sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Top 5 alternativo de 2016


Todo ano costumo fazer no Facebook um Top 10 com os melhores filmes do ano, mas também uma lista mais descontraída, com alguns Top 5 com categorias alternativas, destacando filmes que foram ou supervalorizados ou pouco badalados ao longo do ano. A lista obviamente se concentra em filmes que tiveram destaque crítico, e não em projetos natimortos ou muito pequenos; a escolha dos piores filmes, por exemplo, tem mais a ver com a excessiva pretensão do projeto (e com a injustamente boa recepção que tiveram por alguns críticos) que propriamente com a qualidade fílmica em si (a ausência de blockbusters de herois é prova disso; como nem considero objetos criticamente relevantes, estão fora do jogo). Seguem as listas

Os “não rolou” (não são lá "ruins", mas ou foram supervalorizados pelos colegas ou meu radar de “truque” apitou forte): 
- "Carol" (preocupação formal demais, paixão/amor/calor de menos) 

- "Boi Néon" (o filme que devia operar no nível do instintivo, mas que é intelectualizado, pré-calculado, superescrito em excesso)  

- "De Longe te Observo" (outro que talvez funcionasse quando era roteiro – mas, como filme, não ‘acontece’) 

- "A Chegada" (uma gigantesca ‘bar forçation’ [como diriam os britânicos, rsrs]) 

- "Na Ventania" (oh, que lindo preto e branco estetizzzzzado zzzzzz)

As decepções (expectativa alta, mas quebrei a cara)
- "As Montanhas se Separam" (não dá pra aceitar um filme com simbolismos do naipe: ‘Para representar a ganância capitalista, vou batizar um personagem de... Dólar!’. Sério, Jia: tu é capaz de coisa BEM melhor) 

- "O Filho de Saul" (filme de quem espera na porta da sala pra receber os cumprimentos pelo grande aporte à ‘Arte com A maiúsculo’) 

- "Youth" (wtf Sorrentino?? Vontade de bandear pro lado dos haters) 

- "O Botão de Pérola" (a fórmula deu megacerto em "Nostalgia da Luz", mas aqui o malabarismo do roteiro simplesmente não funciona) 

- "BR 716" (Domingos Oliveira é um chato genial e adorável, mas "Caio Blat imitando Domingos Oliveira" é das coisas mais insuportáveis do mundo)

As surpresas (não dava nada por eles, mas adorei)
- "Elis" (super assistível e com Andréia Horta carregando o mundo nas costas)

- "Nise, o Coração da Loucura" (simples e muito tocante; cinema convencional da mais alta qualidade) 

- "Rua Cloverfield 10" (o blockbuster [sem ser] do ano)

- "Amor e Amizade" (simplesmente delicioso – talvez o melhor filme que ninguém viu do ano)

- "Florence, Quem É Essa Mulher?" (ri bastante; traz um ótimo Hugh Grant e a melhor Meryl em anos)

A lista da desonra (nem precisa de comentários) 
- "O Demônio de Néon"

- "Joy"

- "Tudo Vai Ficar Bem"

- "A Grande Aposta"

- "Capitão Fantástico"


 


sábado, 17 de dezembro de 2016

TOP 10 de 2016


O dez melhores filmes de 2016 (que entraram em circuito comercial no Brasil ao longo do ano).

1. "Cemitério do Esplendor" (A Weerasethakul)
2. "As Mil e Uma Noites: Volume 2, o Desolado" (M. Gomes)
3. "Elle" (P. Verhoeven)
4. "Sangue do Meu Sangue" (M. Bellocchio)
5. "Fogo no Mar" (G. Rosi)
6. "A Corte" (C. Vincent)
7. "Animais Noturnos" (T. Ford)
8. "É Apenas o Fim do Mundo" (X. Dolan)
9. "O que Está por Vir" (M. Hansen-Love)
10. "Mate-me por Favor" (A.R. Silveira)

Menções honrosas:
"Curumim", "Spotlight", "Que Viva Eisenstein", "Amor e Amizade", "Ralé"

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

TOP 10 nacional de 2016


Ao menos no cinema nacional, 2016 foi um ano bem bom. A irregularidade continua um problema generalizado, mas todos os desta lista vieram com trechos muito inteligentes, instigantes, comoventes (alguns até brilhantes). 

O meu TOP 10 nacional de 2016 seria algo assim (alguns deles já foram resenhados neste site; os links estão nos títulos):

Cena do sensacional "Mate-me por Favor", campeão nacional


1- "Mate-me por Favor" (Anita Rocha da Silveira)
4- "Fome" (Cristiano Burlan)
5- "Meu amigo Hindu" (Hector Babenco)
7- "Cinema Novo" (Eryk Rocha)
8- "Aquarius" (Kleber Mendonça Filho)
9- "São Paulo em Hi-Fi" (Lufe Steffen) 
10- "Nise, o Coração da Loucura" (Roberto Berliner) e "A Despedida" (Marcelo Galvão)

Menção especial: "A Paixão de JL" (Carlos Nader) 


sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Crítica: "BR 716"

(idem, 2016), de Domingos Oliveira

Caio Blat é a versão birrenta do diretor em "BR 716"

Assistir a "BR 716" é como ir sóbrio a uma festa cheia de gente chata, mas de um amigo muito querido: suportável, porém penoso. O tal amigo é Domingos Oliveira, o diretor que tantas vezes nos entregou momentos e filmes deliciosos, fontes de diversão, inteligência e leveza, que na memória estão guardados com muito afeto. Em "BR 716", ele parece se divertir a valer em sua (auto)celebração, mas os amigos que chamou para participar da noitada são intragáveis. E o que é pior: ele mesmo, a razão da nossa presença ali, não dá as caras. Fisicamente e em espírito: falta Domingos Oliveira ao filme.

O que é algo estranhíssimo, já que "BR 716" é uma obra bastante personalista, que vasculha a juventude do cineasta. E que, em teoria, se parece com todos os outros que ele já fez; nem precisava do seu nome nos créditos para sabermos que ele é o diretor. Mas desta vez, nunca compartilhamos daquele estado de embriaguez dos personagens de seus filmes (e ao qual nos deixamos levar com prazer); seguimos sóbrios, o que nos força a observar algo para que, antes, fazíamos vistas grossas: os defeitos do filme.

Todos os filmes de Domingos são imperfeitos, mas aqui, é como se os problemas se exibissem sob lente de aumento: a imprecisão técnica, as falhas de ritmo, o protagonista autocomplacente, a ladainha que não cessa. E várias frases, que sempre passavam por brilhantes, aqui se revelam ocas (levanta nossa suspeita de que sempre o foram, mas apenas eram ditas de forma mais sedutora, quando nas bocas do próprio Domingos ou da fantástica Priscilla Rozenbaum).

Todas essas falhas sempre foram perceptíveis antes, mas sempre preponderava nos filmes um certo charme autobenevolente de Domingos – sua lábia e o zest daquela galeria de personagens humanos até demais; seus filmes eram um prazer exatamente nessas imperfeições, na sua (carioquíssima) nonchalance diante da seriedade ou mesmo da competência técnica.

Aqui, não há charme algum; seus personagens, que antes pareciam "humanos", agora são pessoas imaturas e mimadas. E birrentas. Há apenas uma sensação de déjà vu – sendo que o já visto antes era bastante melhor. 

O longa revisita a juventude boêmia de Oliveira, quando morava no número 716 na rua Barata Ribeiro (o BR do título), em Copacabana. Bebia muito e vivia dando festas a amigos que se embriagavam tanto quanto (ou até mais que) ele próprio. Como sempre, é um longa sobre a amizade e as dificuldades do amor.

Oliveira disse que o filme é em preto e branco porque, em cores, ficariam muito evidentes as falhas impostas por limitações financeiras para uma reconstituição de época. Não adiantou nada: o filme continua sem ter absolutamente nada da década de 60 – dos detalhes de cenografia aos estilos de atuação. E a fotografia, que ele diz ser em P&B, na verdade é de um cinza pálido que torna o filme ainda menos instigante. Há de vez em quando alguns efeitos interessantes, como quando uma personagem, no meio de um diálogo com Caio Blat (o alter ego de Domingos), se vira para a câmera e, brechtianamente, fala com o público/a câmera subjetiva. Ou quando o personagem de Blat, ao se afastar da câmera, se desfaz em um efeito óptico e vira uma mancha negra pixelada, em um fundo branco estourado. Mas fora isso, pouco se salva; tudo é de uma enorme chatice.   

Caio Blat é tão bom ator e imita o cineasta tão bem que, em cena, é como que um Domingos Oliveira melhorado – com maior potencial dramático, melhor fluência verbal e mais domínio técnico que o original (só o sotaque paulista ele não consegue disfarçar). Mas sua composição é completamente desprovida de naturalidade; é como um espelho, com uma imagem aperfeiçoada da pessoa verdadeira, mas também uma imagem sem vida, sem dimensão e nem o magnetismo que só os seres viventes possuem. O personagem é um martírio (nos faz pensar o quanto talvez os outros vividos pelo próprio Oliveira também não deviam ser e apenas não reparávamos - ou perdoávamos por simpatia pelo Oliveira original). 

