(Une Vie, 2016), de Stéphane Brizé
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Cena de "A Vida de uma Mulher" |
É estranho que tão pouco se tenha dito sobre o subtexto
feminista de "A Vida de uma Mulher". O longa tem sido equivocadamente
considerado um drama de época banal, que ainda por cima seria um pouco mais tedioso
que os demais e formalmente mais afetado, em seu retrato de uma aristocrata do
século 19 com sofrimentos típicos de uma aristocrata do século 19 (no que o
termo tem de mais pejorativo). Ou seja: uma protagonista chorosa, de sofrimentos
açucarados, reações histéricas diante de fatos que outros veriam como "normais"
e dramatização excessiva de uma existência sem "dramas verdadeiros".
A meu ver, um erro lastimável de avaliação.
Jeanne é jovem, bela, saudável e inteligente. E rica: sua família
tem diversas propriedades pela França. Seu pai é um homem de ideias
progressistas, um típico filho (ou, àquela altura, talvez já neto) do
Iluminismo; não é à toa que, em pleno século 19, concede à filha a
inusitada honra de escolher por conta própria o seu pretendente, guiando-se
pelo amor – quando, na época, a regra ainda era o matrimônio por conveniência. (A
mãe já é mais ardilosa: embora não decrete por Jeanne quem será seu marido, o
faz de maneira transversa, sugestionando a filha de modo sutil).
Pois, afinal de contas: por que tanto sofre Jeanne? Pelas
traições do marido? Pelo filho perdulário que arruinará sua própria fortuna? Não
são razões desprezíveis para choradeiras, mas são situações concretas que talvez
sejam sentidas com mais intensidade por serem sintomáticas de um drama bem mais
internalizado, de ordem até existencialista, mas que Jeanne sequer se dá conta de que possui. Sua tragédia real, lá no fundo, advém do fato de não ser nem de
perto a pessoa que poderia ter sido caso vivesse em outro contexto, outra
sociedade. Ou caso fosse um homem...
Embora ela mesma jamais perceba isso, é um drama que vem de
um embotamento de todas as possibilidades que ela, essa mulher que tinha tudo a
seu favor, jamais vê se realizar. Jeanne poderia ter tido uma vida repleta de
fatos emocionantes; poderia ter se dedicado com afinco a estudos; poderia até ter
se desenvolvido espiritualmente (o que jamais conseguiu fazer desde que deixou
o convento). Poderia ter feito algo de interessante na vida, enfim.
E nem precisava ir muito longe: o simples fato de ter um mínimo
protagonismo sobre a própria existência já seria algo que a ajudaria a não ter as
inquietações que o tédio tão traiçoeiramente injeta em sua mente "sem dramas". Mas
isso não ocorre; tudo em sua realidade gira em função de outras pessoas (não à
toa, do sexo masculino). Sua vida é um grande, penoso e enfadonho desperdício
de possibilidades. Um interminável nada.
Não é que ela se frustre com essa sua situação (que ela mal percebe), mas tanta vacuidade se torna um suplício. Ela até poderia fazer como
muitas outras aristocratas de sua época e levar uma existência mais hedonista,
frívola. Poderia se permitir ser corrompida pelo mundo e jogar de igual para
igual com a hipocrisia dos demais. Mas, nos termos da concepção da personagem feita por Brizé
(e de sua moral), isso seria uma traição de princípios. Um jogo ao qual muitos
cedem, até por sobrevivência, mas que, aos heróis de Brizé, não seria admissível.
Segundo o próprio diretor já disse em entrevistas (inclusive
em uma concedida a mim, publicada pela
"Folha de S.Paulo" neste
link) a verdadeira
intenção do filme é mostrar as dificuldades de uma pessoa pura em um mundo
cheio de malícia e maldade. É falar do horror que é a existência de alguém com bons
princípios, sentimentos e intenções, mas que precisa lidar com uma realidade
dominada por pessoas capciosas, levianas e entregues a prazeres imediatos. Ou
seja: uma variante do tema principal de "O Valor de um Homem", só que em vez de centrado
em um homem de um mundo em estágio avançado do capitalismo, tem por centro uma figura feminina do século 19.
