sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Berlim 2016 - Críticas-pílula: vários filmes

"Death in Sarajevo"

O bósnio Danis Tanovic trouxe um filme bastante aplaudido para a Berlinale. “Death in Sarajevo” se inspira em uma peça do intelectual francês Bernard Henri-Lévy que coloca em questão noções sobre ser “europeu”, especialmente 100 anos depois do início da I Guerra Mundial. O filme se passa durante as rememorações do centenário do assassinato de Francisco Ferdinando, em Sarajevo, o que teria (segundo os livros de história) marcado o começo do conflito.

É um filme com diversos personagens, sem nenhum se destacar em relação ao outro. A ação se passa em um hotel, talvez o ambiente mais propício (e mais fácil) para um roteirista encher de personagens variados – desde “Grande Hotel”, o artifício já foi tão usado que esse tipo de filme de ensemble praticamente já virou um gênero por si só. Infelizmente, Tanovic não consegue escapar muito dos clichês, mas é um trabalho muito eficiente de direção – o longa é fluido, com a câmera seguindo os personagens sem tremer (o que é raro hoje em dia). As situações são em geral curiosas, e as discussões políticas sempre enriquecedoras, embora em alguns momentos sejam muito específicas – quem não conhece em detalhe as questões envolvendo a ex-Iugoslávia fica sem compreender grande parte do que é debatido. Mas no geral é um belo filme, que se sustenta bem.

"Alone in Berlin"

Até o momento, “Midnight Special” é o pior filme da competição, mas “Alone em Berlin”, de Vincent Perez, se esforça o quanto pode na disputa por essa desonrada posição. O filme é quadrado demais para estar em um festival de cinema. Mas tem uma estrela (Emma Thompson), um astro alemão (Daniel Brühl) e se passa... em Berlim! Logo, seguindo a (discutível) lógica do curador do festival, é filme para estar na briga pelo Urso de Ouro...

A história é bem intencionada: mostrar um casal de berlinenses que, no começo dos anos 40, resistiram a Hitler e ao nazismo, divulgando por conta própria propaganda contra o governo. Mas o filme é meio mal feito (a montagem no começo é particularmente ruim), careta, sem imaginação. E sem charme algum. O elenco se esforça, mas pra quê? O ex-galã e agora diretor Perez não sabe tirar vantagem desta, que é uma das poucas coisas positivas de seu filme. Que há de cair em merecido esquecimento.

"Crosscurrent"

Eu cheguei dez minutos atrasado para a sessão do chinês “Crosscurrent”, de Yang Chao. Então custei a entender minimamente do que o filme se tratava – e confesso que deixei a sala ainda sem saber muito bem as intenções do cineasta (e mesmo vários detalhes de trama). Mas isso não foi um problema muito sério: o filme me satisfez em um nível sensorial – mesmo entediado pela falta de ação, informação e diálogos, tive meu interesse mantido por grande parte da projeção. Os asiáticos são peculiarmente fortes para criar imagens, e Yang segue a mesma tradição. Mas eu acredito que, em “Crosscurrent”, elas por si só não segurariam o espetáculo. O cineasta, porém, faz um uso notável do som – quando não há a bela trilha sonora para nos manter envolvidos, quem se presta a isso são os barulhos das embarcações do rio Yangtzé, que têm um efeito apaziguante, talvez encantatório nos nossos ouvidos.

A trama é sobre um rapaz que viaja ao longo do rio Yangtzé, me parece que influenciado por um poeta que já percorreu o mesmo caminho. A cada parada, se encontra com o que parece ser a mesma mulher, ou talvez uma aparição, quem sabe um espírito – mas não posso dizer com muita certeza. Claramente o diretor tinha alguma mensagem de natureza mística ou religiosa para transmitir, mas eu confesso ser ocidentalizado demais para captar qual ela foi. Não só eu: na sessão em que eu vi o longa, muita gente saiu da sala antes do fim. Mas quem permaneceu, se se frustrou diante de um filme talvez abstrato demais, ao menos conferiu uma obra que fala aos sentidos.

"Soy Nero"

“Soy Nero”, do iraniano Raffi Pitts, começou com cara de Urso de Ouro. O filme é tão interessante e bem conduzido na primeira parte que eu imaginei que o prêmio já estava garantido. Mas a certa altura, Pitts perde o controle de uma forma lastimável – embora ele já tenha um currículo sólido, o filme lhe escapa das mãos como costuma ocorrer com cineastas iniciantes (e também, muitas vezes, há a impressão de que o longa talvez não tenha tido orçamento à altura de suas ambições). Ainda assim, é um filme forte, sobre a questão da obsessão dos mexicanos de conseguir um Green Card – no caso do protagonista, alistando-se no exército dos EUA e indo para a Guerra. A direção de Pitts tem toques de alta criatividade (e alguns até de gênio) – ele tem o dom para as situações absurdas ou estranhas. É um cineasta a ser observado com atenção.

