Zhao Tao em cena antonionista do filme de Jia Zhangke |
O longa do grande Jia
Zhangke passou meio batido no festival de Cannes do ano passado: quase não se
falou dele – ou quando se falou, não houve muito entusiasmo. Mas um ano depois,
o filme chega aos nossos cinemas tido como uma obra-prima inconteste, como que em um
esforço inconsciente de reabilitação. Da imprensa mais highbrow aos sites mais pop, a reverência a "As Montanhas se Separam"
tem sido quase unânime.
Quem viu em Cannes e
agora escreve sobre o longa deve ter sido traído pela memória (e os que só viram
agora, como de hábito, devem ter seguido o comboio). Tem muita coisa boa, é inegável, mas é
claramente um filme menor na obra de Jia. É dividido em três partes: a primeira
(a melhor) se passa na China, em 1999. A segunda (sem muito brilho) acontece em 2014,
no mesmo país. E a terceira (quase um constrangimento), na Austrália, em um
moderadamente distópico 2025.
Acompanhando os dramas
de uma moça e dois rapazes envolvidos em um triângulo amoroso, o cineasta faz o
que é sua especialidade: usa as inquietações desses personagens como principal
substrato para compor um quadro da China contemporânea. Um país contraditório,
indefinido, com um pé no passado e outro no futuro – e a cabeça completamente
perdida em algum lugar entre ambos.
A cabeça de Jia, porém, parece firme no lugar como nunca, e ele dirige seu longa de maneira sólida, autoconfiante; exibe a postura levemente presunçosa de um artista que tem ciência da própria capacidade de ir além de onde os apenas medianos conseguem chegar. Mas, desta vez, Jia não ultrapassa com muita folga a linha da mediocridade; "Montanhas" é um de seus filmes menos inspirados.
O filme tem toques
de antonionismo (as perambulações; o contraste/ espelhamento dos ambientes com o espaço mental dos personagens) em vários momentos, mas sem a eficiência e autenticidade que Jia já conseguiu com esses mesmos procedimentos em filmes anteriores. Mas é no fundo um melodrama pesado, com
personagens que tendem à caricatura – o que é de se estranhar, em se tratando
de um diretor tão sutil e afeito a explorar a complexidade existencial de suas
crias. A não ser pela protagonista feminina, os demais personagens são quase novelescos:
um dos rapazes, íntegro e virtuoso, assume as dores do mundo e sofre até não
poder mais (e morre de câncer); o outro é um vilão de existência vazia, que só pensa
em dinheiro – abrirá mão de tudo na vida em nome do "vil metal".
A intenção do
diretor talvez tenha sido traçar um paralelo de cada um com as duas faces da
China atual: o sujeito honrado, mas pobre, resignado, sem lugar no mundo
moderno, é a China rural, do passado, "oriental"; o mercenário, que prospera
financeiramente, mas que é infeliz por vender a própria alma, é a China urbana,
capitalista, ocidentalizada. Mas Jia já mostrou antes ser capaz de criar analogias
bem mais sofisticadas e menos óbvias; o caricatural dos personagens predomina
largamente sob seu caráter alegórico.
O filme começa com
uma cena tão bela como simples – talvez a única que realmente se destaca: um
grupo de jovens dança ao som de "Go West", dos Pet Shop Boys, com uma alegria
viva e contagiante, à espera da chegada do terceiro milênio. Eu pessoalmente acho
que inserir uma música que diz "Vá ao Oeste" para ilustrar aquele momento de
ocidentalização chinesa é uma ideia antes banal do que genial (embora a crítica
tenha sugerido essa segunda opção), mas é preciso reconhecer que a cena
funciona maravilhosamente. Não tanto pelo "go west" em si; creio que mais pela bela
melodia da canção, cujos gritos de "together" ("unidos") acentuam o espírito auspicioso,
cheio de jovialidade, presente nos rostos e corpos daqueles garotos e garotas.
A cena é um pequeno
momento mágico, que está à altura de outros breves instantes que Jia tantas vezes
foi capaz de criar no passado (e que o colocam um degrau acima de tantos outros
cineastas talentosos). Refiro-me aqui, por exemplo, a cenas como a do prédio
que, do nada, vira um foguete e decola, em "Em Busca da Vida"; ou a do abraço
comovido entre a chinesa e a prostituta russa, no banheiro, em "O Mundo"; esses
breves segundos que são pequenos toques de Midas, que fazem toda a diferença em
um filme.
Mas em "Montanhas
se Separam", Jia procura mais desses "toques" do que de hábito, sem conseguir
efeitos à altura das intenções. A cena final, também ao som de "Go West", tem
sido reverenciada como uma obra-prima por si só. Nela, a personagem feminina,
após uma vida dura e cheia de decepções, dança sozinha, emocionada, entre as
tais montanhas do título – deveria ser uma espécie de Rosebud da protagonista:
um breve retorno à alegria inocente da juventude, em um instante de adversidade.
Mas a cena (apesar da excelência da atuação de Zhao Tao) é uma conclusão de
filme piegas além do esperado. Pior: traz um ranço de afetação incomum na obra
de Jia – não tem a mesma verdade, o frescor que sua sequência espelho-invertido (a do
início do filme) esbanja. É apenas um clichê embaraçoso querendo se passar por grande arte.
Isso se estende,
aliás, por toda a decepcionante terceira parte do filme, no futuro impessoal na Austrália. Ali,
o filho dessa personagem feminina, há anos afastado da mãe, entra em contato
com uma nova figura materna, uma personagem fraca interpretada pela atriz e
diretora Sylvia Chang, diva do cinema taiwanês. O futuro pintado por Jia é
muito caricatural e sem imaginação se comparado com o presente ambíguo e complexo
que ele nos apresenta – ou será que ele quer dizer que o mundo que nos aguarda
vai ser apenas de lugares-comuns e de pobreza criativa? (Neste terço final, quando
o espectador imagina que Jia já chegou ao fundo do poço da simbologia barata,
eis que ele é capaz de achar uma ainda pior: o vilão mercenário decide batizar
o filho com o nome de 'Dollar'...).
O panorama da China
atual que Jia traça em seus filmes é sempre interessante, mas aqui, isso por si
só não confere excelência alguma ao filme. Mas o longa tem qualidades: o pulso
firme do diretor, as soluções de enquadramento, o triângulo amoroso da primeira
parte. Mas o melhor é mesmo a atuação de Zhao Tao: simplesmente formidável. Mas
não vejo nada além disso que explique a exaltação tão exagerada a este filme sem
brilho e de pouco charme, a não ser uma boa vontade por parte da crítica com um cineasta
que, já há algum tempo, não encontra a inspiração de seus melhores momentos.
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