Cena de "Cartas da Guerra" |
O filme é de uma afetação impressionante. Mostra um soldado
português que foi lutar em Angola, na guerra que terminaria com a libertação do
país do domínio lusitano, na década de 70. O rapaz deixou em casa sua bela
mulher grávida à sua espera, e enquanto eles não se reencontram, trocam cartas
de amor e confidências.
O roteiro traz trechos inteiros do livro homônimo de António
Lobo Antunes em que se baseia, e obviamente são palavras de muito bom gosto,
poéticas. Mas são literárias demais – certamente quando lidas em uma folha de
papel devem causar um forte efeito lírico. Mas quando declamadas por toda a
duração de um filme por uma linda voz feminina, soam terrivelmente pedantes,
excessivas, muitas vezes até cafonas.
E há no filme um grande desacerto: nada do que está escrito
nas tais cartas equivale ao que a câmera do diretor Ivo Ferreira nos mostra.
Ora, o protagonista passa o filme inteiro reclamando dos horrores da guerra,
dizendo que não se aguenta de saudade da mulher, que o que restou dele é apenas
um vestígio do homem que ele um dia já foi... e no entanto, o que vemos é um
homem saudável, belo, calmo, que parece no máximo levemente entediado. Junto a ele,
outros homens bonitos, contentes, rodeados por paisagens de uma plasticidade estonteante.
Mesmo as cenas de violência são lindas; não há “horror de guerra” algum no
filme.
A única possibilidade de este filme fazer algum sentido é se o entendermos
como um estudo sobre uma narrativa e o quanto ela destoa da realidade; ou sobre o quanto a verdade e o discurso que uma pessoa faz sobre
ela são coisas distintas. A África cosmetizada no preto e branco sebastião-salgadiano da câmera de Ferreira
remete muito mais à ideia de paraíso do que do inferno que ele descreve nas
cartas. Mas certamente essa não foi a intenção do diretor; seu filme é pura
afetação, apenas.
Julia Jentsch em "24 Weeks" |
O longa mais corajoso até o momento é o drama “24 Weeks”, da
alemã Anne Zohra Berrached. Mostra uma comediante que engravida de um filho
que, pouco depois, ela descobre ter síndrome de Down. Após hesitar um pouco,
ela decide tocar a gravidez adiante, mas já em estágio avançado de gestação,
fica sabendo que seu filho terá problemas cardíacos sérios, que talvez o
comprometa para o resto da vida – e que certamente exigiria dos pais dedicação
exclusiva.
Enquanto o Brasil mal ousa a falar em aborto em casos
extremos descobertos no começo da gravidez, eis que a Alemanha nos vem com um
filme em que a personagem chega ao fim dizendo em uma entrevista algo como:
“Precisamos falar sobre o aborto aos sete meses de gestação”. Eu duvido que o longa
sequer ganhe distribuição na maior parte do mundo – no Brasil, no entanto, eu
acredito que talvez até venha (e se vier, fará bastante barulho).
Como realização cinematográfica, “24 Weeks” não é um êxito à
altura do seu potencial polemista, mas é sem sombra de dúvida um filme bem
melhor do que o dramalhão que poderia se tornar. O roteiro tem uma tendência a
quase cair no estilo “filme para a TV”, mas antes de chegar a esse nível baixo,
consegue se recolocar em vôo; é bastante assistível para um tema tão pesado. A
diretora é esperta e inclui toques cômicos de forma a não tornar a cosia toda
muito insuportável. Consegue que o filme seja uma experiência não muito sufocante
por grande parte do tempo, mas nos minutos finais, quando a protagonista
precisa tomar uma decisão, é inevitável: o filme se torna altamente
angustiante.
Se “24 Weeks” pisa em ovos no tratamento da questão do aborto, o
da mulher enquanto única pessoa capaz de decidir se vai ou não interromper a gestação não é sequer discutido; ali, é a
figura feminina que toma a decisão, e ai de quem ousar rejeitar essa ideia
(quando a personagem toma as rédeas sobre as próprias escolhas, houve um grito
na sala – possivelmente de apoio a ela).
Julia Jentsch, uma das atrizes alemãs mais conhecidas fora
de seu país, tem uma atuação bastante boa, intensa como a comediante que perde
a graça ao enfrentar um enorme drama. Se ganhar o prêmio de melhor atriz,
ninguém poderá chamar de injustiça.
"Quand On a 17 Ans" |
O terceiro filme do quarto dia foi “Quand On A 17 Ans”, do francês
veterano André Téchiné. É uma história de dois adolescentes colegas de classe
que se detestam e vivem o tempo todo em conflito físico. O destino faz com que
os dois rapazes precisem conviver por meses em uma mesma casa, mas demora até
eles perderem a raiva que sentem um pelo outro.
Há uma máxima que diz: “Desconfie dos seus ódios” – a frase se
aplica muito bem ao caso exposto no filme. Vou evitar aqui entrar em detalhes de trama,
mas se eu contasse o que acontece não seria spoiler algum – desde o início, apesar
de esforços do cineasta, já se imagina muito bem o que levou os dois jovens a
se detestarem. E se prevê com clareza a que ponto essa aversão de um pelo outro os
levará...
Téchiné já tem mais de 40 anos de carreira, e às vezes eu
tenho a impressão de que a arte dele não evoluiu absolutamente nada nesse tempo
todo. Ao contrário: ele já fez filmes bem mais frescos, inquietos, no passado.
O que ele apresentou em Berlim parece um longa sobre descobertas adolescentes
feito há 20, talvez 30 anos atrás. É um filme palatável, bonito, mas é “velho”,
parecido com 300 outros sobre os mesmos temas. Sua escolha para a competição
oficial é uma injustiça com vozes mais ousadas que poderiam estar ali.
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