Os outros atores também estão decepcionantemente ruins – a talentosa Lívia de Bueno é subaproveitada, no papel de uma lesbian chic sessentista, e Sérgio Guizé tem uma presença vibrante como um revolucionário de esquerda (dos Jardins), mas seu texto é chato demais para ele segurar as cenas que tem. Já Sophie Charlotte está completamente equivocada – deslocada, até; ela não capta em nada o espírito da Copacabana dos anos 60. O que, na verdade, nem é lá um problema em si, já que todo o resto do filme também destoa – e muito – daquela época.

Logo no começo do filme, uma narração em off (a voz de Domingos? ou a de Caio Blat imitando o diretor?) faz um alerta - algo parecido com: "Foi muito difícil escrever este roteiro porque eu bebia demais na década de 60 - e em memória de bêbado não se pode confiar". Nem precisava ter avisado: certamente ele teve uma juventude bem mais interessante que a que ele nos mostra.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Crítica: "Elis, o Filme"

(idem, 2016), de Hugo Prata

Andreia Horta, em "Elis"

As cinebiografias de ídolos pop são um formato ingrato. Pouquíssimas feitas até hoje foram verdadeiramente memoráveis (sejamos francos: qual outra além de "Touro Indomável"?); a maior parte costuma ser lembrada como veículos para atores que impressionam pela "entrega" aos personagens – ou pelo grande fiasco daqueles que não correspondem às expectativas. Quase sempre recaem no mesmo esquema da narração factual dos trechos mais marcantes da vida do retratado. E muitas vezes se chega ao fim do filme sem a mais parca ideia de quem ele foi: qual era seu drama, o que o moveu.

"Elis, o Filme" tem sido amplamente atacado por ser mais uma dessas biopics pouco imaginativas, e há certa razão nessa reprimenda. O longa de estreia de Hugo Prata evita riscos e tem os dois pés na convencionalidade. No entanto, não é o “TV movie” chapa branca e sem criatividade que muitos críticos têm apontado.

É importante deixar claro que, de fato, o roteiro (de Prata, Luiz Bolognesi e Vera Egito) opera o tempo todo no nível da trivialidade: conta a história de uma gaúcha sonhadora, que chega ao Rio acompanhada do pai, na exata semana do Golpe de 64 – a mesma jovem que, muito em breve, soltaria a voz e faria enorme sucesso no Beco das Garrafas, depois nos festivais e na TV, tornando-se logo um dos expoentes máximos da nossa canção. Após alguns (muitos) altos e (poucos) baixos na curta carreira, a cantora temperamental, mas vulnerável, dá um enorme susto nos fãs, quando, aos 36, morre em seu apartamento, vítima de uma overdose de álcool com cocaína.

(Já é um avanço que o filme fale explicitamente da causa da morte de Elis; em um especial na Globo,  há alguns anos, o motivo foi bizarramente omitido, bem como em uma recente exposição de fotos da cantora no CCSP, em que, na linha biográfica, constava apenas que, do nada, um belo dia Elis Regina morreu – como se morrer aos 36 anos fosse algo totalmente corriqueiro. Felizmente, a família da cantora parece ter desistido da pueril tentativa de reescrever essa parte de sua história).

A gramática é mesmo televisiva, mas o filme tem algo de essencialmente cinematográfico: demanda escala, grandeza, tela grande e som alto para impactar. E, visto nessas condições, consegue causar um arrebatamento totalmente cinematográfico (eu acredito piamente que, na TV, o filme jamais funcionará com a mesma força que na sala escura, com tela grande).

Cena de "Elis, o Filme"

O roteiro, apesar de didático e esquemático, consegue ir ao essencial em muitas cenas – o que, em se tratando de biografias, não é algo a se desprezar. A chave-mestra está em uma discussão em que o músico César Camargo Mariano (Caco Ciocler), segundo marido de Elis, tem com a cantora, definindo seu grande problema: “Você não sabe o que você quer na vida!”. Pronto: está aí aquele que talvez fosse o drama essencial do ser humano Elis Regina – uma pessoa em busca de si, de se encontrar, eternamente displaced e mudando de opiniões, amizades e repertórios. Qualquer filme sobre a cantora que ignorasse isso seria incompleto, incompreensivo, raso. Isso era o essencial de Elis, talvez a principal fonte de suas angústias e de sua insegurança.

“Meu negócio é cantar”, Elis dizia muito recorrentemente, mas isso esconde uma enorme falta de saber quem ela era, o que queria, onde gostaria de chegar. Pois o roteiro acerta na mosca ao trazer isso para o filme. O grande problema (e que também é minha principal ressalva ao filme) é que esse caráter fica, em geral, apenas no nível das falas; não aparece no âmago das cenas propriamente ditas. Quando a questão é mencionada, nunca tem o devido protagonismo; da forma como Prata encena e edita, parece quase sempre que Elis era movida ou por um enorme ego ou pelo simples temperamento explosivo. E só.

Ego inflado e gênio forte: não há dúvida de que Elis tinha as duas coisas – e de sobra. Mas querer atribuir tudo o que a cantora fazia a isso é limitado (e injusto). O roteiro dá a dica em vários momentos: Elis, sobretudo na parte final da vida, reclamava muito dos outros. Estava sempre vociferando contra alguma terceira pessoa do plural (os militares, os jornalistas, as gravadoras), que, muitas vezes, não lhe eram tão hostis como ela gostava de pintar (e, talvez, de achar que fossem). Seu grande inimigo era ela mesma. Mas o filme não consegue encontrar uma solução para essas indicações do script; nas cenas, as reclamações surgem como descrições de situações pontuais, de registros de fatos da vida de Elis – quando, no fundo, deveriam ser a indicação de um estado de espírito. Prata falha lastimavelmente nesse sentido.

Uma vida tão cheia de episódios e personagens importantes fatalmente precisa ter muitos deles sacrificados ao ir para o cinema. Não se vê no longa, por exemplo, Milton Nascimento nem Rita Lee, dois de maiores amigos da Pimentinha; Vinícius de Moraes é só citado, e João Bosco e Aldir Blanc, nem isso. O célebre álbum "Elis & Tom" é ignorado, e é como se os grandes shows "Saudade do Brasil" e "Trem Azul" (seu último) nem tivessem existido. Até aí, ok: a necessidade de concisão pode explicar. Mas não há exigência de roteiro que justifique por que seu casamento com o companheiro mais duradouro, César Mariano, seja tratado com tanta superficialidade e desdém pelo script. O personagem é o pior do filme; tem uma única boa cena – muito simples e delicada, por sinal –, quando declara indiretamente seu amor a Elis, quando ambos estão sentados ao piano. Mas no geral, é de uma passividade bocejante – entende-se porque a cantora o abandonou (embora, na vida real, a separação tenha sido muito mais dura e traumática que o filme deixa a entender; ele foi o grande amor da gaúcha, e não Ronaldo Bôscoli, como o filme muitas vezes quer fazer crer).

O mulherengo Bôscoli (Gustavo Machado) tem muito mais destaque no longa, e em termos dramáticos, a escolha funciona. A tensão sexual entre Machado e Horta é faiscante, e se a primeira metade do filme é bem melhor e tão prazerosa é graças à interação dessa dupla passional e impetuosa (Machado está perfeito em seu deboche e malandragem cariocas, como Mateus Solano também esteve foi quando viveu Bôscoli na TV).

Gustavo Machado e Andreia Horta em cena do filme

Outras presenças dignas de nota: Ícaro Silva, que tem uma ginga sensacional em suas poucas cenas como Jair Rodrigues; Zécarlos Machado, como o pai da cantora, Romeu (o único problema é que o sotaque, aqui e ali, parecem mais a fala italiana de novela das oito que de um gaúcho; mas a atuação, em si, é memorável); Julio Andrade, mais uma vez acima da média, como o coreógrafo Lennie Dale.

E há o maior trunfo de todos: Andreia Horta. A atriz faz um trabalho impressionante de mimetismo, mas não se contenta com isso: tem uma raça, uma vontade, um "sangue nos olhos" de fazer a sua Elis "acontecer" que ultrapassa esse objetivo; sua Elis não apenas "acontece" como se torna um "grande acontecimento". O desafio de interpretar um mito como nossa maior cantora não era fácil, mas Horta mergulhou visceralmente em sua caracterização. O jeito de falar e o gargalhar com os dentes arreganhados e o nariz franzido: é difícil pensar em alguém que pudesse imitá-la tão bem (nem Maria Rita, quando canta à la Elis, é capaz de mímese tão perfeita).

