domingo, 5 de março de 2017

Crítica: "Logan"

(idem, 2017), de James Mangold

O texto abaixo é uma reprodução da reportagem crítica escrita por mim e publicada no site UOL no dia da première mundial de "Logan", que encerrou o festival de Berlim 2017. O link para a matéria original, publicada em 17 de fevereiro de 2017, está aqui.

Hugh Jackman em "Logan"

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Bruno Ghetti
Colaboração para o UOL, em Berlim (Alemanha)

A desilusão com o mundo moderno e o mal-estar do homem de hoje foram a grande marca deste Festival de Berlim. Não à toa, o evento chega ao fim com a exibição de "Logan" (exibido fora da competição), de James Mangold, longa que põe fim à trajetória de Hugh Jackman na pele do mutante Wolverine, personagem que o tornou uma grande estrela mundial. E o Wolverine que se vê em cena é a desilusão encarnada.

Foram 17 anos em que Jackman volta e meia retornava ao herói, em geral sempre roubando a cena, com seu temperamento estourado e seu (mau) humor peculiar. Em "Logan", ele continua o Wolverine que já conhecemos, com essas mesmas características, só que desta vez surge com um desânimo perturbador. Nada parece realmente lhe dar prazer. O Logan do último filme da franquia é um sujeito deprimido, que quando não faz cara feia de insatisfação com o que o rodeia, faz de raiva – muita raiva, de praticamente tudo.

Por que tanta angústia? A trama se passa em 2029 e, a certa altura do longa, o próprio Logan diz: "O mundo não é mais como já foi". Claro: as chances de ele estar no fundo se referindo ao planeta de 2017 são altíssimas. Mas há outras questões a respeito deste Wolverine que explicam sua crise: é um poço de culpa, pela própria natureza violenta e por todo dano (e mortes) que já causou ao longo de sua trajetória.

Mini-Wolverine

A trama começa com Logan sendo procurado por uma mexicana que quer que ele a conduza e à sua filha para um local escondido, no estado de Dakota do Norte. A princípio, o espectador não entende muito bem do que se trata, mas logo descobrirá que a menina é uma das diversas crianças frutos de uma experiência financiada por grupos poderosos interessados em desenvolver pequenos soldados a partir do material genético de mutantes. A garota, que se chama Laura, tem estranhamente (ou nem tanto assim) exatamente os mesmos poderes de Wolverine: lâminas bastante afiadas nas mãos, além de muita ira e uma força descomunal. Apesar do aspecto frágil, é uma pequena e perigosa homicida. De alguma forma, porém, é ela que vai trazer algum alento a Logan.

"Eu estava muito nervoso, mas o filme ultrapassou minhas expectativas". disse Hugh Jackman, em conversa com a imprensa. "Amo esse personagem. Não posso dizer que vou sentir falta, porque estará sempre comigo. É parte de quem eu sou e as pessoas vão sempre me abordar na rua por causa dele", diz.

O filme ganha estrutura de road movie quando Logan cai na estrada com Laura pelos Estados Unidos (acompanhados no carro de um decrépito Charles Xavier, com a saúde bastante fragilizada). Wolverine faz o que o público espera dele: tem boas tiradas com seu humor cínico e dizima os inimigos que encontra pela frente. E quando se diz aqui "dizima", não é exagero: o filme é de uma truculência pouco habitual a um blockbuster de heróis, geralmente pensado para atingir o público de todas as idades.

"Logan" é mais do que violento: é sanguinário. Como nunca, Wolverine assassina, desfigura corpos e rostos dos oponentes, até decepa cabeças. E a pequena Laura não fica muito atrás: faz um estrago terrível em seus inimigos. No começo, é até engraçado ver uma figura tão miúda lutando e matando (enquanto dá pequenas urradas), mas chega um ponto em que o espectador se pergunta: o quão saudável – ou normal – é ver uma criança agindo como uma assassina? Ou mesmo o próprio Wolverine: é mesmo tão "divertido" assim ver esse banho de sangue todo?

Mas essa é exatamente uma das intenções do longa: uma visão crítica sobre a violência. "Uma das coisas que me empolga é falar com grandes audiências, então acho importante usar essa plataforma para tratar de outros assuntos em vez de vender camisetas", disse o diretor James Mangold. "Só usei crianças inteligente e com pais inteligentes, que pudessem orientá-las. Não é um filme para crianças, simples assim. [Com essa premissa] O estúdio nos deu o aval e liberdade para que o filme fosse feito pensado em adultos. Temas como vida e morte puderam ser explorados com um nível de sofisticação que se usa geralmente para plateias com idades acima de 14 anos".

"O filme é sobre decidir se é mais seguro viver sozinho ou, apesar de isso poder ser perigoso, manter conexões com os outros. Não interessa se é um faroeste, comedia romântica, filme de herói: o importante é transmitir a história", disse Jackman, elogiando a capacidade de Mangold de fazer isso.

De fato, o filme é bastante fluido para as 2h16 de duração. Há algumas cenas mais divertidas, sobretudo quando Logan (justo quem!) tenta ensinar modos para a pequena Laura, que, por ter passado a vida inteira em um laboratório, não tem sequer noções básicas de boas maneiras. Mas fora isso, o que predomina no filme é um tom algo soturno, às vezes até triste. E os fãs da série que não esperem ser poupados de acontecimentos trágicos: não é um filme "feito para agradar". Tem uma proposta reflexiva, não evita abordar assuntos desagradáveis, mas que fazem parte da vida; e é isso que o torna mais maduro do que praticamente todos os filmes de herói já lançados até agora.

Política
Obviamente, a conversa com a imprensa teve um tom politizado. Sir Patrick Stewart fez questão de pedir desculpas. "Estou aqui com um sentimento de vergonha de morar em um país cuja metade da população votou no Breakfast [café da manhã], digo... o Brexit [risos]. Desculpem... a diferença é que o Brexit é mais difícil de engolir", disse, tirando risos dos jornalistas. "Em nome dos que querem continuar na Europa, peço desculpas", disse.

Jackman afirmou que não poderia sequer imaginar um filme como "Logan" há quatro anos. "É um sinal de que esses caras [roteiristas] viram que algo estava acontecendo", disse, se referindo ao movimento que desembocaria na confusa realidade política atual. "Só desta vez senti que percebi a essência do personagem. Quando, no futuro, me perguntarem qual filme devem assistir para compreendê-lo, eu vou responder: é este. É um filme que mesmo quem nunca leu uma HQ na vida pode aproveitar alguma coisa."

É uma dupla verdade: ninguém precisa ter visto nenhum outro filme da franquia nem lido os quadrinhos para acompanhar "Logan". E percebe-se que, de fato, ele compreendeu como nunca seu personagem. Falar de grande interpretações de atores em filmes de ação ou de heróis não é algo corriqueiro, mas a de Jackman neste último longa sobre Wolverine surge como uma grande exceção. Sua atuação é preciosa: seus olhares nunca estiveram tão intensos, desesperados. Pelos seus olhos, entendemos que, de fato, Jackman já não poderia mais continuar dando vida a Wolverine – de certo modo, virou um fardo ao seu potencial como ator. E, afinal, tudo, em algum momento, chega ao fim, nos diz o filme. E, neste caso, o fim não poderia ser no momento e da maneira mais acertada.

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