(Heart of a dog, 2015), de Laurie Anderson
Em 2007, João Moreira Salles fez muito sucesso com seu documentário "Santiago", em que usava o excêntrico mordomo de sua infância como desculpa para revisitar sua própria história familiar. A crítica achou tudo lindo (e qual filme sobre as dificuldades de um cineasta para criar ela não acha lindo?), e não deu muita atenção para o fato de o pobre serviçal ser usado da maneira mais exploratória possível, talvez até predatória, utilizando-o como elemento "humanizador" em uma narrativa no melhor estilo egotrip – que, sem ele, talvez não causasse maiores comoções.
Uma das Lolabelles (a original?) de "Coração de Cachorro" |
Em 2007, João Moreira Salles fez muito sucesso com seu documentário "Santiago", em que usava o excêntrico mordomo de sua infância como desculpa para revisitar sua própria história familiar. A crítica achou tudo lindo (e qual filme sobre as dificuldades de um cineasta para criar ela não acha lindo?), e não deu muita atenção para o fato de o pobre serviçal ser usado da maneira mais exploratória possível, talvez até predatória, utilizando-o como elemento "humanizador" em uma narrativa no melhor estilo egotrip – que, sem ele, talvez não causasse maiores comoções.
O novo filme da
multiartista Laurie Anderson não é nem de longe tão artisticamente desonesto
como o documentário de Moreira Salles, mas parte de um princípio semelhante: também
faz uso de um elemento de fácil apelo com o público (um cão) para camuflar uma
narrativa bem mais narcisista. O filme se chama "Coração de Cachorro", mas se a
diretora quisesse ser realmente sincera talvez devesse batizá-lo de "A Cabeça
de Laurie". Porque embora em teoria o centro do filme seja sua cachorrinha
(falecida) chamada Lolabelle, no fundo o longa é sobre a mente da artista: o
que ela pensa das coisas, como apreendeu as experiências de vida que já teve, como
ela reage diante do que a cerca.
Anderson começa o
filme narrando um sonho inusitado que já teve: um dia, ela estava grávida e
dava à luz Lolabelle. De repente, passava a se sentir estranha e culpada, não
pelo fato de ter tido uma filha não-humana, mas sim porque na vida real ela
jamais havia conhecido sua cadelinha quando bebê (ela adotou Lolabelle já adulta).
É a última coisa que se esperava enquanto "reação" de alguém diante de um sonho
como esse, e o filme é o tempo todo Anderson apresentando ideias e divagações também assim incomuns, a maior parte bastante curiosa, que o filme engrena a partir
desse sonho. A narrativa segue em um fluxo livre, sem nenhuma regra, só de vez
em quando retornando a Lolabelle, mas sem que a presença da cachorrinha seja
algo obrigatório – a diretora fala do que bem entende.
A certa altura, a
narradora/cineasta faz especulações sobre a morte. Chega a uma interessantíssima
conclusão (a mais enriquecedora de todo o filme): o que a torna um assunto tão
difícil não é o fato de significar o fim da vida de alguém; ela é algo horrível
pelo que a ausência da pessoa morta acarreta em nós. Ou, colocando de uma
maneira mais direta: o ser humano é uma criatura tão egoísta que redireciona
para si até o que menos lhe diz respeito, como o fim da vida dos outros; se não
gostamos de saber da morte de alguém é antes pelo desagradável sentimento de dor que vamos
sentir (e que vai nos desestabilizar) que por lamento pelo término da vida do falecido.
É um insight e
tanto, mas talvez Anderson tenha incluído essa ideia no filme como uma referência (ou talvez mea culpa) ao seu próprio egoísmo,
quando usa sua cachorra como desculpa para falar dos verdadeiros temas de seu
filme: ela, ela e ela mesma. Mas as impressões de Anderson são em geral tão interessantes,
inteligentes, que o espectador se pergunta: por que raios, então, o artifício do cachorro? (a
saga da família Moreira Salles também era interessante o suficiente para "segurar"
um documentário – o "recurso" Santiago era completamente desnecessário).
A própria Anderson
é a narradora em off do filme, e ela fala de uma maneira agradável, vagarosa,
com as palavras pronunciadas com muita clareza. A voz dela é limpa, sensual,
mas não poderia ser menos sexy; é impessoal ao extremo (se algum dia ela
desistir da carreira artística, poderia muito bem tentar a de locutora de
aeroporto). As imagens que ela nos mostra são bonitas, estilizadas. Algumas são
abstratas, no mesmo estilo das que vários videomakers da mesma geração dela
(dos anos 80) adoravam criar. Há muitas coisas de arquivo pessoal, que incluem a presença
de artistas e amigos da diretora (seu ex-marido, Lou Reed, surge muito
rapidamente em apenas uma cena); a própria Lolabelle aparece pouco, sendo em
geral substituída por outras cachorras que a "interpretam" em cena. Uma artista
inventiva como Anderson certamente evitaria o clichê de mostrar imagens de
elementos da natureza enquanto fala de questões metafísicas, mas quando ela
aborda esses assuntos o que vemos na tela são justamente imagens de céu, chuva
caindo e paisagens de neve; são o que o filme tem de pior.
Anderson fala de
tantas coisas diferentes que a impressão é de que o filme dura bem mais que
seus breves 75 minutos. É um filme-ensaio envolvente, que às vezes parece ampliar nossa própria visão sobre todos os temas sobre os quais a
diretora discorre. Mas quando o filme acaba, percebemos que não vamos sair da
sala muito diferentes de quando entramos; a verdade é que "Coração de Cachorro"
parece não chegar a lugar nenhum. No fim das contas, não está muito longe do mero exercício
de narcisismo que parecia ser.
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