quinta-feira, 24 de março de 2016

Crítica: "Cemitério do Esplendor"

(Rak Ti Khon Kaen, 2015), de Apichatpong Weerasethakul



A esta altura, o cinema de Apichatpong Weerasetakhul já não causa o mesmo estranhamento de quando surgiu. Claro, sua obra segue priorizando o enigmático sobre o evidente, o realismo sobre o artifício, o inesperado sobre o previsível, mas a maneira como os elementos surpreendentes surgem em cena (de mansinho, sem estardalhaço) já não desestabiliza mais o público que conhece seus filmes anteriores. Ao contrário: o espectador já iniciado até espera por esses momentos-chave – e quando eles surgem, o que antes lhes tirava o chão passou a ser motivo de prazer, de fruição; são eles o que se espera desse cineasta inventivo, uma das vozes mais autênticas do cinema recente.

"Cemitério do Esplendor" é possivelmente seu filme mais fácil de "seguir" e eu não tenho dúvidas de que isso se explica sobretudo por agora estarmos mais habituados ao seu estilo. Mas não é a única razão: aqui, pela primeira vez Weerasethakul parece de fato interessado na narratividade de seu filme. Ver seus longas anteriores era sempre uma experiência extasiante, mas também frustrante, porque eles nunca formavam um "todo" bem acabado. Filmes como "Mal dos Trópicos" e "Tio Bonmee" eram compostos de trechos muito interessantes isoladamente – ideias excelentes, imagens com um riquíssimo contraste entre naturalismo e misticismo –, mas o cineasta falhava na concatenação das partes. Não havia unidade – eram como que trechos de filmes distintos costurados em um mesmo produto, "unidos" por um conceito um tanto difuso. (Por mais que seus defensores sempre tenham se dedicado minuciosamente a dar um sentido geral aos seus filmes, essas interpretações sempre me soaram forçadas, exageradas demais)

Muitos sempre acharam que a opção por ideias fragmentadas era justamente a grande força do cineasta, mas na minha opinião, era justamente esse o elemento que impedia que seus filmes fossem reais obras-primas. Reconheço que parte da originalidade de seu cinema está exatamente ali, mas também é graças a essa fragmentação que seus filmes ficavam sempre relegados a algo mais próximo em conceito da videoarte ou das artes plásticas (áreas em que o tailandês tanto se destacou antes de passar para a realização de filmes). Em termos de cinema narrativo, eram experiências sempre decepcionantes.

O que diferencia "Cemitério" de seus filmes anteriores (e que, na minha visão, o faz superior) é justamente o fato de que, desta vez, Weerasethakul criou um filme com uma unidade. Para usar uma metáfora cósmica, digamos que seu novo filme é como um planeta com algumas luas (os elementos estranhos) rodando ao seu redor, enquanto os anteriores eram uma porção de luas independentes que flutuavam diante de um centro de gravidade vazio.

Se eu utilizei o cosmos para compor minha metáfora não foi à toa: o cinema de Weerasethakul escapa ao plano unicamente terreno, trazendo em si uma forte carga sobrenatural, metafísica e espiritual. E agora há um fio narrativo que comporta esses elementos extraterrenos e inexplicáveis. Porque, sim: muita coisa continua não fazendo sentido. Eu não tenho a menor ideia, por exemplo, do motivo pelo qual uma galinha e seus pintinhos aparecem (por duas vezes) em certos momentos do longa. Ou qual a razão de um homem acometido de disenteria ser mostrado defecando no mato (será por isso que, mais adiante, o diretor contrapõe o céu com uma figura translúcida que sugere alguma célula de uma bactéria ou protozoário? Eu não me arriscaria a dizer...). Mas desta vez, esses elementos imiscíveis que pairam sobre o filme estão ali como parte integrante de um mesmo mistério maior. Todos fazem parte do mesmo longa.   

A trama mostra um hospital em que soldados tailandeses repousam e tentam se recuperar de uma doença inexplicável, que os faz sentir um irresistível sono. Algumas voluntárias ajudam a cuidar desses rapazes, como Jen, uma senhora manca, e Keng, uma jovem que tem o dom de se comunicar com espíritos e ver as vidas passadas das pessoas. Certo dia, Jen encontra duas deusas indochinesas encarnadas na forma de duas moças que lhe contam que o tal hospital foi no passado um palácio de reis e que eles absorvem a energia dos soldados moribundos que ali repousam para lutar suas batalhas. A partir daí, Jen passa a ter um contato cada vez mais íntimo com o jovem Itt, um dos soldados do qual ela cuida.


