Cena de "As Mil e Uma Noites 3 - O Encantado" |
A crise econômica enfrentada por Portugal desde 2013 é o
tema desta trilogia, que não é uma adaptação, mas apenas “se inspira na
estrutura de ‘As Mil e Uma Noites’“, como um letreiro faz questão de deixar
claro. De fato, o diretor português Miguel Gomes inclui sua bela Xerazade como
uma estratégia para unir em um mesmo projeto pequenos episódios isolados que,
sem um fio condutor, seria inviável em termos dramatúrgicos.
Ou talvez a presença
dela tenha outra explicação: em tempos tão horríveis, são necessários momentos
de evasão, por meio de narrativas absorventes como as que ela narra ao marido,
o rei Xariar. O projeto de três filmes semiautônomos é um enorme
laboratório para que Gomes exerça da forma que achar melhor sua capacidade enquanto
artista e enquanto observador social. Cabe de tudo nos longas – trechos encenados,
registros documentais, cenas de docudrama, episódios surrealistas, metáforas
óbvias e alegorias impenetráveis. Tudo é uma reelaboração da situação socioeconômica
de hoje no país, mas também com referências à formação histórica da sociedade
portuguesa.
O projeto é extremamente ambicioso e muito arriscado: podia tanto
terminar como um fracasso retumbante como se tornar uma obra-prima inatacável. Há
nos três volumes um pouco de cada coisa – os filmes são
bastante irregulares, e Miguel Gomes não parece ter muita preocupação com o
equilíbrio interno de cada um. Ainda assim, os grandes momentos de cada volume suplantam
com enorme vantagem os trechos menos felizes. O projeto de Gomes já é uma das grandes
realizações cinematográficas do ano de 2015.
O Volume 1, “O Inquieto”, começa com imagens e depoimentos
de trabalhadores de estaleiros em dificuldades financeiras, que cedem espaço a
um divertido trecho metalinguístico, em que o próprio Gomes surge como ele
mesmo, um cineasta desesperado diante de suas responsabilidades para fazer um
filme sobre a crise portuguesa; ele sai literalmente correndo e abandona as
filmagens – o humor está sempre presente na trilogia, embora no âmago sejam
filmes duríssimos e até dolorosos.
Demora uma eternidade até que surja Xerazade e a premissa do
filme seja explicitada. Os episódios que ela narra incluem um que é puro
escárnio, sobre autoridades econômicas que sofrem de um priapismo incontrolável,
outro sobre um galo que incomoda a vizinhança por seu canto estridente e, o
mais triste de todos, um sobre desempregados narrando o caos de suas vidas após
a perda de seu trabalho. Em vários instantes, o filme fica parecido
com aqueles sonhos sobre os quais a gente não tem controle, quando alguma coisa
importante cede espaço a uma digressão, e enquanto nosso inconsciente não se
livra dessa “subtrama”, é impossível voltar ao que inicialmente nos interessava.
E talvez Gomes use esse artifício como um exercício de poder: mostra
que é ele quem manda - é o senhor de seu filme.
O volume 2, “O Desolado”, é o mais regular. Começa com uma
pungente história de um bandido que se torna ídolo, mas o ponto alto é um
julgamento alegórico em que a figura da Justiça (Luísa Cruz, em performance
superlativa) percebe que é impossível uma sociedade progredir enquanto a
corrupção, a falta de empatia e o egoísmo ocuparem lugar central no
comportamento das pessoas. Mas o trecho final não fica muito a dever, na trama
simbólica que se passa em um condomínio de classe média baixa, em que um
cachorrinho (uma alusão ao povo português?) troca constantemente de dono. Há também
um inesperado caráter espiritual nesse trecho, que o enriquece para além da
questão social.
O volume 3, “O Encantado”, tem um começo brilhante, focado
em Xerazade enquanto personagem – é o trecho mais dominado e satisfatório de
todo o filme. Une prazer visual, sensorial (há muita música brasileira) e
intelectual – é o auge da trilogia. Mas aí Gomes paga o preço da própria
ambição: inicia uma aborrecidíssima história envolvendo passarinheiros que ocupa
bem mais da metade do longa. O trecho se pretende uma súmula de toda a situação
social crítica pela qual Portugal passa hoje e como isso vem em um processo já
histórico. Como conceito, é muito interessante; cinematograficamente, porém, o
trecho é morto.
Pouco após ultrapassar a metade das 1001 noites, Xerazade para de narrar seus casos - a voz dela em off some, e a narração passa a ser toda por escrito. Até desaparecer de vez (a culpa certamente é dos passarinheiros: o rei Xariar deve ter ficado tão entediado com a trama que resolveu, por fim, matá-la de uma vez). Para quem soube contar tantas histórias instigantes até então, a bela narradora teve um final imerecidamente patético. Pobre Xerazade...
Pouco após ultrapassar a metade das 1001 noites, Xerazade para de narrar seus casos - a voz dela em off some, e a narração passa a ser toda por escrito. Até desaparecer de vez (a culpa certamente é dos passarinheiros: o rei Xariar deve ter ficado tão entediado com a trama que resolveu, por fim, matá-la de uma vez). Para quem soube contar tantas histórias instigantes até então, a bela narradora teve um final imerecidamente patético. Pobre Xerazade...
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