Charles Fricks e Tony Ramos em cena de "Quase Memória" |
Um homem se encontra com ele mesmo, 26 anos mais jovem, e
juntos travam uma conversa em que relembram fatos do passado comum. A
estrutura é indisfarçavelmente teatral, com os dois atores (Tony Ramos e
Charles Fricks) se movimentando em um espaço cheio de marcações e spots de iluminação
que sugerem o trabalho de luz feito nos palcos. Os procedimentos, porém, são
amplamente cinematográficos: há toda sorte de movimentos de câmera (os travellings en avant rápidos e vigorosos
são especialmente interessantes), ângulos de filmagem inusitados e uso constante
de idas e vindas temporais.
“Quase Memória” é uma adaptação do famoso livro homônimo de
Carlos Heitor Cony, e, em seus momentos mais inspirados, tem boas reflexões
sobre a memória: os personagens se deparam o tempo todo com os mecanismos ardilosos
que nosso cérebro utiliza para falsear algumas lembranças, recalcar outras, promover
esquecimentos e escolher os detalhes de uma situação a serem lembrados. Esperto,
está sempre rearranjando seu conteúdo da maneira que mais lhe convém.
Mas o exercício de rememoração que o “eu” velho e o “eu”
jovem praticam é focado não nas lembranças da própria vida deles dois, mas sim
na do pai, cuja imagem é (re)construída por ambos em um processo colaborativo
de esforço memorial. E o filme se dedica a esse personagem (João Miguel), um
jornalista de personalidade intensa, cheio de paixões e algo grandiloquente –
na verdade, um grande e incorrigível sonhador.
Eu não li o livro de Cony, mas estou certo de que a intenção
era a de homenagear a figura de seu pai – que, de fato, parece um personagem e
tanto. Talvez no livro, na linguagem escrita, a transição do encontro dos
dois “eus” para as suas lembranças do pai transcorra com fluidez e naturalidade,
mas no filme, as duas coisas não casam muito bem. A opção pelo foco nesse
personagem paterno soa como uma negligência das possibilidades que a trama vinha
apresentando até então; se o velho e o moço se dedicassem a relembrar
o próprio passado, em um exercício de luta de “versões” para o que aconteceu, o filme seria infinitamente mais interessante. É sempre decepcionante quando o longa abandona os dois “eus” para se dedicar às memórias das coisas que aconteceram
ao pai deles (em eventos em que, muitas vezes, o “eu” sequer estava presente);
o filme constantemente dá a impressão de ser um desperdício de uma ótima ideia.
“Quase Memória” é um longa dinâmico, que além de abordar questões
instigantes e mostrar personagens ricos conta também com um visual repleto de estímulos
– cores vibrantes, luzes fortes, atuações histriônicas; no entanto, é um filme
estranhamente sem apelo, algo trôpego, que não estabelece com o espectador nenhuma
sensação mais forte que uma leve simpatia (não muito distante de uma total indiferença). Nem
o humor sempre presente consegue trazer mais vibração ao filme, e o saudosismo pela vida na primeira metade do século 20, que poderia
ser algo comovente e poético, aqui soa antes de mais nada como algo frustrantemente antiquado.
Tony Ramos tem uma brilhante atuação como o “eu” idoso,
sobretudo em um monólogo quase no fim do filme; já a performance de Charles
Fricks, embora eficiente, não está no mesmo nível. Os demais atores estão apenas
satisfatórios em seus personagens caricatos, e o roteiro, apesar de alguns bons
momentos, tem descuidos (não sei se isso está no livro, mas o “eu” jovem, que
vive em 1968, a certa altura cita um filme de Federico Fellini... só lançado na
década de 70).
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