"Genius"

“Genius” talvez fosse um filme pelo qual eu tivesse uma discreta simpatia se o assistisse em algum outro contexto - talvez no meio do ano, em alguma entressafra de boas estreias. Mas em um festival de cinema como Berlim, a experiência é até meio constrangedora para o cineasta, Michael Grandage, tamanha a falta de ousadia e de interesse em tornar o filme algo minimamente contundente. É a história do editor que lançou nomes como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald. O foco do filme é no contraste entre ele, que era um sujeito todo certinho, e o escritor Thomas Wolfe, que era o seu oposto – um homem amalucado, a mil por hora, sem muito senso de responsabilidade. A atuação de Jude Law na pele de Wolfe é tão ruim quanto se pode imaginar. A de Colin Firth como o editor é boa, mas é o mesmo papel que ele tem feito desde... sei lá, talvez sempre. Há ainda Nicole Kidman e Laura Linney, perdidas no meio desse marasmo todo.

"Zero Days"

“Zero Days” é um documentário sobre um vírus de computador criado para ameaçar o plano atômico iraniano, mas que acabou se tornando um malware capaz de infectar PCs do mundo inteiro. O cineasta Alex Gibney não tinha uma tarefa fácil: explicar termos técnicos de informática e de engenharia nuclear, além de detalhes de geopolítica. Mas o filme consegue fazer tudo isso com notável fluidez. Gibney encontra algumas boas soluções quando seu filme parecia marcado para ser entediante, principalmente a escolha de um ritmo e um crescendo no estilo de um thriller de espionagem. Mas o longa não é muito diferente de uma bem produzida reportagem jornalística; é interessantíssimo (e faz revelações surpreendentes) em seu conteúdo, mas em termos cinematográficos não vai muito além do que um documentário mediano consegue ir.

"The Commune"

Eu adoraria ter gostado mais de “The Commune”, de Thomas Vinterberg, sobre um grupo de amigos que resolvem morar juntos, em uma comunidade pós-hippie (urbana e “civilizada”), nos anos 70. O filme é gracioso, leve, e tem uma atuação excepcionalmente boa de Trine Dylholme, como uma repórter que se acha moderna demais a ponto de viver na mesma casa que o marido e sua amante (mas que, logo, vai perceber que o buraco é mais embaixo). Mesmo na liberadíssima Dinamarca, o ciúme é algo muito forte. No papel do marido dela, Ulrich Thomsen também está excelente – não me surpreenderia se os dois levassem os prêmios de atuação deste ano.

Agora, o filme em si me pareceu um desperdício de uma boa ideia. O título é enganador – embora se passe em uma comunidade, o foco é basicamente nos dois personagens (há também uma adolescente com importância na trama – ela é um alter ego do diretor, que foi criado em uma comunidade como a do filme). Para mim, o longa falha no que é principal: não me foi transmitida uma imagem de como funcionava e o que eram ao certo essas moradias comunitárias – eu talvez tenha saído da sala com mais dúvidas que certezas sobre esse estilo de vida dinamarquês dos anos 70. O filme é, no fundo, sobre o triângulo amoroso envolvendo o casal principal e uma estudante – a comunidade é mera figuração. E a adolescente me parece uma personagem meio perdida – deveria ser o ponto de vista do diretor, mas parece, na realidade, com um papel não muito bem construído. Mas dizer que o filme é ruim seria uma mentira; ele apenas não vai tão longe como parecia ter capacidade para ir.

"A Lullaby to the Sorrowful Mystery"

Para concluir: o filme de oito horas do filipino Lav Diaz, “A Lullaby to the Sorrowful Mystery”. O que dizer? Poderia ser o melhor do festival, mas... oito horas? Ainda pretendo escrever uma crítica só dele, mas, por enquanto, deixo aqui meu relato em primeira pessoa sobre a experiência de vê-lo em Berlim, em texto meu publicado no UOL. Eis o link: http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2016/02/18/juri-nao-comparece-e-diretor-sai-antes-do-final-de-filme-de-8-h-em-berlim.htm.

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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Crítica: "Cartas da Guerra", "24 Weeks" e "Quand On A 17 Ans"


Cena de "Cartas da Guerra"
“Cartas da Guerra” é um filme perturbadoramente bonito. As palavras que descrevem os fatos são muito bem escolhidas, as vozes que narram são elegantes, os atores são extremamente fotogênicos. A direção de fotografia, então, chega a comover, de tão bonita (é o melhor preto e branco em anos). E no entanto...

O filme é de uma afetação impressionante. Mostra um soldado português que foi lutar em Angola, na guerra que terminaria com a libertação do país do domínio lusitano, na década de 70. O rapaz deixou em casa sua bela mulher grávida à sua espera, e enquanto eles não se reencontram, trocam cartas de amor e confidências.

O roteiro traz trechos inteiros do livro homônimo de António Lobo Antunes em que se baseia, e obviamente são palavras de muito bom gosto, poéticas. Mas são literárias demais – certamente quando lidas em uma folha de papel devem causar um forte efeito lírico. Mas quando declamadas por toda a duração de um filme por uma linda voz feminina, soam terrivelmente pedantes, excessivas, muitas vezes até cafonas.

E há no filme um grande desacerto: nada do que está escrito nas tais cartas equivale ao que a câmera do diretor Ivo Ferreira nos mostra. Ora, o protagonista passa o filme inteiro reclamando dos horrores da guerra, dizendo que não se aguenta de saudade da mulher, que o que restou dele é apenas um vestígio do homem que ele um dia já foi... e no entanto, o que vemos é um homem saudável, belo, calmo, que parece no máximo levemente entediado. Junto a ele, outros homens bonitos, contentes, rodeados por paisagens de uma plasticidade estonteante. Mesmo as cenas de violência são lindas; não há “horror de guerra” algum no filme.