Horta tem o tipo de "entrega" (o termo é cafona, mas não há outro para substituir) que faz lembrar as de Diana Ross, como Billie Holiday, em "O Ocaso de uma Estrela", e Bette Midler, como a cantora inspirada em Janis Joplin, de "A Rosa". Ross e Midler cantavam com a própria voz, mas Horta, não – o que foi uma opção extremamente sábia; afinal, quem poderia cantar como Elis Regina se não apenas a própria? No filme, é essencial mostrar por que aquela mulher se distinguia das outras cantoras; e quando ecoam trechos da voz verdadeira de Elis, em momentos estratégicos, a compreensão é imediata.

Há uma excelente cena de explosão sentimental, quando, na frente da boate Bottle's, Elis bate boca com Bôscoli, que lhe pergunta, com a ironia peculiar: "Tá pensando que é quem? A Barbra Streisand?". Ao que Elis responde: "Tô!", dito com tanta convicção que talvez a própria Streisand, se ouvisse, duvidasse por alguns segundos que ela é ela mesma. E Horta alterna os momentos de erupção emocional e de meiguice como só a própria Elis fazia... Se as cenas da cantora mais amargurada da parte final não funcionam tão bem como a mais expansiva do começo, provavelmente é porque o roteiro e o diretor não souberam fazer o crescendo de forma suficientemente eficaz. 

O filme decai no fim, até por uma certa perda de alegria e vitalidade da protagonista. A cena dos instantes finais são convencionais, mas só o fato de não ser um fim piegas e hagiográfico já é algo a festejar. Ao contrário: termina onde e na hora que tinha que terminar (e há um certo alívio do peso do fim com cenas musicais durante os créditos). Saímos da sala tocados e orgulhosos de termos tido em nossa música uma voz tão poderosa. E felizes de que, no cinema, agora temos uma atriz capaz de defender uma personagem com tamanho empenho.

domingo, 27 de novembro de 2016

Crítica: "Sangue do Meu Sangue"

(Sangue del mio Sangue, 2015), de Marco Bellocchio

Cena de "Sangue do Meu Sangue"

Foi fácil ouvir os aplausos ao fim da sessão de imprensa no Festival de Veneza 2015 a "Sangue do Meu Sangue", filme de Marco Bellocchio, que só agora, com bom atraso, estreia por aqui. Mas se a sala não estivesse tão barulhenta com as palmas, talvez fosse possível ouvir algo mais: o barulho dos cérebros dos jornalistas, trabalhando duro em busca de compreender o que exatamente o cineasta italiano quis dizer com sua história – e seu misterioso final, principalmente.

O título do longa é uma piada extrafílmica: é que dois dos filhos do diretor (Pier Giorgio e Elena Bellocchio, ambos figuras de fotogenia e charme inesperados) têm papeis de destaque na trama. A história é dividida em duas partes. Ambas se passam em Bobbio, Emilia Romagna (terra natal do cineasta), mas em dois períodos históricos distintos. 

A primeira parte se desenrola no século 17, quando uma religiosa seduz um padre, que, por isso mesmo, comete suicídio. Como punição, a moça é condenada pela rígida Igreja Católica da época a passar o resto de seus dias aprisionada em um cubículo, atrás de um muro de tijolos. A segunda metade se passa nos nossos dias: um vampiro milionário, cuja fortuna foi acumulada após décadas sugando dinheiro (além do sangue) de outras pessoas, chegou a uma idade tão avançada que seu fim está próximo – mesmo que ele já seja, a rigor, um morto-vivo.

O longa apresenta as duas histórias em estilos bem diferentes: a primeira é mais sóbria, lírica, algo soturna; a segunda é bem mais leve e satírica, quase histriônica em sua comicidade. As duas se equivalem em qualidade, mas poderiam facilmente ser partes de dois filmes distintos.

Mas não apenas são parte do mesmo filme como também possuem fortes (embora nem sempre fáceis de notar) conexões. As duas lidam com a questão do poder (o religioso na primeira, o econômico na segunda), e talvez seja exatamente isso o que Bellocchio busque dizer com o seu filme: o tempo passa, muita coisa muda, mas os poderosos continuam dando um jeito de se reinventar, de modo que sempre há grupos (às vezes os mesmos, mas rearranjados) explorando os demais. Mas isso é apenas um ponto de partida para investigações mais profundas sobre o significado e as conexões entre a trama sobre a bruxa do passado e o vampiro do presente.

Bellochio não tem o menor interesse de tornar as coisas fáceis para seu público: inicia alguns caminhos, mas logo abandona a plateia sozinha, no meio da floresta – cabe a nós cortarmos o mato diante de nós e chegar ao ponto final do trajeto (ou morrer, exaustos e perdidos, no meio do matagal). 

Talvez a segunda opção tenha sido mais comum: embora seja um filme extraordinário, não parece ter tido muita adesão da crítica (sobretudo a nacional), que o têm injustamente considerado um filme "menor" de Bellocchio. Eu vejo ao contrário: para mim, é um dos mais instigantes e inspirados longas desse grande diretor italiano.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

"Curumim": entrevista com o diretor

(idem, 2016), de Marcos Prado*

Marco Archer, o Curumim, em cena do filme

No final da sessão da sessão de estreia do documentário “Curumim”, na Berlinale 2016, o diretor carioca Marcos Prado recebeu cumprimentos de uma plateia comovida. “Obrigada! Seu filme me tocou muito”, disse uma mulher com os olhos vermelhos e lacrimosos (quando o filme acabou, podia-se ouvir facilmente seus soluços na sala). Pouco depois, o diretor de um festival indonésio fez um convite: “Queremos muito passar seu filme lá. Toma o meu cartão!”. Prado agradeceu e guardou o papel. “Será que eu vou ter coragem de levar meu filme pra Indonésia?”, perguntou a si mesmo, com um sorriso tenso.

Compreende-se a indagação: “Curumim” certamente não será visto com bons olhos pelas autoridades daquele país. O documentário conta a história de Marco “Curumim” Archer, brasileiro condenado à morte na Indonésia por tráfico de drogas – ele morreu fuzilado em janeiro de 2015, após um penoso período de 11 anos em um presídio de segurança máxima isolado em uma ilha.

O filme é ao mesmo tempo a curiosa história pessoal de Curumim e um registro de sua rotina no “corredor da morte”. Por tabela, ataca dois outros temas espinhosos: mostra a corrupção no sistema carcerário e judicial indonésio e faz uma grande crítica à pena capital. “Sou contra a pena de morte em todos os casos”, disse o cineasta, logo após a aplaudida sessão.

“Os crimes hediondos têm de ser punidos com prisão longa ou perpétua. Mas quando se executa uma pessoa, primeiro você dá poder para um Estado de te eliminar da sociedade, colocando pistas falsas, etc. Segundo: você pode provar o contrário – quantos condenados já não conseguiram comprovar sua inocência antes da morte?”

O projeto do longa surgiu quando o próprio Curumim convidou Prado para contar sua história. Os dois já se conheciam desde a juventude, nos anos 80, quando ambos praticavam surfe e frequentavam os principais “points” das praias cariocas. Nascido em uma família de classe média alta, Curumim sempre gostou de levar uma vida aventureira. Na adolescência, foi expulso 14 vezes do colégio. Como ele mesmo diz, sempre foi um “fio desencapado” por ser filho de um alcoólatra e uma mãe ausente.

Sua personalidade expansiva e seu senso de humor o tornaram um jovem carismático, que gostava de curtir a vida com amigos, no melhor estilo playboy. Para bancar seus luxos, começou a ganhar dinheiro com pequenos tráficos nos anos 80. “No Brasil, uma geração inteira comprou skank com ele”, relembra o cineasta. Curumim foi parar na Indonésia quando tentava conseguir dinheiro para (segundo ele mesmo) pagar dívidas que havia contraído em um hospital em Cingapura, onde ficou internado por meses, após um acidente de paraglide. Aceitou traficar 15 quilos de cocaína, mas levantou suspeitas no aeroporto de Jacarta. Conseguiu fugir dali e passou dias como foragido – até ser finalmente preso pela polícia indonésia e levado para a prisão, onde seu drama começou. Uma trajetória tão cinematográfica, é claro, tinha que acabar nas telas.

“A ideia original era para ser um filme de ficção. Ele próprio queria isso, sempre dizia: ‘Minha história pode virar um filme incrível!’ ”, conta Prado. Depois de optar pelo formato documentário, o diretor pretendia dividir a história em três partes: a vida de Curumim antes de ser preso, a rotina no presídio e o recomeço após ganhar liberdade. “Ia ser uma coisa mais biográfica, mas não consegui nem uma entrevista formal com ele”, diz o diretor, que, no entanto, chegou a ir ao presídio para visitar o amigo (conseguiu entrar se passando por um pastor evangélico).

Cena do documentário

A maior parte das imagens em que o condenado aparece encarcerado foram feitas com uma câmera clandestina, comprada no mercado negro da prisão, captadas por um colega de cela italiano (hoje já em liberdade; ele, aliás, estava presente na première do longa). Segundo o italiano, é relativamente fácil conseguir nesse “mercado” regalias diversas, inclusive... drogas. O ex-presidiário reconhece que só obteve a própria liberdade à base de muito suborno. O filme conta com imagens de Curumim na cadeia, depoimentos de quem o conhecia e algumas reconstituições de cenas – uma delas traz uma estilização de como teria sido o fuzilamento.

