Marco Archer, o Curumim, em cena do filme |
No final da sessão da sessão de estreia do documentário “Curumim”, na Berlinale 2016, o diretor carioca Marcos Prado recebeu cumprimentos de uma plateia comovida. “Obrigada! Seu filme me tocou muito”, disse uma mulher com os olhos vermelhos e lacrimosos (quando o filme acabou, podia-se ouvir facilmente seus soluços na sala). Pouco depois, o diretor de um festival indonésio fez um convite: “Queremos muito passar seu filme lá. Toma o meu cartão!”. Prado agradeceu e guardou o papel. “Será que eu vou ter coragem de levar meu filme pra Indonésia?”, perguntou a si mesmo, com um sorriso tenso.
Compreende-se a indagação: “Curumim” certamente não será visto com bons olhos pelas autoridades daquele país. O documentário conta a história de Marco “Curumim” Archer, brasileiro condenado à morte na Indonésia por tráfico de drogas – ele morreu fuzilado em janeiro de 2015, após um penoso período de 11 anos em um presídio de segurança máxima isolado em uma ilha.
O filme é ao mesmo tempo a curiosa história pessoal de Curumim e um registro de sua rotina no “corredor da morte”. Por tabela, ataca dois outros temas espinhosos: mostra a corrupção no sistema carcerário e judicial indonésio e faz uma grande crítica à pena capital. “Sou contra a pena de morte em todos os casos”, disse o cineasta, logo após a aplaudida sessão.
“Os crimes hediondos têm de ser punidos com prisão longa ou perpétua. Mas quando se executa uma pessoa, primeiro você dá poder para um Estado de te eliminar da sociedade, colocando pistas falsas, etc. Segundo: você pode provar o contrário – quantos condenados já não conseguiram comprovar sua inocência antes da morte?”
O projeto do longa surgiu quando o próprio Curumim convidou Prado para contar sua história. Os dois já se conheciam desde a juventude, nos anos 80, quando ambos praticavam surfe e frequentavam os principais “points” das praias cariocas. Nascido em uma família de classe média alta, Curumim sempre gostou de levar uma vida aventureira. Na adolescência, foi expulso 14 vezes do colégio. Como ele mesmo diz, sempre foi um “fio desencapado” por ser filho de um alcoólatra e uma mãe ausente.
Sua personalidade expansiva e seu senso de humor o tornaram um jovem carismático, que gostava de curtir a vida com amigos, no melhor estilo playboy. Para bancar seus luxos, começou a ganhar dinheiro com pequenos tráficos nos anos 80. “No Brasil, uma geração inteira comprou skank com ele”, relembra o cineasta. Curumim foi parar na Indonésia quando tentava conseguir dinheiro para (segundo ele mesmo) pagar dívidas que havia contraído em um hospital em Cingapura, onde ficou internado por meses, após um acidente de paraglide. Aceitou traficar 15 quilos de cocaína, mas levantou suspeitas no aeroporto de Jacarta. Conseguiu fugir dali e passou dias como foragido – até ser finalmente preso pela polícia indonésia e levado para a prisão, onde seu drama começou. Uma trajetória tão cinematográfica, é claro, tinha que acabar nas telas.
“A ideia original era para ser um filme de ficção. Ele próprio queria isso, sempre dizia: ‘Minha história pode virar um filme incrível!’ ”, conta Prado. Depois de optar pelo formato documentário, o diretor pretendia dividir a história em três partes: a vida de Curumim antes de ser preso, a rotina no presídio e o recomeço após ganhar liberdade. “Ia ser uma coisa mais biográfica, mas não consegui nem uma entrevista formal com ele”, diz o diretor, que, no entanto, chegou a ir ao presídio para visitar o amigo (conseguiu entrar se passando por um pastor evangélico).
Cena do documentário |
A maior parte das imagens em que o condenado aparece encarcerado foram feitas com uma câmera clandestina, comprada no mercado negro da prisão, captadas por um colega de cela italiano (hoje já em liberdade; ele, aliás, estava presente na première do longa). Segundo o italiano, é relativamente fácil conseguir nesse “mercado” regalias diversas, inclusive... drogas. O ex-presidiário reconhece que só obteve a própria liberdade à base de muito suborno. O filme conta com imagens de Curumim na cadeia, depoimentos de quem o conhecia e algumas reconstituições de cenas – uma delas traz uma estilização de como teria sido o fuzilamento.
O personagem não é mostrado como um “mártir”, mas uma pessoa sem limites e algo “destrambelhada” que pagou um preço alto demais pela própria irresponsabilidade. O longa humaniza, mas evita “sacralizar” o personagem. “Tudo da história dele está ali, ele mesmo fala o que já fez pelas cartas [mostradas no filme]. Não tem como santificar”, diz o cineasta. “Mas se eu consegui humanizar ele ao longo dessa uma hora e 40 minutos, já estou satisfeito.”
Prado foi muito elogiado em seu primeiro longa, o documentário “Estamira” (2004), sobre uma catadora de lixo, mas o sucesso passou longe do filme seguinte, a ficção “Paraísos Artificiais” (2012). Ele também é conhecido como produtor de “Tropa de Elite” (2007) – que, aliás, ganhou o Urso de Ouro em Berlim há nove anos. Desta vez, Prado não concorre ao prêmio máximo (“Curumim” está na mostra paralela Panorama), mas o frio na barriga seja ainda maior que em 2007. “São emoções diferentes vir como produtor e como diretor. Apesar de o cinema ser uma arte coletiva, na direção, se o filme ficou bom, a ‘culpa’ é sua e de todo mundo. Agora se fica horrível, a culpa é só sua”, diz.
*Filme visto no Festival de Berlim 2016; este texto é uma versão expandida do publicado no UOL, no dia 17.fev.2016 (link: http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2016/02/17/saga-de-brasileiro-condenado-a-morte-na-indonesia-comove-plateia-em-berlim.htm).
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