De fato, esse retrato da "inocência que se esvai em um mundo
brutal" existe no filme e é apresentado com solidez. Mas, a meu ver, acaba sendo um subtema
diante do principal, que é o de mostrar o quanto as pessoas que poderiam ser
admiráveis, por injunções sociais, acabam não o sendo. As mulheres principalmente - mesmo ainda hoje, após tantas conquistas, ainda precisam colocar o foco de suas vidas sobre figuras masculinas, em vez de sobre si mesmas. A verdade é que a tragédia da aristocrata do século 19 é essencialmente feminina - talvez a grande tragédia feminina, a mesma de desde sempre. Se o título em português é ainda melhor que o original (apenas "Uma Vida", inspirado no romance de Guy de Maupassant) é exatamente por isso: coloca a questão especificamente da mulher em evidência. Brizé pode até não trazer uma salvação à personagem, mas o feminismo de seu filme se dá em sua denúncia dessa situação (tão exemplar) de submissão.
Mas questões femininas à parte, o que torna "A Vida de uma Mulher" um produto superior à
maioria dos filmes com temas correlatos (inclusive o próprio "O Valor de um Homem")
é o tratamento dado à personagem principal. Brizé não explora Jeanne e seu
sofrimento de forma sensacionalista ou exploratória. Nem idealizada. Ela não é uma mártir que
paira acima do resto da humanidade por seu sofrimento (como o personagem de Vincent
Lindon por vezes pairava, em "O Valor..."); é uma vítima, por certo, mas é antes
uma figura digna de piedade que de admiração. Só que uma piedade distanciada, que o
espectador sente pela personagem só até certo ponto – embora o longa seja em
essência dilacerantemente melancólico, jamais cede ao sentimentalismo, e isso faz toda
a diferença. Ao contrário: é até inesperadamente frio, impessoal, ainda que pesaroso da tragédia da personagem.
"Mommy" e "O Filho de Saul" são ainda muito recentes para que um outro filme de formato de tela quadrado (para ilustrar o estreitamento da vida de um personagem) cause real impacto, mas de alguma maneira o efeito empregado por Brizé também acaba funcionando: o filme é sufocante.
Eu reconheço minha dificuldade
em saber até que ponto Brizé toma decisões pelo instinto ou de forma
meticulosamente planificada (será que foi em um impulso ou após muita reflexão que ele definiu como seria a cena do primeiro beijo dos personagens de "Mademoiselle Chambon", uma das mais simples e belas do cinema recente?). Mas seja como for, o fato é que o diretor costuma acertar em suas opções mais arriscadas, e em "A Vida de uma Mulher", ao optar por idas e vindas temporais em vários pontos da narrativa, tem êxito novamente. Os flash forwards apresentam pequenos desafios mentais que cortam no ponto certo a monotonia excessiva (sem eles, em vez de tedioso, talvez o filme fosse martirizante).
E algumas elipses são simplesmente notáveis - as que envolvem a cena do duelo são especialmente hábeis e imaginativas. Um diretor convencional,
afeito ao dramalhão puro e simples, não perderia a oportunidade de mostrar a disputa por armas com todas as minúcias. Mas Brizé, em um gesto ousado, renuncia
a qualquer emoção que não venha do drama específico do universo mental de
Jeanne e mostra apenas o essencial; em cortes precisos, apresenta a situação e parte direto ao saldo do confronto. E, em seguida, retoma a aborrecida existência de Jeanne - como se a sensação de tédio fosse
mais digna de ser transmitida ao público do que a de adrenalina. E, no caso da personagem, é uma sensação muito mais ilustrativa de sua essência que qualquer outra.
"A Vida de uma Mulher" é um filme quase extenuante - mesmo quem o aprecia dificilmente optaria por revê-lo uma segunda vez por livre e espontânea vontade. Mas se não fosse assim arrastado, seria um erro lamentável. Formal e, sobretudo, conceitual.