A crítica se
habituou tanto a valorizar apenas filmes com experimentações formais que parece
ter se esquecido de se abrir ao prazer mais imediato proporcionado pelo cinema
mais convencional. É uma pena, até porque alguns filmes sem uma proposta estética
mais inovadora são capazes de, ao seu modo, trazer alguma novidade na visão
sobre o tema que abordam.
“Nise – o Coração
da Loucura”, de Roberto Berliner, é um desses filmes. Mostrando o trabalho revolucionário
da doutora Nise da Silveira em um hospício nos anos 40, onde permitiu que os
internos se manifestassem por meio da criação artística, o filme aborda o
universo manicomial sem aquele ranço de “exploitation” que costuma caracterizar
os longas sobre loucura. Há, sim, tipos insanos, que cinematograficamente poderiam
ser utilizados como elementos não muito distintos de bruxas ou zumbis em um
filme de horror. Mas no longa de Berliner, não há esse tipo de tratamento; os
loucos parecem, antes de mais nada, crianças atormentadas, seres de uma
fragilidade extrema, que se agem com violência é por medo ou defesa. São pessoas
tratadas pela câmera como pessoas.
Não há, também, sentimentalismo barato, e por conta desse equilíbrio no tratamento das personagens o filme é extremamente enternecedor. Há na câmera de Berliner humanismo, empatia e respeito, além de bem-vindos toques de humor; por isso mesmo, o filme tem um espírito leve e um frescor pouco usual no cinema sobre hospitais psiquiátricos.
Não há, também, sentimentalismo barato, e por conta desse equilíbrio no tratamento das personagens o filme é extremamente enternecedor. Há na câmera de Berliner humanismo, empatia e respeito, além de bem-vindos toques de humor; por isso mesmo, o filme tem um espírito leve e um frescor pouco usual no cinema sobre hospitais psiquiátricos.
Na primeira cena,
Nise chega ao manicômio e bate na porta. Ninguém abre. Ela bate com
mais força – de novo, sem respostas. Então, dispara a bater sem parar, com
força, até que alguém, irritado, decide abrir o portão para ela. É uma
ilustração perfeita do tipo de personalidade de Nise da Silveira: obstinada,
pragmática, algo intransigente. Apesar dessa dureza, era uma mulher de bom
coração – se cuidava com tanta atenção de seus “clientes” (termo que ela mesma usava),
era para levar adiante suas pesquisas científicas, sim, mas também por uma
vontade genuína de vê-los terem seus traumas e fantasmas amenizados, se não
curados.
Os atores que dão vida aos internos interpretam seus personagens com sensibilidade e sabedoria. E Glória Pires
dá vida à protagonista com brio e vigor, mas sua fala muito correta, com frases
prolongadas demais, pode dar a impressão de que a atuação é equivocada. Não é: não
se pode esquecer que a doutora Nise era uma mulher dos anos 40 – em nosso
cinema, é comum que os atores de filmes de época se esqueçam de que a forma de
falar, gesticular e se mover no passado era muito distinta de como é hoje, a
ponto de o público aceitar como “correto” esse registro moderno de performance
(o próprio “Nise” tem alguns atores em papeis menores sem esse mesmo tipo de cuidado com a atuação).
O filme tem alguns achados interessantes. O hospício se localiza no bairro carioca do Engenho de Dentro, e um dos personagens usa esse nome topográfico para se referir à própria mente. E há uma cena especialmente desoladora: quando cães utilizados como elemento terapêutico são assassinados –
a sequência poderia ter um melhor tratamento visual, mas o fato de não ser tão “estetizada”
acaba sendo um ponto a seu favor. O aspecto imagético não eclipsa a carga emocional,
que é altíssima – fica-se quase tão desesperado diante do que se vê quanto os internos, que gritam
e choram, em um transe coletivo.
A se lamentar,
apenas, que o filme incorra em um dispensável maniqueísmo, com Nise e seus
auxiliares (e internos) como santos e os médicos defensores da lobotomia como monstros
(e entre os internos, todos parecem extremamente dotados para atividade
artística – custava ao menos um deles não ter talento nenhum para a arte?). Mas
isso é apenas um detalhe no “todo” do filme; o que fica da experiência é a
lembrança do esforço daquela mulher em uma incansável e instigante tentativa de compreender e dialogar com
pessoas tidas como sem importância para a sociedade - mas que são tão humanos quanto eu
ou você.
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