O garoto Samuele, do documentário "Fuocoammare" |
Depois de dois dias bem fracos, o terceiro da maratona
berlinense trouxe duas agradáveis surpresas: uma da Itália e outra da França. "Fuocoammare" [Fogo no Mar] tem tudo para sair desta Berlinale com algum
prêmio importante. A começar pelo tema, ligadíssimo ao espírito político desta
edição do Festival: fala sobre a ilha de Lampedusa, porção de terra italiana no Mediterrâneo que
já recebeu 400 mil imigrantes que deixaram o norte da África na tentativa de
uma vida melhor (ou minimamente viável) na Europa. Mais de 15 mil já morreram
no trajeto, em geral organizado por máfias que superlotam navios em péssimas
condições de viagem, cobrando preços diferenciados para a travessia (dependendo
do lugar na embarcação, paga-se de 800 a 1.500 dólares).
O filme oscila entre trechos mostrando moradores da ilha e
imigrantes recém-chegados. A ideia é duplamente boa: se ficasse só nos
moradores e ignorasse os "visitantes", o filme não faria o menor sentido, já
que os estrangeiros inevitavelmente fazem parte essencial do dia a dia na ilha.
E se ficasse apenas mostrando a terrível história dos imigrantes, seria um
filme quase insuportável, de tão pesado – a realidade de quem chega,
infelizmente, é dura demais. O diretor, o italiano Gianfranco Rosi, consegue
alternar ambas as partes com equilíbrio.
As cenas mostrando os africanos que chegam são de deprimir
qualquer um. Vemos pessoas desidratadas, famintas, já sem quase nenhuma
dignidade à espera da caridade dos homens que os recebem na ilha. Uma das cenas
mais fortes mostra um imigrante nigeriano dando um testemunho em forma de lamento
religioso, contando os percalços por que ele e seus conterrâneos passaram entre
a Nigéria e Lampedusa. E há algumas cenas mostrando mulheres aos prantos, desesperadas
diante de um futuro incerto e de uma série de males físicos. São cenas
horríveis, mas necessárias: o mundo precisa ver o que acontece ali. O único
instante em que Rosi vai longe demais é quando mostra uma delas agonizando e,
de repente, fechando os olhos – não dá para saber ao certo, mas a impressão é
de que a mulher morre em frente à câmera (possivelmente se trata de "apenas" um
desmaio, mas só a sugestão da possibilidade de a câmera estar filmando a morte
de alguém já é por si só algo moralmente condenável em excesso).
A parte mais "tranquila" do filme, quando Rosi enfoca os
moradores, é mais irregular. Diante da força das cenas dos africanos, as que
apresentam mulheres de Lampedusa cuidando de seus afazeres e dedicando músicas românticas
em uma rádio local aos seus maridos pescadores parecem constrangedoramente
desinteressantes. Mas Rosi tem dois ótimos personagens diante de sua câmera: um médico, que traz depoimentos
bastante fortes sobre sua experiência com os refugiados, e principalmente um
garoto que mora na ilha, chamado Samuele. É uma criança tão carismática, viva e
enérgica que talvez merecesse um filme só para ele.
Samuele gosta de brincar de dar tiros para o céu com
espingardas imaginárias – às vezes, usa um estilingue para apedrejar rivais de
sua fantasia (seus alvos são cactos da região). Mas acabada a brincadeira, ele
e um amiguinho colocam fitas isolantes nos "ferimentos" dos cactos, como que
reparando o mal que causaram às plantas. Mais adiante, o menino descobre ter um
problema oftálmico chamado de "olho preguiçoso". Como tratamento, precisa usar um
tapume sobre o olho bom, de modo que só o que funciona mal precise ficar atento para
observar as coisas diante dele, sob o risco de a visão se perder por completo. O diretor não poderia ter encontrado uma metáfora melhor e mais completa para transmitir a mensagem do filme: também nós precisamos treinar nossos olhos preguiçosos
a observar com atenção coisas que, normalmente, ignoraríamos.
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Isabelle Huppert e Roman Kolinak, em "L'Avenir" |
O outro filme do dia, "L’Avenir" [O que Está por Vir], de Mia Hansen-Love, se
passa no meio intelectual parisiense. Isabelle Huppert interpreta Natalie, uma
professora de filosofia que leva uma vida sem grandes dramas, até que vários
começam de uma hora para a outra: sua editora não quer renovar o contrato de
sua coleção de livros, seu marido a troca por uma mulher mais jovem, sua mãe
depressiva precisa ser internada.
Mas o filme não é sobre a repentina "derrocada de uma
mulher". Ou melhor: até é, mas nenhum dos eventos é dramático ou triste em
excesso. Ao contrário: tudo, das cenas mais graves às mais banais, recebem
exatamente o mesmo tratamento cinematográfico por parte da câmera de
Hansen-Love – tudo faz parte da vida, ela nos diz. O filme tem esse sabor de "retrato do
cotidiano" – não tem um ápice ou os turning points que os roteiros clássicos
adoram ostentar. É uma série de cenas curtas, rápidas e rasteiras, mostrando a
personagem principal tocando a vida adiante da melhor forma que pode, à espera do futuro
(o l’avenir do título em francês).
Talvez o longa fosse uma enorme chatice com uma atriz errada
como protagonista, mas Hansen-Love tem o maior trunfo possível: Isabelle
Huppert. O filme, no fim das contas, é sobre ela: como Isabelle reage a cada
situação, das sérias às triviais. É inacreditável como a atriz nunca exagera ou atua fora do seu
próprio padrão. Ela é o tempo todo "Isabelle Huppert", talvez mais até do que
nunca, mas milagrosamente sua Natalie nos parece uma personagem nova, distinta de todas as
outras que a atriz já interpretou.
Eu sempre soube que Huppert jamais conseguiria uma nova
performance do nível de excelência da que teve em "A Professora de Piano"
(2001), mas ela mostrou que estava longe de se dar por satisfeita várias vezes depois disso. Voltou inclusive a um novo ápice e desbravou caminhos totalmente novos em "A Visitante
Francesa" (2012), em que demonstrava um controle absoluto sobre o corpo e um domínio quase meyerholdiano sobre os próprios movimentos (pouca
gente, porém, reparou na grandeza de sua performance ali). E eis que, agora,
ela volta a surpreender, em uma atuação bastante menos exigente, mas tão magnética e segura de
si que o público se esquece de qualquer outra coisa no filme para simplesmente se
deleitar vendo o que ela é capaz de fazer. "L’Avenir" inexistiria sem Isabelle
Huppert.
Durante a sessão para a imprensa, o júri presidido por Meryl
Streep também estava presente na sala. A sensação de ter as duas maiores
atrizes de cinema vivas em um mesmo recinto – uma na tela, outra em uma poltrona
– foi algo indescritível; uma felicidade de que eu jamais vou me esquecer na vida.
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