Catherine Frot em "Marguerite" |
Em seu filme mais festejado até o momento, "À L’Origine" (2009), o cineasta francês Xavier Giannoli contava a história de um homem pobre, sem meios nem bons contatos, mas que tinha tanta força de vontade que se tornava capaz de operar milagres só com sua determinação. Em seu novo filme, "Marguerite", o diretor volta a trabalhar com o tema do empenho pessoal no sentido de tornar o impossível em algo palpável. Mas desta vez o diretor faz isso em uma chave tão diferente que mal dá para perceber que ambos foram dirigidos pelo mesmo homem.
"Marguerite" é inspirado na história real de Florence Foster Jenkins, a "pior cantora do mundo", que já rendeu peças de teatro e que, em breve, ganhará as telas em versão hollywoodiana ("Florence: Quem É Essa Mulher?", de Stephen Frears, com Meryl Streep como estrela). Aqui, Florence se chama Marguerite e é francesa (interpretada com vigor por Catherine Frot). Ela é uma milionária que adora cantar, mas que tem dois grandes problemas: uma voz colossalmente desafinada e uma ausência gigantesca de talento musical.
Quando ela canta, geralmente em recitais de caridade, para uma plateia da altíssima sociedade, é um embaraço generalizado. Seu marido inventa desculpas para não se submeter ao constrangimento de ver o desastre que são suas récitas. Mas o que falta a Marguerite em termos de cordas vocais lhe sobra na conta bancária, então os convidados fingem que aquela voz é até agradável. Marguerite não sabe o quanto é uma cantora ruim: ninguém jamais ousou dizer-lhe isso. Os que não conseguem mentir, dizem-lhe ao fim da apresentação eufemismos do tipo que ela tem uma voz "peculiar" e um estilo "autêntico".
Mas eles não deixam de ter razão: Marguerite é mesmo uma mulher peculiar e autêntica. Um grupo de jovens anarquistas consegue perceber isso, mas em um viés positivo; eles notam na figura daquela milionária um verdadeiro talento no palco – não pela técnica musical, mas pela bizarrice de sua performance. Marguerite pode até não ser uma boa cantora, mas é inegavelmente uma artista expressiva; tem o que se chama de "presença de palco".
O filme se passa nos roaring twenties, os agitados e loucos anos 20, quando as pessoas pareciam mais abertas do que nunca para o que de novo acontecia no mundo das artes. Para os padrões tradicionais da música, Marguerite era uma cantora pavorosa; mas para a concepção moderna da arte, ela poderia ser considerada uma mulher talentosa – exatamente pela sua falta de técnica musical e pela sua autenticidade em cena. O grotesco das suas apresentações suscitava um appeal, um magnetismo que a tornava uma diva para esses jovens. Não por piedade, mas por admiração, mesmo, por essa sua expressividade e sua doação ao ato de cantar (mal); essa era sua arte.
Há uma cena curiosa: nos bastidores de um concerto, Marguerite menciona o medo de o público jogar tomates sobre ela. “Talvez um dia também os tomates vão virar arte”, ela diz ao mordomo. Ela estava brincando, mas também (e sem saber) profetizando: quatro décadas depois, tomates de fato se tornariam arte – vide as latas de sopa Campbell’s de Andy Warhol.
O que é arte – e o que não é? No mundo moderno, parece possível que qualquer pessoa, mesmo as sem nenhum talento técnico para as formas artísticas, se torne um verdadeiro artista. Se eu menciono Warhol no parágrafo acima é porque foi ele quem consolidou essa discussão e a disseminou, no auge da pop art dos anos 60; mas a questão já havia surgido bem antes, e estava presente nas vanguardas do início do século passado, sobretudo nos anos 20.
O que "Marguerite" tem de melhor é justamente abordar isso, ainda que esse não seja propriamente o núcleo do filme. Seu diferencial é não tratar a personagem Marguerite da forma predatória que muitos outros a tratariam, como mero espetáculo sensacionalista de circo de horrores, cuja performance seria do apelo descartável de uma criatura assustadora, e não de uma entertainer (e que, suponho, será o viés da visão hollywoodiana estrelada por Streep; a conferir). O filme de Giannoli mostra que há a possibilidade de haver qualidades positivas no espetáculo da cantora desafinada. Ela pode ser uma estrela – por quesitos não-tradicionais, sim, mas acima de tudo por mérito.
Toda essa questão, porém, surge meio difusa no longa. Felizmente, contudo, o filme mantém o foco em outro tema também interessante: como lidar com uma pessoa sem talento, mas que ama loucamente o que não é capaz de fazer? Devemos encorajar os sonhos dessa pessoa? Ou seria mais sensato dizermos a ela o quanto é ruim e que seria melhor abandonar sua paixão? (Indo um pouco além: até que ponto é justo tolhermos uma pessoa de fazer o que ela gosta?)
O problema é que Giannoli (ou os produtores) parecem acometidos de certa impaciência para prolongar essas discussões, e o roteiro perde tempo demais com detalhes dispensáveis de trama. Para uma obra que lida com conceitos da arte de vanguarda, o filme é um produto decepcionantemente acadêmico.
No papel de Marguerite, Catherine Frot tem um trabalho duríssimo. Quando as pessoas lhe mandam flores ao final de uma apresentação, é visível nos olhos dela a emoção que esse gesto lhe causa; porém, sentimos que em algum lugar dentro dela, ela sabe que não merece aquelas flores. Alguma coisa está errada, e ela sabe disso, talvez apenas não tenha capacidade de aceitar e encarar a realidade.
Com uma personagem tão difícil, Frot tem uma performance magnífica, mas peca em um único detalhe: quando ela está no palco, o estilo de atuação dela muda. Quando sua Marguerite está cantando, ela não é uma mulher desafinada que dá o melhor de si para fazer o que lhe dá prazer (ou, no mínimo, para não passar vergonha), que é o que a personagem exigia. Nessas cenas, Frot exibe um registro bem mais clownesco; fica evidente o esforço da atriz para tornar essas cenas dos concertos engraçadas e ridículas no nível mais caricato, quando isso deveria surgir de forma natural, espontânea – a contragosto da performer.