A única possibilidade de este filme fazer algum sentido é se o entendermos como um estudo sobre uma narrativa e o quanto ela destoa da realidade; ou sobre o quanto a verdade e o discurso que uma pessoa faz sobre ela são coisas distintas. A África cosmetizada no preto e branco sebastião-salgadiano da câmera de Ferreira remete muito mais à ideia de paraíso do que do inferno que ele descreve nas cartas. Mas certamente essa não foi a intenção do diretor; seu filme é pura afetação, apenas.

Julia Jentsch em "24 Weeks"
O longa mais corajoso até o momento é o drama “24 Weeks”, da alemã Anne Zohra Berrached. Mostra uma comediante que engravida de um filho que, pouco depois, ela descobre ter síndrome de Down. Após hesitar um pouco, ela decide tocar a gravidez adiante, mas já em estágio avançado de gestação, fica sabendo que seu filho terá problemas cardíacos sérios, que talvez o comprometa para o resto da vida – e que certamente exigiria dos pais dedicação exclusiva.

Enquanto o Brasil mal ousa a falar em aborto em casos extremos descobertos no começo da gravidez, eis que a Alemanha nos vem com um filme em que a personagem chega ao fim dizendo em uma entrevista algo como: “Precisamos falar sobre o aborto aos sete meses de gestação”. Eu duvido que o longa sequer ganhe distribuição na maior parte do mundo – no Brasil, no entanto, eu acredito que talvez até venha (e se vier, fará bastante barulho).

Como realização cinematográfica, “24 Weeks” não é um êxito à altura do seu potencial polemista, mas é sem sombra de dúvida um filme bem melhor do que o dramalhão que poderia se tornar. O roteiro tem uma tendência a quase cair no estilo “filme para a TV”, mas antes de chegar a esse nível baixo, consegue se recolocar em vôo; é bastante assistível para um tema tão pesado. A diretora é esperta e inclui toques cômicos de forma a não tornar a cosia toda muito insuportável. Consegue que o filme seja uma experiência não muito sufocante por grande parte do tempo, mas nos minutos finais, quando a protagonista precisa tomar uma decisão, é inevitável: o filme se torna altamente angustiante. 

Se “24 Weeks” pisa em ovos no tratamento da questão do aborto, o da mulher enquanto única pessoa capaz de decidir se vai ou não interromper  a gestação não é sequer discutido; ali, é a figura feminina que toma a decisão, e ai de quem ousar rejeitar essa ideia (quando a personagem toma as rédeas sobre as próprias escolhas, houve um grito na sala – possivelmente de apoio a ela).

Julia Jentsch, uma das atrizes alemãs mais conhecidas fora de seu país, tem uma atuação bastante boa, intensa como a comediante que perde a graça ao enfrentar um enorme drama. Se ganhar o prêmio de melhor atriz, ninguém poderá chamar de injustiça.

"Quand On a 17 Ans"

O terceiro filme do quarto dia foi “Quand On A 17 Ans”, do francês veterano André Téchiné. É uma história de dois adolescentes colegas de classe que se detestam e vivem o tempo todo em conflito físico. O destino faz com que os dois rapazes precisem conviver por meses em uma mesma casa, mas demora até eles perderem a raiva que sentem um pelo outro.

Há uma máxima que diz: “Desconfie dos seus ódios” – a frase se aplica muito bem ao caso exposto no filme. Vou evitar aqui entrar em detalhes de trama, mas se eu contasse o que acontece não seria spoiler algum – desde o início, apesar de esforços do cineasta, já se imagina muito bem o que levou os dois jovens a se detestarem. E se prevê com clareza a que ponto essa aversão de um pelo outro os levará...

Téchiné já tem mais de 40 anos de carreira, e às vezes eu tenho a impressão de que a arte dele não evoluiu absolutamente nada nesse tempo todo. Ao contrário: ele já fez filmes bem mais frescos, inquietos, no passado. O que ele apresentou em Berlim parece um longa sobre descobertas adolescentes feito há 20, talvez 30 anos atrás. É um filme palatável, bonito, mas é “velho”, parecido com 300 outros sobre os mesmos temas. Sua escolha para a competição oficial é uma injustiça com vozes mais ousadas que poderiam estar ali.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Berlim 2016 - Crítica: "Fuocoammare" [Fogo no Mar] e "L'Avenir" [O que Está por Vir]

O garoto Samuele, do documentário "Fuocoammare"

Depois de dois dias bem fracos, o terceiro da maratona berlinense trouxe duas agradáveis surpresas: uma da Itália e outra da França. "Fuocoammare" [Fogo no Mar] tem tudo para sair desta Berlinale com algum prêmio importante. A começar pelo tema, ligadíssimo ao espírito político desta edição do Festival: fala sobre a ilha de Lampedusa, porção de terra italiana no Mediterrâneo que já recebeu 400 mil imigrantes que deixaram o norte da África na tentativa de uma vida melhor (ou minimamente viável) na Europa. Mais de 15 mil já morreram no trajeto, em geral organizado por máfias que superlotam navios em péssimas condições de viagem, cobrando preços diferenciados para a travessia (dependendo do lugar na embarcação, paga-se de 800 a 1.500 dólares).