O personagem não é mostrado como um “mártir”, mas uma pessoa sem limites e algo “destrambelhada” que pagou um preço alto demais pela própria irresponsabilidade. O longa humaniza, mas evita “sacralizar” o personagem. “Tudo da história dele está ali, ele mesmo fala o que já fez pelas cartas [mostradas no filme]. Não tem como santificar”, diz o cineasta. “Mas se eu consegui humanizar ele ao longo dessa uma hora e 40 minutos, já estou satisfeito.”

Prado foi muito elogiado em seu primeiro longa, o documentário “Estamira” (2004), sobre uma catadora de lixo, mas o sucesso passou longe do filme seguinte, a ficção “Paraísos Artificiais” (2012). Ele também é conhecido como produtor de “Tropa de Elite” (2007) – que, aliás, ganhou o Urso de Ouro em Berlim há nove anos. Desta vez, Prado não concorre ao prêmio máximo (“Curumim” está na mostra paralela Panorama), mas o frio na barriga seja ainda maior que em 2007. “São emoções diferentes vir como produtor e como diretor. Apesar de o cinema ser uma arte coletiva, na direção, se o filme ficou bom, a ‘culpa’ é sua e de todo mundo. Agora se fica horrível, a culpa é só sua”, diz.

*Filme visto no Festival de Berlim 2016; este texto é uma versão expandida do publicado no UOL, no dia 17.fev.2016 (link: http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2016/02/17/saga-de-brasileiro-condenado-a-morte-na-indonesia-comove-plateia-em-berlim.htm).

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

MOSTRA 2016: Lançamento do livro "100 Melhores Filmes Brasileiros"


Na última sexta (dia 28), ocorreu o lançamento oficial em São Paulo, na livraria Blooks, do shopping Frei Caneca, o livro "100 Melhores Filmes Brasileiros" (editora Letramento). A publicação é uma parceria entre a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e do Canal Brasil e traz o resultado de uma eleição ocorrida em 2015 entre os membros da entidade sobre os maiores filmes já feitos no Brasil.

Cada crítico associado fez uma lista com seus 25 nacionais preferidos. Os que tiveram melhor pontuação entraram no livro – cada um foi resenhado por algum membro da Abraccine ou por um crítico convidado. "Limite", de Mário Peixoto, foi o número um (a lista inteira está neste link).

Eu participei da eleição e contribuí com um artigo sobre o filme "Mar de Rosas" (1978), da cineasta Ana Carolina. É um dos poucos longas da lista dirigidos por uma mulher. É também uma obra hoje meio esquecida, mas que merece – e muito! – ser redescoberta. Ainda hoje é atual e surpreendente; um filme especialíssimo.

Norma Bengell, Cristina Pereira e Hugo Carvana, em
cena de "Mar de Rosas" (dir. Ana Carolina)

(Uma curiosidade: todos os filmes dirigidos por mulheres tiveram no livro críticas escritas também por mulheres... Eu fui a única exceção.)

Não tive tempo de ler os demais artigos ainda, mas o farei em breve. Por ora, deixo aqui lista com os 25 filmes nacionais preferidos que eu submeti à Abraccine na época da eleição (essa lista muda sempre – aliás, já não seria a mesma se eu a elaborasse agora; mas é bem representativa do meu pensamento cinematográfico do jeito que está!).

1- Noite Vazia (1964)

2- Sem Essa, Aranha (1970)

3- Terra em Transe (1967)

4- Matou a Família e Foi ao Cinema (1969)

5- Lúcia McCartney, uma Garota de Programa (1971)

6- Pixote, a Lei do Mais Fraco (1981)

7- As Amorosas (1969)

8- São Paulo S/A (1965)

9- Cabra Marcado para Morrer (1984)

10- Cuidado, Madame (1970)

11- Limite (1931)

12- A Intrusa (1979)

13- Um Céu de Estrelas (1996)

14- Lavoura Arcaica (2001)

15- Febre do Rato (2011)

16- Di (1977)

17- Guerra Conjugal (1974)

18- Um Anjo Mau (1971)

19- As Deusas (1972)

20- O Amuleto de Ogum (1974)

21- Mar de Rosas (1978)

22- A Mulher de Todos (1969)

23- Bye Bye Brasil (1980)

24- Ganga Bruta (1933)


25- Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977)
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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

MOSTRA 2016: Crítica: "Era o Hotel Cambridge"

(idem, 2016), de Eliane Caffé


Cena de "Era o Hotel Cambridge"

Os tempos atuais não estão muito para moderação, e nesse sentido é essencial que apareçam filmes como "Era o Hotel Cambridge". O longa de Eliane Caffé resgata um tipo de cinema abertamente partidário, combativo – quase "de tese". No caso, a tese de que pessoas a quem a sociedade nega possibilidades de moradia têm o direito de habitar espaços abandonados. É uma questão de humanidade e de dignidade – de respeito mínimo ao que de mais basilar existe na nossa Constituição ou mesmo em documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Pouca coisa me interessa menos no cinema recente quanto a já exauridíssima mescla de "realidade com ficção", que tem sido recorrentemente utilizada como forma de se compensar as partes falhas que um filme teria se fosse só ficção ou só documentário. (O que já permitiu excelentes experimentações formais no cinema se tornou com o tempo uma muleta para cineastas indolentes, em busca de aprovação crítica fácil). Mas no caso de "Era o Hotel Cambridge", o procedimento de misturar cenas reais com encenadas compõe um estranhíssimo amálgama que o enriquecem. Caffé e sua equipe entraram em um prédio ocupado por grupos sem teto e imigrantes e filmaram muito do que viram. Mas ficcionalizaram a maior parte das cenas, com um elenco que mescla profissionais (como José Dumont e Suely Franco) com não atores, estes ocupantes de verdade (que incluem líderes de movimentos de ocupação e imigrantes africanos, latino-americanos e palestinos).

O material bruto seria precioso o suficiente para um documentário "puro" – talvez o filme fosse até melhor se a diretora fizesse essa opção. Mas a criação ficcional que ela desenvolve suaviza a parte documental e permite que o espectador tenha um contato com um aspecto mais leve, de cotidiano, da vida daquelas pessoas. O filme se torna mais arejado.

A dramaturgia proposta por Caffé é bastante simples – simplória, até. E esquemática. Mas querer criar situações elaboradas ou ambíguas demais envolvendo aquelas vidas seria um erro. Se a dramaturgia do filme é composta de fiapos de história, isso não é à toa: afinal, o que podem levar essas pessoas marginalizadas que não apenas fiapos de vida?

O que não quer dizer que essas vidas não sejam complexas, muito pelo contrário: o são até demais – além de trágicas. Mas as situações pelas quais passam no dia a dia da ocupação, as lutas que enfrentam e os objetivos de vida que passam a ater não podem ser outra coisa que não "simples", já que são as mais básicas; são pessoas que querem um lar. E algum mínimo de conforto, de comida, de carinho, de diversão. São vidas de pessoas que não se podem se dar ao luxo de ter as "complicações" que o lifestyle burguês nos permite poder levar.

Exigir equilíbrio ou ponderação de um filme como "Era o Hotel Cambridge" é não compreender em nada seu sentido. Sua beleza está em suas falhas e na sua luta - na vontade de fazer justiça com pessoas que pagam um preço altíssimo por motivos pelos quais não têm culpa direta.

O filme começa com imagens de edifícios abandonados, pichados, decadentes, do centro de São Paulo. Termina com os mesmos prédios, porém com bandeiras de movimentos sociais estampados nas fachadas. São como flâmulas de confecção barata, mas que naquele contexto surgem gloriosas, imponentes, dando nova vida a locais antes esquecidos. Para quem acha absurda e criminosa a situação social do país de hoje em dia, é um final não só poético: é também catártico. Quem não se comove ao menos minimamente com um filme como este ou é um direitista incorrigível ou não tem um coração no peito (o que, em grande parte dos casos, é um belo de um pleonasmo).


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

MOSTRA 2016 - Crítica: "Animais Noturnos"

(Nocturnal Animals, 2016), de Tom Ford*

Amy Adams, em "Animais Noturnos"

Já nos créditos de abertura de "Animais Noturnos", Tom Ford mostra sua vontade de provocar. A tela apresenta mulheres nuas, obesas e de meia idade, pulando e dançando com irreverência, enquanto a câmera lenta prolonga o desajeitado movimento de seus excessos adiposos. Elas agem como cheerleaders: estão alegres, sorridentes – são as últimas figuras que alguém imaginaria povoar o imaginário de um cineasta egresso do mundo fashion (Ford foi estilista antes de virar diretor), onde só os esbeltos, os jovens e os que fazem "carão" têm algum valor.

