(The Witch, 2015), de Robert Eggers*
As pessoas têm feito a propaganda errada de "A Bruxa". Antes
de assistir, eu já tinha ouvido frases como "é o filme que redefine o cinema de
horror" ou então "você acha que já sentiu medo no cinema? Espera só até ver 'A
Bruxa'...". O longa de Robert Eggers realmente é um terror acima da média, mas talvez
isso seja o que de melhor se possa dizer sobre ele enquanto "filme de gênero".
Seu grande diferencial não está aí.
A trama se passa nos EUA coloniais, no século 17. Uma
família inglesa extremamente religiosa se afasta de uma comunidade de colonos e
tenta a sorte plantando milho em uma área próxima a uma floresta. Mas a
colheita vai mal, e fatos estranhos passam a acontecer. Quando o filho mais
novo desaparece na mata (enquanto sua irmã mais velha, a adolescente Thomasin,
cuidava dele), um clima de histeria toma conta do clã. Em breve, todos acharão
que a primogênita é a culpada por todos os problemas: ela seria uma bruxa.
O filme é cheio daqueles detalhes que causam arrepios no
público. Há uma cabra que solta sangue na hora da ordenha, há criaturas idosas
e decrépitas que surgem do nada no meio da mata, não há sequer um dia de sol.
Dois dos filhos do casal são gêmeos travessos e falastrões, que dizem coisas
assustadoras e aumentam ainda mais o clima de paranoia naquele núcleo familiar.
A fotografia é pouco iluminada, em tons austeros – o filme todo, aliás, é uma
reconstituição de muito alto nível do que devia ser os EUA-colônia daquele
período histórico: fala-se, move-se e age-se como em uma outra época.
Era uma terra em que pessoas tentavam triunfar por conta
própria (e ali nascia o sentimento meritocrático que se tornou uma marca tão
profunda na sociedade americana de hoje). E sobretudo um local onde o medo dava
as cartas: conhecia-se muito pouco daquela nova terra, então tudo o que não
possuía explicação lógica aparente caía na vala comum do sobrenatural, do
satânico, da magia.
É aí que o filme se destaca: mostra como uma acusação,
quando repetida ad eternum em uma terra dominada pelo obscurantismo, acaba se tornando uma verdade. No caso da jovem
Thomasin, ela foi tão insistentemente acusada por todos de ser uma bruxa que
acabou assumindo ela mesma esse discurso que lhe impuseram: por fim, se torna de
fato uma, em uma extraordinária cena catártica. Também isso
diz muito sobre a formação social americana, em que discursos variados sem base
científica – mas não raro embasados na fé religiosa – acabam se tornando "verdades"
de tanto que foram recorrentemente repetidos. Muitas das crenças mais sórdidas,
desumanas e preconceituosas por parte dos americanos de hoje têm origem
semelhante. E muitos dos que se assumem "bruxos" e "bruxas" hoje em dia mal se
dão conta disso...
Para propor esse comentário sobre a América de hoje, o filme
faz uso de contos e narrativas antigas envolvendo o medo de colonos ingleses
nos EUA – histórias de bruxarias, fatos inexplicáveis e eventos sobrenaturais. Muitos
deles surgem no filme como interessantes elementos metafóricos de algumas
situações específicas do convívio familiar. Há, por exemplo, o desejo sexual de
um irmão pela irmã – o que prontamente causará punição aos dois envolvidos: o
garoto se perderá na floresta (e não resistirá ao flerte de uma feiticeira
cruel – uma alegoria para a sedução da própria irmã), enquanto a menina será
culpada pelas desgraças da família, sendo considerada uma bruxa. Há também uma
curiosa abordagem do confronto muitas vezes problemático entre uma mãe a uma filha,
com elementos fortemente freudianos em questão. O filme lembra nessas cenas "Carrie,
a Estranha" (e em vários outros momentos, é impossível não pensar em outros longas
famosos, como "O Exorcista" e "As Bruxas de Salém").
Nem tudo de sobrenatural no filme, porém, se encaixa no
campo das metáforas, e a opção por simplesmente aceitá-las como parte das
narrativas sobrenaturais antigas é uma saída em geral fácil, que não está à
altura da proposta mais geral do longa de se pretender uma alegoria da formação
social americana. O roteiro merecia um pouquinho mais de esforço nesse sentido, muito embora o que chegou à tela não seja de modo algum ruim.
O cineasta Robert Eggers mostra talento visual em seu longa
de estreia, embora o filme tenha algumas falhas inesperadas – há uma cena
estranhamente editada que envolve um bode atacando o pai da família que não
consegue esconder as limitações econômicas deste filme de baixo orçamento (um dos
produtores, aliás, foi o brasileiro Rodrigo Teixeira, que também está por trás
de projetos indie bem conceituados, como
"Frances Ha" e "Mistress America").
Embora o longa exija um ritmo mais lento que o habitual nos filmes de horror, às vezes Eggers leva essa ideia muito ao pé da letra; no meio do filme, quando as personagens se perdem na mata, o filme quase se perde junto a eles. Mas o vigor da história consegue ser recobrado posteriormente, e o longa chega ao fim com bastante força – aliás, termina com um grandioso clímax, que muitos talvez achem que é onde o filme de fato começa. O final realmente denuncia um começo, mas o da sociedade americana de hoje – o longa de Eggers, embora nos desperte o interesse como nunca antes nessa sequência final, termina no ponto exato onde deveria acabar.
Embora o longa exija um ritmo mais lento que o habitual nos filmes de horror, às vezes Eggers leva essa ideia muito ao pé da letra; no meio do filme, quando as personagens se perdem na mata, o filme quase se perde junto a eles. Mas o vigor da história consegue ser recobrado posteriormente, e o longa chega ao fim com bastante força – aliás, termina com um grandioso clímax, que muitos talvez achem que é onde o filme de fato começa. O final realmente denuncia um começo, mas o da sociedade americana de hoje – o longa de Eggers, embora nos desperte o interesse como nunca antes nessa sequência final, termina no ponto exato onde deveria acabar.
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