O filme oscila entre trechos mostrando moradores da ilha e imigrantes recém-chegados. A ideia é duplamente boa: se ficasse só nos moradores e ignorasse os "visitantes", o filme não faria o menor sentido, já que os estrangeiros inevitavelmente fazem parte essencial do dia a dia na ilha. E se ficasse apenas mostrando a terrível história dos imigrantes, seria um filme quase insuportável, de tão pesado – a realidade de quem chega, infelizmente, é dura demais. O diretor, o italiano Gianfranco Rosi, consegue alternar ambas as partes com equilíbrio.

As cenas mostrando os africanos que chegam são de deprimir qualquer um. Vemos pessoas desidratadas, famintas, já sem quase nenhuma dignidade à espera da caridade dos homens que os recebem na ilha. Uma das cenas mais fortes mostra um imigrante nigeriano dando um testemunho em forma de lamento religioso, contando os percalços por que ele e seus conterrâneos passaram entre a Nigéria e Lampedusa. E há algumas cenas mostrando mulheres aos prantos, desesperadas diante de um futuro incerto e de uma série de males físicos. São cenas horríveis, mas necessárias: o mundo precisa ver o que acontece ali. O único instante em que Rosi vai longe demais é quando mostra uma delas agonizando e, de repente, fechando os olhos – não dá para saber ao certo, mas a impressão é de que a mulher morre em frente à câmera (possivelmente se trata de "apenas" um desmaio, mas só a sugestão da possibilidade de a câmera estar filmando a morte de alguém já é por si só algo moralmente condenável em excesso).

A parte mais "tranquila" do filme, quando Rosi enfoca os moradores, é mais irregular. Diante da força das cenas dos africanos, as que apresentam mulheres de Lampedusa cuidando de seus afazeres e dedicando músicas românticas em uma rádio local aos seus maridos pescadores parecem constrangedoramente desinteressantes. Mas Rosi tem dois ótimos personagens diante de sua câmera: um médico, que traz depoimentos bastante fortes sobre sua experiência com os refugiados, e principalmente um garoto que mora na ilha, chamado Samuele. É uma criança tão carismática, viva e enérgica que talvez merecesse um filme só para ele.

Samuele gosta de brincar de dar tiros para o céu com espingardas imaginárias – às vezes, usa um estilingue para apedrejar rivais de sua fantasia (seus alvos são cactos da região). Mas acabada a brincadeira, ele e um amiguinho colocam fitas isolantes nos "ferimentos" dos cactos, como que reparando o mal que causaram às plantas. Mais adiante, o menino descobre ter um problema oftálmico chamado de "olho preguiçoso". Como tratamento, precisa usar um tapume sobre o olho bom, de modo que só o que funciona mal precise ficar atento para observar as coisas diante dele, sob o risco de a visão se perder por completo. O diretor não poderia ter encontrado uma metáfora melhor e mais completa para transmitir a mensagem do filme: também nós precisamos treinar nossos olhos preguiçosos a observar com atenção coisas que, normalmente, ignoraríamos.

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Isabelle Huppert e Roman Kolinak, em "L'Avenir"

O outro filme do dia, "L’Avenir" [O que Está por Vir], de Mia Hansen-Love, se passa no meio intelectual parisiense. Isabelle Huppert interpreta Natalie, uma professora de filosofia que leva uma vida sem grandes dramas, até que vários começam de uma hora para a outra: sua editora não quer renovar o contrato de sua coleção de livros, seu marido a troca por uma mulher mais jovem, sua mãe depressiva precisa ser internada.

Mas o filme não é sobre a repentina "derrocada de uma mulher". Ou melhor: até é, mas nenhum dos eventos é dramático ou triste em excesso. Ao contrário: tudo, das cenas mais graves às mais banais, recebem exatamente o mesmo tratamento cinematográfico por parte da câmera de Hansen-Love – tudo faz parte da vida, ela nos diz. O filme tem esse sabor de "retrato do cotidiano" – não tem um ápice ou os turning points que os roteiros clássicos adoram ostentar. É uma série de cenas curtas, rápidas e rasteiras, mostrando a personagem principal tocando a vida adiante da melhor forma que pode, à espera do futuro (o l’avenir do título em francês).

Talvez o longa fosse uma enorme chatice com uma atriz errada como protagonista, mas Hansen-Love tem o maior trunfo possível: Isabelle Huppert. O filme, no fim das contas, é sobre ela: como Isabelle reage a cada situação, das sérias às triviais. É inacreditável como a atriz nunca exagera ou atua fora do seu próprio padrão. Ela é o tempo todo "Isabelle Huppert", talvez mais até do que nunca, mas milagrosamente sua Natalie nos parece uma personagem nova, distinta de todas as outras que a atriz já interpretou.

Eu sempre soube que Huppert jamais conseguiria uma nova performance do nível de excelência da que teve em "A Professora de Piano" (2001), mas ela mostrou que estava longe de se dar por satisfeita várias vezes depois disso. Voltou inclusive a um novo ápice e desbravou caminhos totalmente novos em "A Visitante Francesa" (2012), em que demonstrava um controle absoluto sobre o corpo e um domínio quase meyerholdiano sobre os próprios movimentos (pouca gente, porém, reparou na grandeza de sua performance ali). E eis que, agora, ela volta a surpreender, em uma atuação bastante menos exigente, mas tão magnética e segura de si que o público se esquece de qualquer outra coisa no filme para simplesmente se deleitar vendo o que ela é capaz de fazer. "L’Avenir" inexistiria sem Isabelle Huppert.