As cenas são ambivalentes e geram reações contraditórias no espectador. Há algo de desagradavelmente apelativo no gesto de explorar o grotesco daquelas mulheres; em alguns instantes, Ford levanta suspeitas de que talvez seja um daqueles artistas que investem na iconoclastia como forma rápida e chamativa de se destacar entre os demais. Mas em um outro nível, as mesmas imagens se revelam genuinamente tocantes; é que aquelas figuras femininas plus-size se mostram tão livres, tão sem amarras nem complexos que, por alguns segundos, acredita-se verdadeiramente em seus risos como sintoma de uma real alegria de viver, mesmo em um mundo que diuturnamente as rejeita e as oprime.

As mulheres obesas, logo veremos, são modelos de um ensaio de um artista plástico modernoso e hypado e algo vazio em sua iconoclastia que não aparece no filme. (As moças, aliás, também não ressurgirão no longa). Surgem dúvidas: estaria Ford tentando fazer uma arte verdadeiramente iconoclasta? Ou será que sua intenção era fazer uma crítica a uma certa arte que só investe na quebra de paradigmas como modo rápido e publicitário de causar escândalo? Ou ainda: tornar suas gordinhas, na ficção, modelos de um artista afetado (e não dele próprio) seria um álibi para Ford fazer ele mesmo uma iconoclastia fácil, sem levar a "fama" (e ser poupado de julgamentos mais incisivos)?

Mas logo o espectador verá que as intenções de Ford, felizmente, estão longe de se resumir ao choque gratuito. Até o final, "Animais Noturnos" vai reiterar seu verdadeiro sentido: ser uma grande defesa do que é socialmente tido como errado, inadequado. É um libelo contra a hipocrisia, de maneira geral, e uma denúncia do quão infeliz pode ser uma pessoa que leva um estilo de vida mentiroso, feito apenas para ceder às pressões sociais. O alvo de Ford, logo fica claro, não é apenas o mundo fashion (ou a arte que investe no "choque pelo choque"), mas também toda uma sociedade cheia de regras e interdições – mais especificamente a dos EUA, que parece cada vez mais conservadora.

A trama gira em torno de Susan (Amy Adams), dona de uma galeria de arte que enfrenta uma crise afetiva e profissional. Ela vive um namoro frustrado e não vê sentido em seu trabalho. Sua náusea é tanto maior porque abomina o meio frívolo em que vive. "Mas ninguém gosta realmente do que faz!", lhe diz um afeminado amigo do mundo das artes/moda, que logo acrescenta: "Aproveite o absurdo do nosso mundo. É muito menos doloroso que o mundo real".

É por saber como pode doer o "mundo real" que Susan optou pela proteção da glamourosa bolha artístico-burguesa em que vive. De família texana conservadora, ela foi idealista na juventude, mas cedeu aos apelos de uma vida mais confortável. Isso lhe custou, há alguns anos, o fim de seu primeiro casamento, com um então aspirante a escritor, Tony (Jake Gyllenhaal), que ela julgava fraco e sem ambição.

O filme se passa anos depois, quando o rapaz lhe dedica um livro em que narra uma história trágica, em que ele próprio, sua mulher e filha são violentadas em uma estrada. Na busca pelos criminosos, também ele passará por instantes em que sua verdadeira essência cederá espaço às pressões da vida prática.

Ford se lançou como cineasta no elogiado "Direito de Amar" (2009), sobre um sisudo professor que se entrega a um amor gay. Depois disso, ficou sete anos sem filmar, aumentando a expectativa por seu novo trabalho. Pois ele entrega um produto à altura do esperado. "Animais Noturnos" segue a mesma linha elegante, visualmente cool e refinada do filme anterior, com trechos ainda mais barrocos e provocativos (como os das gordinhas do início). Mas em termos narrativos é bem mais arrojado; tem constantes idas e vindas temporais, intercalando presente, passado e o plano fictício do romance.

Cena do filme

As cenas fictícias do livro, na estrada, têm por vezes os toques absurdos de um David Lynch; principalmente quando mostra uma família abordada por estranhos no meio da estrada, o filme é um empolgante thriller com ares de pesadelo. Mas as cenas de ennui da Susan atual - deprimida e um poço de culpa burguesa - são tão satisfatórias em sua textura e em termos visuais que é de se lamentar que a narrativa não se concentre mais nela.

Há um desnível entre a narrativa do plano presente e a do fictício. Ambas renderiam dois (ótimos) filmes distintos; a primeira em uma chave mais contemplativa, intimista, e a segunda em uma linha mais próxima ao cinema de gênero. Mas no filme, o presente é (bem) mais fascinante - em grande parte graças a Adams, atriz que é sempre competente em cena, mas que, aqui, pela primeira vez está de fato magnética. Por comparação, a outra narrativa perde muito em interesse, apesar da alta qualidade no geral (e Jake Gyllenhaal não consegue se tornar uma presença tão reluzente como Adams; sua atuação é correta, mas aquém do seu potencial).

E há um problema estrutural: as duas partes não formam uma unidade como o roteiro (de Ford e Austin Wright) pretendia. O cineasta tenta ressaltar cinematograficamente (pela montagem, fartamente ancorada em "transições") um espelhamento entre a Susan de hoje e o Tony do livro. Há de fato algumas semelhanças entre os dois personagens (ambos traem sua essência: Susan o faz ao abandonar seus preceitos morais e se entregar à sua dolce vita de burguesa, enquanto Tony é infiel à sua crença em valores humanistas ao se ver forçado a se vingar com violência extrema do homem que destruiu sua família), mas convenhamos: é preciso muita boa vontade por parte do público para ver a reflexão de um personagem no outro como algo orgânico e forte a ponto de valer ao filme a estrutura que possui; essa "forçação" é o maior pecado do longa.    

Mas as partes boas o são em um nível tão elevado que o filme chega ao fim (e que fim!) dando a impressão de que não precisa de reparos. O ótimo elenco inclui Aaron Taylor-Johnson, surpreendente como o psicopata da estrada, Michael Shannon, em sua melhor atuação até hoje, como um detetive esquisitão, além de ótimas pontas de Jena Malone e Laura Linney; esta última está tão inspirada em sua breve cena (que não deve chegar a dois minutos de duração) que, sozinha, já valeria o ingresso.

*Filme visto no Festival de Veneza 2016; este texto é uma versão expandida do publicado na Folha de S.Paulo, no dia 3.set.2016 (link: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/09/1809635-tom-ford-faz-criticas-as-pressoes-sociais-em-nocturnal-animals.shtml)

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Crítica: "A Espera"

(L'Attesa, 2015), de Piero Messina

Lou de Laâge e Juliette Binoche, em cena de "A Espera"

Dois amigos meus viram "A Espera" em duas sessões distintas no Festival de Veneza de 2015. Um deles disse que o filme recebeu vaias no fim; já o outro relatou que o longa foi efusivamente aplaudido. Eu assisti em uma terceira sessão (aberta para o grande público), e a reação ao final foi diferente das outras duas: de indiferença. Quer dizer, houve algumas palmas bem fraquinhas, mais desvanecidas do que os aplausos protocolares habituais em eventos como Veneza, mas dava para perceber facilmente que os espectadores estavam apenas tentando ser educados (mas, ao menos, não se ouviu uma mísera vaia na minha sessão).

"A Espera" não é um filme muito agradável, principalmente por causa do próprio tema que aborda: é sobre uma mulher que perde o filho e começa a inventar mentiras para a sua nora para preservá-la da novidade trágica. Mesmo que tenhamos pena da garota, o tempo todo sabemos com clareza que ocultar a morte do namorado é inaceitável, então é um tanto quando enervante ver a mãe o tempo todo contando mentiras atrás de mentiras.

O filme pode até não ser "agradável", mas é inquestionavelmente tocante; podemos discordar do procedimento da mãe, mas compreendemos a necessidade daquela mulher de ficar próxima de sua nora. Se ela a engana tanto, por fim não é mais para evitar que a jovem sofra ao saber da morte do namorado. Afinal, ela vê ali a única conexão viva com a memória do próprio filho.

A mãe é interpretada por Juliette Binoche, e é um papel bem mais difícil do que pode parecer. É incrível como a atriz parece não envelhecer – ela tem o mesmo rosto, as mesmas rugas, de há uns 15 anos. É ainda hoje uma das mulheres mais bonitas do planeta, mas agora não apenas isso: com os anos, também se tornou uma das maiores atrizes da Terra. Aqui ela tem uma performance comovente, matizada ao extremo; não é só uma mulher em luto pelo filho, mas é sobretudo alguém que se vê o tempo todo forçada a mentir.

Interpretar alguém mentindo não é algo simples – é preciso que o ator deixe claro para o espectador que não está falando a verdade, mas a forma de dizer a mentira precisa ser convincente aos olhos do personagem vivido pelo parceiro de cena. Qualquer excesso ou carência na hora da fala, qualquer erro gestual, qualquer movimento fora de instante pode arruinar a verossimilhança da cena. Mas a atuação de Binoche é de primeiríssima categoria; algo próximo ao perfeito. A lastimar apenas que sua colega, Lou de Laâge, não esteja no mesmo nível (ela não está exatamente mal; é apenas passável).

