tipo de artista que cria em cima de uma ausência de visão; apresenta uma situação, a estetiza e, no geral, deixa ao espectador o "trabalho sujo" de encontrar sentido. Alguns diretores conseguem, de fato, transformar vacuidade em inspiração para fazer "arte": conseguem mais do que apenas pinçar nervos dessa forma. Mas sempre trazem mais do que atitude pura e simples, que é basicamente o que Coppola, do alto de seu Palácio de Versalhes mental, tem há anos ofertado.   

Ainda hoje, Coppola mantém grande prestígio e respeito com um certo público porque ela oferece exatamente o que eles esperam dela: brioches. Os que buscam uma refeição mais substanciosa há tempos já não se contentam mais com tão pouco.

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