Durante a sessão para a imprensa, o júri presidido por Meryl Streep também estava presente na sala. A sensação de ter as duas maiores atrizes de cinema vivas em um mesmo recinto – uma na tela, outra em uma poltrona – foi algo indescritível; uma felicidade de que eu jamais vou me esquecer na vida.


sábado, 13 de fevereiro de 2016

Berlim 2016 - filmes do segundo dia


Cena do tunisiano "Hedi"
A AMANTE 
[atual. 31/05/2018: filme exibido na Berlinale 2016 com o nome original "Hedi"]

O segundo dia Berlim começou com um filme de um iniciante, o tunisiano Mohamed Ben Attia. “Hedi” tem como produtores os irmãos Dardenne, então talvez isso explique por que o filme tenha tantas cenas com a câmera tremida e grudadas no pescoço do personagem principal, Hedi, um jovem à beira de tomar decisões que vão mudar sua vida para sempre.

O tema do filme é o embate “tradição x mundo moderno”. O protagonista é um rapaz de uma família burguesa tunisiana insatisfeito com a própria vida. Ele vai em breve se casar com uma jovem bonita e bem nascida, mas fútil e submissa demais para despertar seu interesse. Quando eles estão juntos, até existe algo entre eles, mas no máximo uma relação de ternura mútua; mas o clima do encontro é sempre de frieza.

Também em seu trabalho, Hedi parece ausente – ele é vendedor de seguros de carros, e talvez seja a pessoa menos indicada no mundo para a função: não é comunicativo, carismático e nem tem o menor poder de convencimento.

Tudo muda quando ele vai trabalhar em um balneário, onde conhece uma moça que faz bicos de babá e ganha a vida dançando em um grupo que anima um resort cafona na região. Ela é carnal, voluptuosa, moderna. Hedi se apaixona e decide fugir com ela para uma vida de incertezas, mas de prazer – e, provavelmente, amor.

Hedi é um jovem do mundo de hoje, parte da geração que fez a chamada Revolução de Jasmim, a primeira das “primaveras árabes”. Tem o espírito aberto para mudanças – sua geração não se contenta mais com o pensamento antiquado da sociedade tunisiana conservadora em que nasceu. O filme é bem feito, mas o diretor (em seu primeiro longa), embora faça um interessante longa sobre os desdobramentos da revolução na Tunísia, não traz nada de novo ao tema da “revolução pessoal”. É uma história às vezes tocante, intimista, mas a partir do momento em que a intriga geral é apresentada, o público já sabe exatamente o quê e como o que vem pela frente vai acontecer (a cena final, “aberta”, é um enorme clichê). Mas pelo menos o filme se distingue ao trazer informações interessantes sobre a sociedade na Tunísia da década de 2010, no pós-revolução, mostrando como a juventude do país está cada vez mais ocidentalizada.

Seria isso ruim? Enquanto os valores ocidentais assimilados tiverem relação com questões humanistas, é algo positivo; é o tipo de contaminação cultural mais do que bem-vinda  – e o longa nos mostra que isso tem ocorrido, sim, na Tunísia. Mas no que tange aos apelos do consumismo e da adoção de um estilo de vida acelerado e que visa a performance (que o filme também nos mostra, ainda que transversalmente), aí uma certa resistência é sempre importante. Saber dosar isso parece ser um dos grandes desafios dos países árabes mais progressistas, e nesse sentido, “Hedi” surge como importante documento dessa época.     

Shannon e o garoto Leibeher em "Midnight Special"

MIDNIGHT SPECIAL
Por outro lado, quase nada foi minimamente aproveitável da sessão de “Midnight Special”, a não ser a comprovação de algo que eu já suspeitava: Jeff Nichols não é nem de perto o gênio que a “Cahiers de Cinéma” quer vender para o resto do mundo. Muito pelo contrário – o filme é ruim em um nível quase absurdo. O curador da Berlinale, Dieter Kosslick, costumeiramente reserva uns dois ou três filmes péssimos para a seção competitiva – talvez em nome da diversidade, da pluralidade (vai saber). “Midnight Special” certamente entrou na briga pelo Urso de Ouro dentro dessa “cota”.

O filme é sobre uma criança com poderes especiais (que solta raios luminosos pelos olhos), que precisa ser escoltada por seu pai na fuga de perseguições de extremistas religiosos e do FBI. Michael Shannon é o protagonista, e se além de revelar as deficiências de Nichols enquanto cineasta o filme nos dá outra lição, é a de que Shannon definitivamente não segura um filme em um papel principal de “mocinho”. Ele não tem carisma, presença – tem, sim, alguma técnica, mas isso é insuficiente; ele nunca envolve o espectador. E aqui ele divide a maior parte das cenas com Joel Edgerton, que é um ator capaz de boas performances (como no interessante “The Gift”, que ele próprio dirigiu), mas sem a devida orientação tem uma enorme propensão ao overacting – que é exatamente o que ele faz aqui. O personagem dele é uma incógnita – é um amigo de infância de Shannon que o ajuda na fuga com o garoto “iluminado”. Mas qual o significado dele enquanto personagem? Ele não faz o menor sentido na trama e não tem o menor desenvolvimento dramatúrgico.