"A Espera" é o longa de estreia de Piero Messina, que trabalhou como assistente de direção de Paolo Sorrentino em filmes como "A Grande Beleza". Messina provavelmente aprendeu bastante com o conterrâneo, mas pelo filme não dá para dizer quais exatamente foram as lições: os dois têm sensibilidades e estilos bem distintos. Mas assim como Sorrentino, Messina tem o dom de criar imagens expressivas, ainda que seu talento visual se manifeste de maneira diferente – é uma beleza elegante, clássica.

Mas o diretor de primeira viagem ainda tem muito o que aprender em termos de ritmo – "A Espera" é bem lento e deixa o espectador entediado de quando em quando. Eu não tenho a menor ideia de que outra forma um filme como esse poderia ser conduzido, mas eu estou certo de que deve haver possibilidades mais dinâmicas de direção.

Para um primeiro filme, porém, é um trabalho notável – ainda que não o suficiente para que eu compreenda os aplausos fortes que um dos meus amigos diz ter ouvido em Veneza. E, menos ainda, as vaias que o outro jura ter escutado. Nesse caso, acredito que vou ter que concordar com os espectadores que viram o filme na mesma sessão que eu no Festival: respeitosos, porém não muito empolgados.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Crítica: "A Corte"

(L'Hermine, 2015), de Christian Vincent

Fabrice Luchini e Sidse Babett Knudsen em "A Corte"

Não é preciso ser religioso ou místico para saber que milagres – às vezes – acontecem. Na vida e na arte. O novo filme do (já algo veterano) cineasta francês Christian Vincent, "A Corte", é um exemplo de milagre artístico – ou, mais especificamente, de milagre cinematográfico.

O filme começa com um personagem estilo homem comum (Fabrice Luchini, melhor ator no Festival de Veneza 2015), que percebe que pegou um forte resfriado. Ele morde uma maçã e repara que ela está bichada – mas dá de ombros, joga a parte podre fora, e engole o resto. Um pouco mais tarde, ele chega ao trabalho e entreouve pessoas falando mal dele pelas costas. Descobrimos, enfim, que ele é um juiz e que naquele dia julgará um caso de um rapaz inconsequente, acusado de matar seu próprio bebê.

Depois de mais de 15 minutos diante de coisas sem importância, finalmente o espectador se vê perante o que parece ser o real "tema" do filme: o assassinato da criança. Mas só alguns minutinhos depois, o caso é surpreendentemente abandonado, e o filme volta à pasmaceira da vida comum, acompanhando os membros do júri em uma refeição, ao redor de uma mesa. Cada um se apresenta e fala um pouco de si – nenhum deles tem nada de excepcional. E a história segue adiante, com a câmera dando atenção a detalhes que, tradicionalmente, ignoraria (como o bicho da maçã). Apenas eventualmente retorna à corte, ao caso do bebê assassinado, mas o centro do longa definitivamente não é esse.

O filme lida com cada uma dessas informações com o mesmo grau de interesse – ou deveria eu dizer de "indiferença"? Afinal, no filme, coisas irrelevantes, pequenas, cotidianas, têm o mesmo peso dos "grandes temas", aqueles capazes de levar pessoas ao tribunal. Tudo e qualquer coisa é importante para a câmera de Vincent – mas nada é tão importante assim, no fim das contas...

O milagre está bem aí: como Vincent consegue a proeza de fazer o espectador acompanhar a tudo isso (esse naco enorme de vida cotidiana na tela), prestando atenção quase encantatória e com o mesmo nível e interesse a tudo o que ele quer mostrar? Porque o diretor meio que hipnotiza o público desde o começo: apenas seguimos, absortos, o filme aonde quer que ele nos leve. E mesmo as partes "entediantes", os aspectos sem interesse da vida, parecem ter algum fascínio cinemático ali. Talvez pelo simples fato de Vincent não tratar nada com muita reverência – ele parece escolher o que filmar com o mesmo princípio que um espectador indolente zapeia uma TV no domingo; vai de canal em canal, com algum interesse (mas não muito) por qualquer coisa que apareça pela frente – ao menos até se cansar e clicar novamente no controle remoto.

Vincent transita entre as partes tradicionalmente "relevantes" e as dispensáveis com tanta desenvoltura que, ao fim do filme, percebemos que talvez nós nos importemos mais com as coisas pequenas e "sem graça" do que com as mais solenes. A questão é: como ele conseguiu isso? É ainda mais enigmático porque o estilo de Vincent não tem nada de especificamente interessante ou especial; o filme não é esteticamente bonito ou sequer expressivo. É um nada de um filme, mas estranhamente prazeroso, facilmente assistível. Chega-se ao fim de "A Corte" achando que ele poderia ter durado mais horas e horas; é possível que nosso interesse se mantivesse o mesmo. Se isso não é um milagre artístico, então eu não sei o que é.

Vincent fez algum sucesso na França com o frescor de seus filmes no começo dos anos 90, como "La Discrète" – ele fez parte do que alguns teóricos franceses chamam de Jeune Cinéma Français. Seu novo filme, embora intencionalmente busque poesia na simplicidade desde o roteiro (que também foi premiado em Veneza), não o faz de maneira forçada, ostensiva. Tudo parece acidental; as coisas simplesmente (não) acontecem e é como se tivessem sido incluídas no filme porque, por sorte, alguém estava lá para filmar. O romance não concretizado entre o juiz e uma das juradas (a dinamarquesa Sidse Babett Knudsen, magnética em sua beleza discreta) é o que a obra tem de mais próximo a um frisson – mas mesmo isso não é imposto pelo diretor como algo que mereça mais atenção ou simpatia do que as outras cosias da vida. Também aquilo, no fundo, não é tão especial assim. Nada é importante e tudo é importante: talvez essa seja a grande moral – ou talvez lição – deste pequeno milagre chamado "A Corte".




quinta-feira, 21 de julho de 2016

Crítica: "Mãe Só Há Uma"

(idem, 2016), de Anna Muylaert

Cena de "Mãe Só Há Uma"

Quando lançou seu novo filme no Festival de Berlim, Anna Muylaert não se cansava de repetir: "Não vai fazer o mesmo sucesso que ‘Que Horas Ela Volta?’, nem contem com isso". E não vai, mesmo, mas a diretora talvez esteja menosprezando sua própria capacidade de comunicação: "Mãe Só Há Uma" tem um enorme potencial para conquistar um belo público – se não tão numeroso como o de seu filme anterior, ao menos um de fãs ainda mais ardorosos.

O longa é um retrato de uma juventude que não costuma se ver representada em um cinema mais convencional, e, por isso mesmo, deverá ter um apelo substancial com esse público. O projeto, percebe-se, não é fruto de um roteirista que ficou trancafiado em uma sala, diante da tela do computador; nasceu da cabeça de alguém (no caso, a própria diretora/roteirista) que teve um convívio direto com uma geração mais liberada, formada por jovens que odeiam rotulações e que estão ávidos por viver suas vidas sem dar satisfações sobre suas escolhas e nem precisar definir a todo tempo quem são.

O protagonista do filme é um deles, Pierre (o estreante Naomi Nero), um rapaz de voz grossa, que pinta as unhas de azul e beija garotos e garotas. Ele gosta de usar cinta-liga enquanto se olha no espelho, mas seus modos não são afeminados. Mas mesmo se fossem, isso não seria um problema para Pierre, que não se preocupa com paradigmas sexuais; quer apenas levar sua sexualidade de maneira livre, sem encanações.

O centro da trama, porém, não tem relação direta com essa característica de Pierre. A intriga se inspira no "caso Pedrinho", que ocorreu em Goiás, nos anos 90: Pierre foi roubado pela mãe na maternidade ainda bebê e viveu toda a vida com a família errada. Quando ele descobre o que houve, conhece e vai viver com a família biológica, bem diferente da sua, e fica sabendo que tem um irmão mais novo, também nada parecido com ele. Como se imagina, o convívio com novos parentes tão distintos não será fácil.

Muylaert faz a ousadia extrema de juntar dois temas muito fortes – a maternidade e a ambiguidade sexual – em um mesmo filme. É um risco imenso: embora a rigor sejam coisas separadas, quando apresentadas juntas, como no filme, corre-se o risco de se cair na tentação de achar que uma coisa tem relação direta com a outra. E do jeito que Muylaert edita algumas cenas, fica difícil não freudianizar o que se vê.

Por exemplo: quando a mãe falsa de Pierre é presa, na cena seguinte, vemos o jovem trancado no banheiro, se depilando. Em teoria, a ideia seria mostrar que o rapaz tem sua individualidade, seus desejos e suas pulsões, não importa o que aconteça em outras áreas de sua vida. Mas da maneira como a cena foi inserida – imediatamente depois de a mãe ser presa –, abre-se uma nova possibilidade de interpretação; fica parecendo que Muylaert está querendo dizer que existe um elo entre o comportamento sexual liberado de Pierre com sua relação com a mãe. Ele rasparia seus pelos, talvez, como um ato de rebeldia, de extravasamento da frustração diante da terrível cena de ver a mãe ser encarcerada. A justificativa de sua sexualidade "diferente" estaria em algum elemento com a relação materna.

