quinta-feira, 20 de outubro de 2016

MOSTRA 2016 - Crítica: "Animais Noturnos"

(Nocturnal Animals, 2016), de Tom Ford*

Amy Adams, em "Animais Noturnos"

Já nos créditos de abertura de "Animais Noturnos", Tom Ford mostra sua vontade de provocar. A tela apresenta mulheres nuas, obesas e de meia idade, pulando e dançando com irreverência, enquanto a câmera lenta prolonga o desajeitado movimento de seus excessos adiposos. Elas agem como cheerleaders: estão alegres, sorridentes – são as últimas figuras que alguém imaginaria povoar o imaginário de um cineasta egresso do mundo fashion (Ford foi estilista antes de virar diretor), onde só os esbeltos, os jovens e os que fazem "carão" têm algum valor.

As cenas são ambivalentes e geram reações contraditórias no espectador. Há algo de desagradavelmente apelativo no gesto de explorar o grotesco daquelas mulheres; em alguns instantes, Ford levanta suspeitas de que talvez seja um daqueles artistas que investem na iconoclastia como forma rápida e chamativa de se destacar entre os demais. Mas em um outro nível, as mesmas imagens se revelam genuinamente tocantes; é que aquelas figuras femininas plus-size se mostram tão livres, tão sem amarras nem complexos que, por alguns segundos, acredita-se verdadeiramente em seus risos como sintoma de uma real alegria de viver, mesmo em um mundo que diuturnamente as rejeita e as oprime.

As mulheres obesas, logo veremos, são modelos de um ensaio de um artista plástico modernoso e hypado e algo vazio em sua iconoclastia que não aparece no filme. (As moças, aliás, também não ressurgirão no longa). Surgem dúvidas: estaria Ford tentando fazer uma arte verdadeiramente iconoclasta? Ou será que sua intenção era fazer uma crítica a uma certa arte que só investe na quebra de paradigmas como modo rápido e publicitário de causar escândalo? Ou ainda: tornar suas gordinhas, na ficção, modelos de um artista afetado (e não dele próprio) seria um álibi para Ford fazer ele mesmo uma iconoclastia fácil, sem levar a "fama" (e ser poupado de julgamentos mais incisivos)?

Mas logo o espectador verá que as intenções de Ford, felizmente, estão longe de se resumir ao choque gratuito. Até o final, "Animais Noturnos" vai reiterar seu verdadeiro sentido: ser uma grande defesa do que é socialmente tido como errado, inadequado. É um libelo contra a hipocrisia, de maneira geral, e uma denúncia do quão infeliz pode ser uma pessoa que leva um estilo de vida mentiroso, feito apenas para ceder às pressões sociais. O alvo de Ford, logo fica claro, não é apenas o mundo fashion (ou a arte que investe no "choque pelo choque"), mas também toda uma sociedade cheia de regras e interdições – mais especificamente a dos EUA, que parece cada vez mais conservadora.

A trama gira em torno de Susan (Amy Adams), dona de uma galeria de arte que enfrenta uma crise afetiva e profissional. Ela vive um namoro frustrado e não vê sentido em seu trabalho. Sua náusea é tanto maior porque abomina o meio frívolo em que vive. "Mas ninguém gosta realmente do que faz!", lhe diz um afeminado amigo do mundo das artes/moda, que logo acrescenta: "Aproveite o absurdo do nosso mundo. É muito menos doloroso que o mundo real".

É por saber como pode doer o "mundo real" que Susan optou pela proteção da glamourosa bolha artístico-burguesa em que vive. De família texana conservadora, ela foi idealista na juventude, mas cedeu aos apelos de uma vida mais confortável. Isso lhe custou, há alguns anos, o fim de seu primeiro casamento, com um então aspirante a escritor, Tony (Jake Gyllenhaal), que ela julgava fraco e sem ambição.

O filme se passa anos depois, quando o rapaz lhe dedica um livro em que narra uma história trágica, em que ele próprio, sua mulher e filha são violentadas em uma estrada. Na busca pelos criminosos, também ele passará por instantes em que sua verdadeira essência cederá espaço às pressões da vida prática.