O elenco traz ainda Sam Shepard, excelente na pele de um pastor fervoroso, e Adam Driver, divertido como um pesquisador que faz perguntas impertinentes. E há Kirsten Dunst, sem maquiagem e chorosa, na pele da mãe do garoto – ela não acrescenta muita coisa à personagem, uma espécie de “Maria” moderna, mãe de um messias esdruxulamente robótico, vivido pelo pequeno Jaeden Leibeher (as falas dele quando “possuído” são tão ridículas e ditas de forma tão solene que a plateia gargalhava cada vez que o menino entrava em transe).

A certa altura, tal criança revela ser alguém de um outro mundo que está na Terra com alguma missão messiânica. O filme certamente é uma alegoria de alguma coisa – talvez sobre a necessidade de, no mundo atual, perdido e condenado à autodestruição, as pessoas terem alguma fé –, mas qualquer tema de fundo se perde diante da ficção científica de segunda linha que Nichols apresenta. O filme é um sub-Spielberg, que traz o que os piores filmes do americano têm de ruim, só que com o ritmo presunçosamente arrastado dos longas de Nichols. Houve quem disse que gostou (uma minoria), mas eu duvido que se o filme trouxesse a assinatura de um outro diretor tais reações seriam assim positivas.

James Hyndman em "Boris sans Béatrice"

BORIS SANS BÉATRICE
A outra sessão competitiva do dia foi a do canadense “Boris sans Béatrice”, de Denis Côté. O filme mostra um homem que, enquanto aguarda que sua mulher supere uma grave crise de angústia e depressão, praticamente em estado vegetativo, tenta viver sua vida, abusando dos romances com belas mulheres. Não posso comentar muito porque precisei deixar a sessão antes do fim, mas até onde eu assisti, não parecia exatamente muito promissor; o ator principal, James Hyndman, é eficiente, mas não gera muita empatia, e o diretor parece muitas vezes preocupado demais com os toques visuais "espertos" do filme que com o seu sentido. Quem viu até o fim disse que a coisa não melhora muito; foi recebido com frieza pelos jornalistas que assistiram até o final.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Berlim 2016 - Crítica: "Ave, César!"

(Hail, Caesar!, 2016), de Ethan e Joel Coen


Scarlett Johansson em cena do filme

O Festival de Berlim vem politizado como há anos não se via, mas o filme escolhido para abrir o evento foi esta comédia relativamente despretensiosa dos irmãos Coen, com um elenco superestelar: tem George Clooney, Josh Brolin, Scarlett Johansson, Tilda Swinton, Ralph Fiennes, Channing Tatum e Frances McDormand, entre outros.

Eu digo “relativamente” porque, como de hábito, por trás da aparência meramente fútil do filme (sobre a Hollywood dos anos 50), os Coen abordam temas mais profundos que se poderia pensar em um primeiro momento. Mas os temas são em geral só tangenciados; não é um filme “pesado” e nem denso como muitos esperariam (e gostariam) que fosse.

O longa se ancora na rotina de um produtor de um grande estúdio (Brolin) especialista em contornar os passos em falso do grande elenco de sua companhia – é uma espécie de “babá” das estrelas. Uma delas é uma atriz ninfomaníaca que fica grávida solteira, o outro é um ator caipirão que faz seu primeiro filme dramático (mas mal consegue dizer uma fala, de tão despreparado), outro é o diretor refinado que entra em conflito que esse novo queridinho do estúdio... Há ainda um galã de filmes épicos que é sequestrado por um grupo de comunistas, duas colunistas de fofocas gêmeas (e arqui-inimigas) ávidas por algum escândalo, e por aí vai.

Lendo a descrição desses personagens curiosos é possível imaginar que seja uma comédia bastante divertida e repleta de situações hilárias. De fato o filme tem os seus momentos, mas a verdade é que os Coen não pareciam estar com a inspiração habitual nem ao escrever o roteiro (que pouco tem a acrescentar ao que o cinema já mostrou em outras paródias de Hollywood) e nem ao dirigir - a trama tem problemas de ritmo, e não se sabe ao certo se os números musicais são ruins por serem sátiras aos filmes ruins desse gênero ou se a intenção (falha) era a de homenageá-los com momentos “mágicos”.

O filme é propositadamente generalista – os Coen disseram não querer se inspirar em ninguém em específico ao criar nenhum dos personagens ou episódios. Não é muito verdade – muitos deles são fáceis de saber em quem foram baseados (as gêmeas de Swinton, por exemplo, são claramente versões univitelinas das rainhas do gossip Hedda Hopper e Louella Parsons). Mas no geral, de fato não se reconhece muito ao certo de quem cada personagem fictício se trata – o que é bom, por dar certa liberdade aos atores de criarem algo com algum frescor, e ruim, porque na indecisão entre ser uma pessoa X, Y ou Z, os personagens acabam não sendo ninguém. E o filme, em si, também termina ficando sem uma personalidade marcada – é uma obra estranha, difícil de enquadrar mesmo dentro da filmografia dos Coen (muitas das inúmeras referências a outros longas são concebidas de modo tão genérico que sabemos que são citações, mas não exatamente a que filme – e nem temos lá muito interesse em descobrir, para dizer a verdade).