Muylaert é inteligente o suficiente para saber desse risco que corria, mas resolveu insistir nele. Mas ao bancar essa possibilidade, ela está pisando em um terreno bastante perigoso. Porque o progressismo do seu filme fica ameaçado: o espectador pode acreditar que ela vê a ambiguidade sexual como algo que obrigatoriamente vem de uma família problemática. E, por extensão, passaria a ser algo aceitável, nos termos do filme, achar que todos os comportamentos "fora dos padrões" (entre mil aspas) no sexo são fruto de questões mal resolvidas com a mãe. Essa causalidade seria, inclusive, exatamente a forma como muitos conservadores adorariam ver o tema tratado no cinema. (E Anna Muylaert pode ser tudo, menos uma mulher conservadora; mas margem para esse tipo de leitura ela inegavelmente dá em seu filme).

O (excelente) poster do filme

Mas este é apenas um dos riscos que Muylaert corre, entre vários. Formais, inclusive. "Mãe Só Há Uma" é quase iconoclasta no que diz respeito, por exemplo, às atuações. O elenco é de uma chocante heterogeneidade de estilos – às vezes é como se Matheus Nachtergaele, Naomi Nero, Luciana Paes, Daniela Nefussi e o menino Daniel Botelho (o melhor do elenco) fizessem parte de filmes diferentes. Muitas cenas em que contracenam definitivamente não funcionam em termos dramáticos convencionais exatamente por isso: o efeito de estranhamento quase sempre prepondera. Só que "estranhamento" parece ser exatamente o que Muylaert queria atingir – até porque estranheza é o que mais existe na relação de um jovem com sua nova família, de hábitos tão distintos dos dele.

Em teoria, Muylaert sai vitoriosa, mas enquanto narrativa o filme sai debilitado, porque muita coisa que acontece em cena (sobretudo uma histeria generalizada) é antirrealista em excesso; não se acredita em muitas delas – ao passo em que várias outras parecem simplesmente perfeitas, dada a bizarrice toda da situação. Se Muylaert tivesse optado por um filme abertamente experimental, seria melhor, porque não ficaria atado às regras da encenação tradicional (e assim ela nos pouparia de certos procedimentos cansados, que não combinam com o espírito do filme, como o de mostrar, em montagem alternada, o irmão mais velho beijando um homem, enquanto o outro vai para a aula de judô etc). Muylaert opta por fazer um filme híbrido, ousado demais para ser apenas "comercial", mas muito pudico para ser totalmente "de invenção".

Ainda assim, apesar de indefinido – quase que uma referência (involuntária?) ao próprio protagonista –, o filme é bastante autêntico e muito especial. Tem algumas cenas que são verdadeiras preciosidades – uma delas, em que o garoto Daniel Botelho conversa longamente ao celular, durante um jantar tenso, é formidável . O filme é o melhor da diretora até o momento. E é uma ave raríssima – e muito bem-vinda – no nosso cinema.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Crítica: "Florence: Quem É Essa Mulher?"

(Florence Foster Jenkins, 2016), de Stephen Frears

Meryl é Florence, a cantora desafinada
Eu não acho que a atuação de Meryl Streep em "Florence" seja boa: acho uma das melhores da carreira dela. É um alívio ver que essa atriz extraordinária, depois de iniciar um caminho (que parecia sem volta) lamentável, com filmes de qualidade duvidosa e atuações exageradas e maneiristas, tenha voltado a acertar o tom. Não só o tom: em "Florence", Meryl acerta em tudo. Desde "O Diabo Veste Prada" (há 10 anos) ela não se mostrava tão instintiva e inspirada como agora. Pena que a Academia já desperdiçou um Oscar com ela pelo filme mais errado possível ("Dama de Ferro"); era por este que ela merecia levar mais sua terceira estatueta.

Meryl interpreta Florence Foster Jenkins, uma milionária americana que, nos anos 40, decidiu se lançar como cantora. O problema é que ela não tinha talento musical algum – quando cantava, o som emitido por suas cordas era constrangedoramente desafinado. Sem ter muita noção da sua incapacidade vocal (o marido a poupava de qualquer crítica ruim), insistia em soltar a voz. Entrou para a história como a "pior cantora do mundo".

O filme, uma comédia com toques dramáticos, é dirigido por Stephen Frears, que, quando quer, é um gênio na arte de capturar boas performances. Desta vez ele quis, e o elenco quase todo de "Florence" está em estado de graça.

Hugh Grant, no papel do marido mais novo e dedicado de Florence, faz mais uma variação de seus personagens habituais, mas aqui ele está bem mais intenso; pensa menos em fazer de sua timidez algo charmoso e mais em encontrar os olhares e entonações verdadeiros, sinceros. Ele está comovente como o dedicado e amoroso homem que adula e protege sua mulher das maldades do mundo (ele é um ex-ator medíocre, que já sofreu muito no passado por não ter conseguido se tornar grande como sonhava ser). Simon Helberg está engraçado na pele do músico homossexual iniciante que acompanha Florence em suas patéticas performances; é um sujeito estranho, desajeitado - não tem lá muito mais talento musical que a própria Florence, mas sonha alto (Era um personagem promissor, mas que não tem aprofundamento devido pelo roteiro, que o utiliza de maneira superficial e leve demais, mesmo para uma comédia despretensiosa). E completa o elenco a divertida Nina Arianda, no papel menor, mas vital, de uma mulher meio grosseira que ridiculariza (e depois aplaude) os "espetáculos" de Florence.

Pode se atacar Frears de tudo, menos de que não seja corajoso; ele lança seu "Florence" com muita proximidade de outro filme com o mesmíssimo assunto, embora camuflado, em outro contexto, e com uma personagem de outro nome: o francês "Marguerite", de Xavier Giannoli (leia a crítica neste link). No final dos anos 80, Frears já havia corrido risco semelhante: ao mesmo tempo em que preparava "Ligações Perigosas", o tcheco Milos Forman concebia seu "Valmont", ambos inspirados no romance de Choderlos de Laclos.

Frears saiu vitorioso (quem se lembra de "Valmont" hoje em dia? quase ninguém – o que é uma pena, já que o filme, embora inferior ao de Frears, não seja nada desprezível). Desta vez, o britânico ganha novamente da concorrência, mas por muito pouco. "Florence" é mais homogêneo, fluido e ritmado, e funciona melhor enquanto comédia que "Marguerite". Por outro lado, é (por opção) também mais rasteiro - a versão francesa vai um pouco além (embora não muito) na abordagem de alguns temas, que às vezes não são sequer aludidos no longa de Frears.

Streep e Grant: excelentes em cena
É curioso perceber que o longa francês traz um questionamento mais original sobre a questão do artista: o que pode e o que não pode ser considerado como arte. Giannoli admite que se veja em uma figura como a de Marguerite habilidades que poderiam transformá-la em uma artista (como o grupo de dadaístas do filme consegue perceber); tudo é uma questão de ponto de vista. Já para Frears, não há exatamente "arte" no espetáculo vocal patético de Florence; mas há nela, sem dúvida alguma, um grande talento cômico: Florence é uma entertainer nata. Pode não ser "arte" o que ela faz, mas é um espetáculo divertido, que entretém e faz rir. Com gargalhadas algo depreciativas, por certo, mas respeitosas (ela não é a figura circo de horrores que eu temia que se tornasse no filme de Frears; está mais próxima de uma personagem de ópera bufa, do burlesco, ainda que a contragosto).

O ponto em que "Marguerite" perde a batalha para "Florence" é justamente nas cenas musicais, quando as duas piores cantoras do mundo mostram seus "dotes" vocais. A francesa Catherine Frot, que tem uma excelente performance em quase todas as cenas, tem um erro lastimável de approach da personagem quando ela precisa cantar; se em geral interpreta sua personagem como uma mulher digna de compaixão, no palco ela passa a ser subitamente uma palhaça proposital, procurando risos do público; o próprio estilo de atuar deixa isso evidente. 

Já Meryl é certeira: no palco, assim como fora dele, ela é uma mulher apaixonada pela música, que quando canta dá tudo de si – entrega-se de corpo e alma ao que ela acredita ser uma arte. Quando as pessoas gracejam dela, há uma decepção genuína em seu olhar; se ela é de fato divertida em cena, isso ocorre apesar da própria vontade dela. Não é a zombaria que Florence busca nem o que Meryl procura; tudo o que as duas querem é exercer sua paixão, da maneira mais honesta possível. (Apesar de a personagem ser excêntrica e exigir alguns exageros, Meryl o faz de uma maneira inusitadamente contida. E embora seja uma ótima cantora, a atriz encontrou uma estridência muito parecida com a da Florence Jenkins da vida real).