A relação entre Itt e Jen é multifacetada ao extremo; há algo de mãe e filho nessa ligação, mas também há um encontro de duas pessoas solitárias - embora também exista ali algo de bizarramente sexual. Talvez haja, também, algum paralelo entre espíritos de tempos distintos (mas minhas limitações "ocidentalistas" me impedem de prosseguir muito adiante nessa chave interpretativa). No ápice do longa, a complexidade dessa relação atinge níveis impressionantes: quando Itt cai no sono durante um lanche vespertino, seu espírito encarna no corpo de Keng e, junto a Jen, os dois passeiam por uma espécie de jardim botânico. Na visão de Keng/Itt, ali é ó palácio dos tais reis do passado; para Jen, é o mesmo local com plantas que o público também vê, que lhe remete a vários momentos de sua juventude. Mesmo se a natureza dessa relação não seja muito clara, o essencial está ali: é um encontro, uma interação de duas almas em busca de compreensão mútua e de troca de afeto. Se o filme tem um grande "tema", eu me arriscaria a dizer que é exatamente esse.  

O cinema de Weerasethakul exige um tipo de approach muito especial por parte do público. Não é feito para ser decifrado milimetricamente em cada detalhe – qualquer pessoa que chegue à sessão de algum de seus filmes com essa intenção vai deixar a sala completamente perdida (se não abandoná-la antes do fim da projeção). Apichatpong trabalha, sim, com metáforas, mas as que ele cria são de natureza distinta das alegorias da maior parte dos filmes. São criações instintivas, que não estão lá como "charadas", mas sim como corpos estranhos (e, a rigor, dispensáveis) que ajudam a compor um quadro geral de incompreensão, de mistério. Pode até ser que na cultura tailandesa muitos desses elementos signifiquem alguma coisa mais específica e também que o cineasta saiba muito bem o que quer dizer com cada um deles, mas a melhor maneira de encará-los é como parte de um todo misterioso, algo onírico. O próprio cineasta costuma dizer que muito do que inclui em seus filmes surgem por meio de sonhos.

E o onirismo de Weerasethakul nunca surgiu tão vigoroso e poético como desta vez. O que em filmes anteriores o cineasta tentava e nem sempre conseguia, aqui ele acerta em cheio: o espectador compreende o que está na tela em um nível sensitivo. Os signos em si e a compreensão lógica pouco importam. Algumas sequências são tão bonitas que chegam a comover - o jogo de futebol em meio aos buracos escavados por um trator, as conversas entre Jen e Itt, as luzes de néon que se acendem no quarto de hospital (e ás vezes iluminam toda a cidade).

Um dos pontos mais bonitos se dá em uma sala de cinema, ao fim de um trailer de um filme de qualidade discutível – de repente, o público, em estado de catatonia, talvez de transe ou de enfeitiçamento, levanta-se diante da tela branca, em uma espécie de reverência ao cinema. Estaria ali Apichatpong incitando o público a fazer o mesmo com o cinema que ele próprio pratica? Um cinema que apesar da aparência muitas vezes sem refinamento, primitiva, tosca, é capaz de levar nosso espírito a lugares aonde ele nunca iria em outras circunstâncias? Se for essa a intenção, eu sou capaz de me levantar e repetir o mesmo gesto da plateia; também eu desta vez fui enfeitiçado.


segunda-feira, 7 de março de 2016

Crítica: "A Bruxa"

(The Witch, 2015), de Robert Eggers*

Anya Taylor-Joy, em cena tensa de "A Bruxa"

*[Este texto contém spoilers]

As pessoas têm feito a propaganda errada de "A Bruxa". Antes de assistir, eu já tinha ouvido frases como "é o filme que redefine o cinema de horror" ou então "você acha que já sentiu medo no cinema? Espera só até ver 'A Bruxa'...". O longa de Robert Eggers realmente é um terror acima da média, mas talvez isso seja o que de melhor se possa dizer sobre ele enquanto "filme de gênero". Seu grande diferencial não está aí.

A trama se passa nos EUA coloniais, no século 17. Uma família inglesa extremamente religiosa se afasta de uma comunidade de colonos e tenta a sorte plantando milho em uma área próxima a uma floresta. Mas a colheita vai mal, e fatos estranhos passam a acontecer. Quando o filho mais novo desaparece na mata (enquanto sua irmã mais velha, a adolescente Thomasin, cuidava dele), um clima de histeria toma conta do clã. Em breve, todos acharão que a primogênita é a culpada por todos os problemas: ela seria uma bruxa.