Mas há toques do humor fino dos Coen aqui e acolá – há uma divertidíssima cena logo no início em que o produtor pede consultoria a líderes de várias religiões para um filme sobre Jesus Cristo. Mas muitas boas ideias são desperdiçadas – em uma sequência, um grupo de escritores de esquerda se reúne às escondidas e vai a alto mar ao encontro de um submarino soviético, que é algo próximo da imagem do “bicho-papão” que muitos americanos dos anos 50 (e de hoje) tinham (ou têm) das pessoas de esquerda, na era do macartismo. Mas a cena é mal arquitetada, talvez também mal encenada – não tem força humorística e nem dramática o suficiente para segurar o potencial alegórico de comentário sobre a paranoia americana; é uma decepção.
     
Pelo próprio estilo do filme, as atuações são todas acima do tom – com exceção da de Brolin, o protagonista. Nenhuma delas é memorável (talvez apenas a de Ralph Fiennes, como o diretor afetado), mas todas são eficientes – percebe-se com clareza o quanto o charme e talento de um ator contribui para o sucesso de um filme. Aliás, “Ave, César!” é também sobre isso: o poder de sedução dos astros, que foi o que salvou muitos filmes ruins de Hollywood, guardando produtos de qualidade muito discutível no coração do público. O que, no entanto, dificilmente deve acontecer com este pouco memorável novo filme dos irmãos Coen.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Crítica: "Mad Max: Estrada da Fúria"

(Mad Max: Fury Road, 2015), de George Miller*

Tom Hardy e Charlize Theron em "Estrada da Fúria"

O quarto filme da franquia australiana retoma a história do guerreiro das estradas Max Rockatansky, em uma Austrália futurista de um planeta caótico. A trama conta com elementos ecológicos e tem um subtexto libertário (de inspiração esquerdista), mas o foco é mesmo na forma. As cenas de adrenalina são realmente de tombar o queixo, garantidas por uma montagem frenética, efeitos sonoros bem sincronizados e uma porção de ângulos de filmagem criativos, bem ao estilo do diretor. Miller usa de modo esperto alguns truques antigos, que o cinema parecia ter esquecido, como a aceleração de imagens; algumas cenas, além de ágeis, ganham comicidade com essa trucagem. 

O longa tem algo de operístico: tudo acontece em uma escala maior e mais impressionante do que se esperaria – talvez seja por isso que impressione tantas pessoas (ouvi de algumas que o filme é uma "revolução" no âmbito do cinema de ação; não chega a tanto). Esse aspecto de "ópera" é mesmo impactante, mas a verdade é que muitas vezes ele vai mais contra o filme que a seu favor. As sequências de batalha nas estradas, por exemplo, apesar do ritmo alucinante, me parecem um tanto mais longas do que deveriam ser; são como lindas árias cantadas por competentes tenores e sopranos, mas são árias quase intermináveis, que a certa altura cansam a plateia (mesmo gostando do filme, eu devo ter conferido o relógio umas três ou quatro vezes – e quando um espectador checa as horas durante um filme de ação, alguma coisa não está muito certa).

Mas em praticamente todos os outros pontos, o filme é um êxito. É preciso tirar o chapéu, por exemplo, para a opção de Miller por fazer um filme com imagens claras, com uma fotografia luminosa; ele vai na contracorrente da maior parte dos filmes repletos de efeitos especiais, que por razões técnicas abusam das tonalidades escuras/azul-petróleo. As cenas aqui são solares e reluzentes como pede um deserto, mesmo quando a ação é noturna. E o filme é cheio daquele tipo de detalhe visual inusitado, meio barroco, que Miller adorava incluir nos outros filmes da franquia.

Algumas imagens ficam na nossa retina: o guitarrista enlouquecido tocando riffs de estímulo a um pelotão de guerreiros; um grupo de mães rechonchudas doando leite de seus fartos seios; o bando de mulheres esguias que mais parecem divindades se refrescando com água no meio do deserto. Dos quatro "“Mad Max", eu ainda hoje gosto mais do primeiro, o de 1979. Não é, tecnicamente, o melhor da franquia, mas o filme tinha um certo primitivismo – e amadorismo – que davam um charme especial à trama; nunca gerava muita expectativa, e por isso mesmo seus pontos altos proporcionavam um prazer mais puro, mais genuíno do que o propiciado pelos filmes dos quais esperamos grandiosidade. Mas os dois seguintes também eram bons: "Mad Max 2" (1981) era estética e estruturalmente mais sofisticado que o primeiro – e também bem mais ensandecido; com mais dinheiro para a produção, Miller se deu ao direito de enlouquecer em um nível que o filme-piloto não permitia. O terceiro, "Além da Cúpula do Trovão" (1985), seguia esse mesmo esquema da dobradinha "insanidade e adrenalina".

Àquela altura, qualquer resquício de realismo já havia evaporado da série. Já havíamos entrado por completo no terreno da fantasia, mas isso não quer dizer que a saga tenha se desligado do mundo real. Ao contrário: jamais deixou de falar dele, só passou a fazê-lo por meio de alegorias – um tanto extravagantes, é bem verdade, mas sempre interessantes ilustrações de questões bem próximas à realidade humana da época de cada filme. E, como os antecessores, "Estrada da Fúria" fala muito sobre seu tempo. É curioso que a ideia do filme tenha surgido ainda nos anos 90, quando Miller se dedicava a projetos bem distintos (como o tristíssimo "O Óleo de Lorenzo" e a comédia-família "Babe, o Porquinho Atrapalhado na Cidade"). Mas mesmo tendo sido concebido há mais de quinze anos, o quarto "Mad Max" é atualíssimo. 