Ford se lançou como cineasta no elogiado "Direito de Amar" (2009), sobre um sisudo professor que se entrega a um amor gay. Depois disso, ficou sete anos sem filmar, aumentando a expectativa por seu novo trabalho. Pois ele entrega um produto à altura do esperado. "Animais Noturnos" segue a mesma linha elegante, visualmente cool e refinada do filme anterior, com trechos ainda mais barrocos e provocativos (como os das gordinhas do início). Mas em termos narrativos é bem mais arrojado; tem constantes idas e vindas temporais, intercalando presente, passado e o plano fictício do romance.

Cena do filme

As cenas fictícias do livro, na estrada, têm por vezes os toques absurdos de um David Lynch; principalmente quando mostra uma família abordada por estranhos no meio da estrada, o filme é um empolgante thriller com ares de pesadelo. Mas as cenas de ennui da Susan atual - deprimida e um poço de culpa burguesa - são tão satisfatórias em sua textura e em termos visuais que é de se lamentar que a narrativa não se concentre mais nela.

Há um desnível entre a narrativa do plano presente e a do fictício. Ambas renderiam dois (ótimos) filmes distintos; a primeira em uma chave mais contemplativa, intimista, e a segunda em uma linha mais próxima ao cinema de gênero. Mas no filme, o presente é (bem) mais fascinante - em grande parte graças a Adams, atriz que é sempre competente em cena, mas que, aqui, pela primeira vez está de fato magnética. Por comparação, a outra narrativa perde muito em interesse, apesar da alta qualidade no geral (e Jake Gyllenhaal não consegue se tornar uma presença tão reluzente como Adams; sua atuação é correta, mas aquém do seu potencial).

E há um problema estrutural: as duas partes não formam uma unidade como o roteiro (de Ford e Austin Wright) pretendia. O cineasta tenta ressaltar cinematograficamente (pela montagem, fartamente ancorada em "transições") um espelhamento entre a Susan de hoje e o Tony do livro. Há de fato algumas semelhanças entre os dois personagens (ambos traem sua essência: Susan o faz ao abandonar seus preceitos morais e se entregar à sua dolce vita de burguesa, enquanto Tony é infiel à sua crença em valores humanistas ao se ver forçado a se vingar com violência extrema do homem que destruiu sua família), mas convenhamos: é preciso muita boa vontade por parte do público para ver a reflexão de um personagem no outro como algo orgânico e forte a ponto de valer ao filme a estrutura que possui; essa "forçação" é o maior pecado do longa.    

Mas as partes boas o são em um nível tão elevado que o filme chega ao fim (e que fim!) dando a impressão de que não precisa de reparos. O ótimo elenco inclui Aaron Taylor-Johnson, surpreendente como o psicopata da estrada, Michael Shannon, em sua melhor atuação até hoje, como um detetive esquisitão, além de ótimas pontas de Jena Malone e Laura Linney; esta última está tão inspirada em sua breve cena (que não deve chegar a dois minutos de duração) que, sozinha, já valeria o ingresso.

*Filme visto no Festival de Veneza 2016; este texto é uma versão expandida do publicado na Folha de S.Paulo, no dia 3.set.2016 (link: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/09/1809635-tom-ford-faz-criticas-as-pressoes-sociais-em-nocturnal-animals.shtml)

2 comentários:

  1. Animais Noturnos é um filme provocativo e ousado desde os créditos iniciais quando apresenta mulheres idosas e nuas dançando, portando uma obesidade praticamente mórbida. Amy Adams foi muito boa, é uma das jovens atrizes que melhor se veste e a tem a carreira em crescimento, a vi faz pouco tempo em A Chegada e é algo diferente ao que estamos acostumados com ela/ele, se vê espetacular. Recomendo! É um filme bom e interessante.

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    1. Não sou muito fã de "A Chegada", Camila, mas a Amy Adams é de fato uma atriz excelente - nisso eu concordo

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