O roteiro se desenrola de maneira algo maceteada - há, por exemplo, uma tentativa desnecessária de tornar Florence mais simpática por meio de uma doença fatal. Mas o que fica do longa são os temas essenciais: a lealdade de um homem pela mulher que ele ama; o senso de proteção a alguém em situação de fragilidade como sintoma maior do amor espiritual que se sente opor essa pessoa. E a força de vontade como forma de se conseguir "milagres". Perto de sua morte, Florence diz algo como: "Apesar de todos os contras, eu cantei!". Florence, no fim das contas, foi uma grande vitoriosa, a despeito da alcunha pouco lisonjeira que recebeu. Porque, em vida, fez o que mais amava. E se viver fazendo o que mais se ama não é ser vitorioso, então o que é?

   

sábado, 16 de julho de 2016

"O Botão de Pérola" (crítica pílula)

(El Botón de nácar, 2015), de Patricio Guzmán*

Cena de "O Botão de Pérola"

Em "El Botón de Nácar" [O Botão de Pérola], o chileno Patrício Guzmán volta ao estilo de documentário subjetivo, político e filosófico que havia feito no belo "Nostalgia da Luz". Naquele filme, o cineasta partia do deserto do Atacama para fazer uma série de ilações inusitadas que acabariam em uma reflexão sobre a ditadura militar no Chile. Naquele deserto, enquanto astrônomos buscam novas estrelas no céu, parentes de desaparecidos políticos procuram por restos de seus familiares enterrados na região. Muitas das associações de ideias que ele fazia ali eram discutíveis, mas o filme era forte, poético e original. Ao seu modo, uma pequena obra-prima.

Mas desta vez, Guzmán faz os malabarismos mais improváveis para partir de uma análise científico-metafísica sobre a água e desembocar na denúncia do massacre aos índios da Patagônia e (para não perder o hábito) nas atrocidades sofridas pelas vítimas da ditadura militar chilena. A linha filosófica que Guzmán aplica desta vez é primária demais para ser levada a sério; tudo é absurdamente forçado. Muitos jornalistas adoraram o filme, mas eles provavelmente confundem as boas intenções do longa e o seu empenho em resgatar um passado ocultado por muitos com qualidade narrativa. A visão de mundo de Guzmán é de uma nobreza rara – ele é um dos grandes humanistas do cinema atual. Mas aqui, ele se perde quase que completamente – seu filme é de uma infantilidade (ingenuidade?) lamentável.

*adaptado de texto publicado no dia 9.fev.2015, na Revista Cult, durante a cobertura do Festival de Berlim de 2015 para o site

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Crítica: "As Montanhas se Separam"

(Shan he gu ren, 2015), de Jia Zhangke

Zhao Tao em cena antonionista do filme de Jia Zhangke

O longa do grande Jia Zhangke passou meio batido no festival de Cannes do ano passado: quase não se falou dele – ou quando se falou, não houve muito entusiasmo. Mas um ano depois, o filme chega aos nossos cinemas tido como uma obra-prima inconteste, como que em um esforço inconsciente de reabilitação. Da imprensa mais highbrow aos sites mais pop, a reverência a "As Montanhas se Separam" tem sido quase unânime.

Quem viu em Cannes e agora escreve sobre o longa deve ter sido traído pela memória (e os que só viram agora, como de hábito, devem ter seguido o comboio). Tem muita coisa boa, é inegável, mas é claramente um filme menor na obra de Jia. É dividido em três partes: a primeira (a melhor) se passa na China, em 1999. A segunda (sem muito brilho) acontece em 2014, no mesmo país. E a terceira (quase um constrangimento), na Austrália, em um moderadamente distópico 2025.

Acompanhando os dramas de uma moça e dois rapazes envolvidos em um triângulo amoroso, o cineasta faz o que é sua especialidade: usa as inquietações desses personagens como principal substrato para compor um quadro da China contemporânea. Um país contraditório, indefinido, com um pé no passado e outro no futuro – e a cabeça completamente perdida em algum lugar entre ambos.

A cabeça de Jia, porém, parece firme no lugar como nunca, e ele dirige seu longa de maneira sólida, autoconfiante; exibe a postura levemente presunçosa de um artista que tem ciência da própria capacidade de ir além de onde os apenas medianos conseguem chegar. Mas, desta vez, Jia não ultrapassa com muita folga a linha da mediocridade; "Montanhas" é um de seus filmes menos inspirados.

O filme tem toques de antonionismo (as perambulações; o contraste/ espelhamento dos ambientes com o espaço mental dos personagens) em vários momentos, mas sem a eficiência e autenticidade que Jia já conseguiu com esses mesmos procedimentos em filmes anteriores. Mas é no fundo um melodrama pesado, com personagens que tendem à caricatura – o que é de se estranhar, em se tratando de um diretor tão sutil e afeito a explorar a complexidade existencial de suas crias. A não ser pela protagonista feminina, os demais personagens são quase novelescos: um dos rapazes, íntegro e virtuoso, assume as dores do mundo e sofre até não poder mais (e morre de câncer); o outro é um vilão de existência vazia, que só pensa em dinheiro – abrirá mão de tudo na vida em nome do "vil metal".

A intenção do diretor talvez tenha sido traçar um paralelo de cada um com as duas faces da China atual: o sujeito honrado, mas pobre, resignado, sem lugar no mundo moderno, é a China rural, do passado, "oriental"; o mercenário, que prospera financeiramente, mas que é infeliz por vender a própria alma, é a China urbana, capitalista, ocidentalizada. Mas Jia já mostrou antes ser capaz de criar analogias bem mais sofisticadas e menos óbvias; o caricatural dos personagens predomina largamente sob seu caráter alegórico.

O filme começa com uma cena tão bela como simples – talvez a única que realmente se destaca: um grupo de jovens dança ao som de "Go West", dos Pet Shop Boys, com uma alegria viva e contagiante, à espera da chegada do terceiro milênio. Eu pessoalmente acho que inserir uma música que diz "Vá ao Oeste" para ilustrar aquele momento de ocidentalização chinesa é uma ideia antes banal do que genial (embora a crítica tenha sugerido essa segunda opção), mas é preciso reconhecer que a cena funciona maravilhosamente. Não tanto pelo "go west" em si; creio que mais pela bela melodia da canção, cujos gritos de "together" ("unidos") acentuam o espírito auspicioso, cheio de jovialidade, presente nos rostos e corpos daqueles garotos e garotas.

A dança ao som de "Go West" do início do filme

A cena é um pequeno momento mágico, que está à altura de outros breves instantes que Jia tantas vezes foi capaz de criar no passado (e que o colocam um degrau acima de tantos outros cineastas talentosos). Refiro-me aqui, por exemplo, a cenas como a do prédio que, do nada, vira um foguete e decola, em "Em Busca da Vida"; ou a do abraço comovido entre a chinesa e a prostituta russa, no banheiro, em "O Mundo"; esses breves segundos que são pequenos toques de Midas, que fazem toda a diferença em um filme.

Mas em "Montanhas se Separam", Jia procura mais desses "toques" do que de hábito, sem conseguir efeitos à altura das intenções. A cena final, também ao som de "Go West", tem sido reverenciada como uma obra-prima por si só. Nela, a personagem feminina, após uma vida dura e cheia de decepções, dança sozinha, emocionada, entre as tais montanhas do título – deveria ser uma espécie de Rosebud da protagonista: um breve retorno à alegria inocente da juventude, em um instante de adversidade. Mas a cena (apesar da excelência da atuação de Zhao Tao) é uma conclusão de filme piegas além do esperado. Pior: traz um ranço de afetação incomum na obra de Jia – não tem a mesma verdade, o frescor que sua sequência espelho-invertido (a do início do filme) esbanja. É apenas um clichê embaraçoso querendo se passar por grande arte.

Isso se estende, aliás, por toda a decepcionante terceira parte do filme, no futuro impessoal na Austrália. Ali, o filho dessa personagem feminina, há anos afastado da mãe, entra em contato com uma nova figura materna, uma personagem fraca interpretada pela atriz e diretora Sylvia Chang, diva do cinema taiwanês. O futuro pintado por Jia é muito caricatural e sem imaginação se comparado com o presente ambíguo e complexo que ele nos apresenta – ou será que ele quer dizer que o mundo que nos aguarda vai ser apenas de lugares-comuns e de pobreza criativa? (Neste terço final, quando o espectador imagina que Jia já chegou ao fundo do poço da simbologia barata, eis que ele é capaz de achar uma ainda pior: o vilão mercenário decide batizar o filho com o nome de 'Dollar'...).

O panorama da China atual que Jia traça em seus filmes é sempre interessante, mas aqui, isso por si só não confere excelência alguma ao filme. Mas o longa tem qualidades: o pulso firme do diretor, as soluções de enquadramento, o triângulo amoroso da primeira parte. Mas o melhor é mesmo a atuação de Zhao Tao: simplesmente formidável. Mas não vejo nada além disso que explique a exaltação tão exagerada a este filme sem brilho e de pouco charme, a não ser uma boa vontade por parte da crítica com um cineasta que, já há algum tempo, não encontra a inspiração de seus melhores momentos.