As 'deusas' guerreiras de George Miller

Por exemplo, o filme tem uma posição feminista que vem muito a calhar em tempos atuais, em que a nuvem negra do moralismo volta a pairar no ar – quando muitos de nós achávamos que era algo já superado. Pode parecer bizarro, mas nos anos 90, quando o projeto surgiu, talvez o caráter feminista do filme passasse batido, não fizesse muito barulho. Sim, leitor, por incrível que pareça, a necessidade de fazer uma defesa da mulher não era tão necessária naquela época como é hoje – regredimos muito nesse sentido (prova disso é que um grupo de homens se sentiu traído e ficou revoltado com o fato de o filme dar muito destaque para as personagens mulheres, chegando a pedir boicote ao longa; e eu que pensava que estávamos evoluindo enquanto sociedade...). De fato, Max é um herói discreto demais para os padrões dos filmes de ação recentes. Mas desde o segundo longa da série, ele já se inscrevia nessa mesma tradição do personagem que Clint Eastwood celebrizou nos faroestes de Sergio Leone: o herói forte, mas lacônico, solitário, que tem aversão por ligações afetivas – é uma espécie de guerreiro nômade e freelancer, cujo objetivo de vida é sobreviver.

Em "Estrada da Fúria", Max não chega a ser um coadjuvante, mas ele é menos ainda o centro do filme; em grande parte das cenas, divide o protagonismo com personagens menos importantes, e com isso (creio eu) o diretor pretende passar uma mensagem humanística muito bonita e relevante no mundo atual: a da necessidade de as pessoas se unirem. É o bom e velho "a união faz a força" – ninguém é melhor do que ninguém quando precisamos lutar por uma causa maior. É uma deixa para refletirmos sobre nosso mundo, em que o capitalismo avançado levou as pessoas a pensarem só em si e a quererem o tempo todo se distinguirem das demais. Um aviso de que o mundo, pelo jeito que vai indo, talvez não demore muito a se tornar algo como a grande Wasteland que Miller prenuncia na tela. 

Se a superioridade e o heroísmo de Max fossem sempre predominantes, o filme não teria nem metade da graça – estaria a meio caminho de ser apenas "mais um filme de herói" entre os tantos (e pavorosos) lançados nos últimos anos por Hollywood. E o leitor há de concordar que tem sido difícil aguentar a excessiva oferta de produções com super-heróis no mercado, sobretudo porque tais filmes têm passado longe de qualquer modo de inovação ou risco (o único tipo de novidade que trazem são os efeitos especiais – aliás, cada vez menos interessantes, de tão visivelmente computadorizados). A Marvel tem dado imensa contribuição para tornar o mercado de blockbusters cada vez mais repetitivo e infantilizado; nesse cenário, aparecer um filme como "Mad Max" é quase uma bênção.

Para as intenções do filme de realçar a noção de "trabalho em grupo", a escalação de Tom Hardy foi bem acertada. Ele é bonito, musculoso e possui talento dramático – tem a imagem necessária a um herói. Mas o ator não tem uma imagem suficientemente magnética para ser sempre dominante em cena (como o Mel Gibson dos anos 80 tinha). De uma maneira cavalheiresca, Hardy praticamente "cede" o filme a Charlize Theron, extraordinária como a Imperatriz Furiosa; mesmo estando o tempo todo suja, mal vestida, sem um braço e com os cabelos raspados, ainda assim ela é uma deusa, tão ou mais deslumbrante que as outras beldades que a acompanham.

Hardy é simplesmente incapaz de se sobrepor a Charlize, é fato, mas ele tampouco se anula diante dela; seu Max pode ser discreto, mas nunca é um herói desbotado ou insosso. Ele tem vigor. O ator foi a escolha perfeita para o papel – ele e Charlize mal trocam olhares, mas há sempre uma tensão sexual eletrizante entre ambos; os dois formam um dos "não-casais" mais românticos e sexies da história do cinema. Nicholas Hoult é uma presença divertida – ele ainda mostra aquele mesmo espírito de traquinagem nos olhos azuis-claros de quando ainda era criança, em filmes como "Um Grande Garoto" (2002); seu personagem, Nux, é um war boy, uma espécie de jovem kamikaze capaz de sacrificar a própria vida em nome da emoção. O personagem, porém, não evolui da maneira que poderia e fica menos interessante com o avançar do filme, mas a atuação de Hoult é tão enérgica que suplanta qualquer falha do papel. 

Por outro lado, Hugh Keays-Byrne, o vilão Immortan Joe, tem uma máscara no rosto que o impede de fazer muita coisa por seu fraco personagem; é um vilão frustrantemente sem graça, que tem pouca ressonância – o público tem sempre a sensação de que o grande inimigo de Mad Max é outro: as condições adversas do mundo em que vive, ou mais propriamente todo um “estado de coisas” daquela época. E com razão: superar esse mundo em que a barbárie impera é o verdadeiro desafio do herói e de seus companheiros. De uma certa forma, os nossos inimigos de hoje não são muito diferentes dos de Max. Mas será que teríamos o mesmo ânimo e coragem de nos unirmos e irmos contra nossos vilões?

*[Texto originalmente publicado na coluna de cinema do site da MTV, em 21.mai.2015]