O filme é cheio daqueles detalhes que causam arrepios no público. Há uma cabra que solta sangue na hora da ordenha, há criaturas idosas e decrépitas que surgem do nada no meio da mata, não há sequer um dia de sol. Dois dos filhos do casal são gêmeos travessos e falastrões, que dizem coisas assustadoras e aumentam ainda mais o clima de paranoia naquele núcleo familiar. A fotografia é pouco iluminada, em tons austeros – o filme todo, aliás, é uma reconstituição de muito alto nível do que devia ser os EUA-colônia daquele período histórico: fala-se, move-se e age-se como em uma outra época.

Era uma terra em que pessoas tentavam triunfar por conta própria (e ali nascia o sentimento meritocrático que se tornou uma marca tão profunda na sociedade americana de hoje). E sobretudo um local onde o medo dava as cartas: conhecia-se muito pouco daquela nova terra, então tudo o que não possuía explicação lógica aparente caía na vala comum do sobrenatural, do satânico, da magia.

É aí que o filme se destaca: mostra como uma acusação, quando repetida ad eternum em uma terra dominada pelo obscurantismo, acaba se tornando uma verdade. No caso da jovem Thomasin, ela foi tão insistentemente acusada por todos de ser uma bruxa que acabou assumindo ela mesma esse discurso que lhe impuseram: por fim, se torna de fato uma, em uma extraordinária cena catártica. Também isso diz muito sobre a formação social americana, em que discursos variados sem base científica – mas não raro embasados na fé religiosa – acabam se tornando "verdades" de tanto que foram recorrentemente repetidos. Muitas das crenças mais sórdidas, desumanas e preconceituosas por parte dos americanos de hoje têm origem semelhante. E muitos dos que se assumem "bruxos" e "bruxas" hoje em dia mal se dão conta disso...

Para propor esse comentário sobre a América de hoje, o filme faz uso de contos e narrativas antigas envolvendo o medo de colonos ingleses nos EUA – histórias de bruxarias, fatos inexplicáveis e eventos sobrenaturais. Muitos deles surgem no filme como interessantes elementos metafóricos de algumas situações específicas do convívio familiar. Há, por exemplo, o desejo sexual de um irmão pela irmã – o que prontamente causará punição aos dois envolvidos: o garoto se perderá na floresta (e não resistirá ao flerte de uma feiticeira cruel – uma alegoria para a sedução da própria irmã), enquanto a menina será culpada pelas desgraças da família, sendo considerada uma bruxa. Há também uma curiosa abordagem do confronto muitas vezes problemático entre uma mãe a uma filha, com elementos fortemente freudianos em questão. O filme lembra nessas cenas "Carrie, a Estranha" (e em vários outros momentos, é impossível não pensar em outros longas famosos, como "O Exorcista" e "As Bruxas de Salém").

Nem tudo de sobrenatural no filme, porém, se encaixa no campo das metáforas, e a opção por simplesmente aceitá-las como parte das narrativas sobrenaturais antigas é uma saída em geral fácil, que não está à altura da proposta mais geral do longa de se pretender uma alegoria da formação social americana. O roteiro merecia um pouquinho mais de esforço nesse sentido, muito embora o que chegou à tela não seja de modo algum ruim.

O cineasta Robert Eggers mostra talento visual em seu longa de estreia, embora o filme tenha algumas falhas inesperadas – há uma cena estranhamente editada que envolve um bode atacando o pai da família que não consegue esconder as limitações econômicas deste filme de baixo orçamento (um dos produtores, aliás, foi o brasileiro Rodrigo Teixeira, que também está por trás de projetos indie bem conceituados, como "Frances Ha" e "Mistress America").

Embora o longa exija um ritmo mais lento que o habitual nos filmes de horror, às vezes Eggers leva essa ideia muito ao pé da letra; no meio do filme, quando as personagens se perdem na mata, o filme quase se perde junto a eles. Mas o vigor da história consegue ser recobrado posteriormente, e o longa chega ao fim com bastante força – aliás, termina com um grandioso clímax, que muitos talvez achem que é onde o filme de fato começa. O final realmente denuncia um começo, mas o da sociedade americana de hoje – o longa de Eggers, embora nos desperte o interesse como nunca antes nessa sequência final, termina no ponto exato onde deveria acabar.