sábado, 28 de novembro de 2015

Crítica: "Dois Amigos"

(Les Deux amis, 2015), de Louis Garrel


Louis Garrel na coletiva de imprensa, em SP

Louis Garrel, o maior galã francês do cinema atual, está no Brasil. Veio promover “Dois Amigos”, sua estreia como diretor de longas. Na entrevista coletiva, em uma sala de cinema paulistana, o ator fumou (“os acontecimentos recentes de Paris me fizeram voltar ao cigarro”, deu como desculpa) e, por duas vezes, se mostrou irritado. Primeiro, vociferou contra uma desagradável microfonia no recinto: “Com esse barulho fica impossível continuar”. Depois, mostrou insatisfação com erros cometidos pela tradutora (às vezes ele mesmo a corrigia, fazendo aquela cara de impaciência que é uma especialidade tão gaulesa quanto o croissant e o ratatouille).

No geral, porém, foi bastante simpático – o que é até uma surpresa, já que a persona do ator representa a quintessência do que “ser francês” significa para nós: um sujeito mal humorado, blasé e excessivamente intelectualizado. Desse trio, ele só demonstrou a terceira característica – entre citações a nomes como Godard, Hitchcock e Desplechin, o ator/cineasta provou ser um jovem inteligente, culto e que conhece muito bem seu métier. 

Mas era outro predicado francês o que ele mais reforçava: o charme. Sorria, respondia às questões com um humor fino e, por vezes, com modéstia, usando autoironias levemente falsas do tipo: “Quem me acha um sex symbol é porque não me viu quando acordo”. E, é claro: ficava de perfil, como que ciente de ser este seu ângulo mais fotogênico.

Também em seu filme, Garrel surge de lado sempre que possível, exibindo toda a galicidade de seu nariz. Aos 32 anos, parece no auge da segurança e também do magnetismo; é inegavelmente um grande astro, na mesma linhagem que Yves Montand e Alain Delon. Parece também mais sólido como ator. E como cineasta, faz uma estreia surpreendentemente boa.

 O roteiro parte de uma ideia simples e até meio sem originalidade: dois amigos que se apaixonam pela mesma mulher. Mas o filme está longe de ser convencional. Na trama, o desajustado Clément (Vincent Macaigne) conhece Mona (a bela iraniana Golshifteh Farahani), presidiária em liberdade condicional. No dia do encontro, a moça está excessivamente alcoolizada e se envolve com ele antes por solidão que por qualquer outro motivo. Mas Clément se apaixona – enlouquecidamente, chegando às raias da obsessão. Ao perceber o desinteresse de Mona, ele pede ajuda a seu melhor amigo, Abel (Garrel), que acabará também apaixonado pela jovem (e ela por ele). Está formado um triângulo, que manterá um convívio até o final oscilando instantes de ternura intensa e autodestruição; é o tipo de trio que volta e meia se desfaz – sendo que, na cena seguinte, estão lá os três, unidos novamente, prestes a se magoar de novo, em um ciclo não muito saudável.

O tom geral, no entanto, não é o de peso ou de tragédia; há sempre afetuosidade e humor, embora o filme propositadamente incorra em alterações de tom o tempo todo – da comédia passa ao melodrama, não menosprezando o suspense e, por vezes, um realismo mais cru. Não se prende a um só gênero.

Garrel costuma ser muito associado à França do final dos anos 60, seja por ser filho de um cineasta daquela época (Philippe Garrel, expoente da primeira geração pós-Nouvelle Vague), seja por ter estrelado dois filmes emblemáticos sobre o Maio de 68: "Os Sonhadores" e "Amantes Constantes". Tem também o visual e um certo atrevimento na postura que remetem diretamente à juventude parisiense daquele período. Mas seu filme não se preocupa tanto com questões políticas e, muito menos, com uma estética rígida como a do pai. Garrel parece mais influenciado pelos cineastas com quem já trabalhou, sobretudo Christophe Honoré, coautor do roteiro. A diferença é que, aqui, o aluno se sai muito melhor que o mestre - nunca na carreira Honoré teve tanto domínio sobre um filme como Garrel demonstra aqui (e Honoré, para seu próprio azar, nunca escreveu um roteiro tão bom para si mesmo).

Os que buscam ilações fáceis poderão pensar em uma provável influência nouvelle vaguista, de “Jules e Jim”, por conta do tema do "triângulo", mas a referência que deveriam buscar definitivamente não é essa. Há algo, sim, de Truffaut no filme, bem mais que do Garrel pai  (o humor elegante, um certo fetiche por nucas, a falta de capacidade masculina de lidar com a paixão), mas "Jules e Jim" era essencialmente uma trama sobre uma relação a três; “Dois Amigos” é, acima de tudo, sobre a amizade entre dois homens. (O título do filme já diz tudo, né?)

Curiosamente, Garrel diz que se inspirou em comédias italianas à la Monicelli, que mostram personagens cheios de defeitos, mas ainda assim adoráveis, carismáticos. Mas seus protagonistas parecem muito mais os (anti)heróis desajustados que a própria França tanto mostrou nas décadas de 70 e 80, geralmente interpretados por Gerard Depardieu e Patrick Dewaere (às vezes no mesmo filme, como em “Os Corações Loucos”). São personagens cativantes, até certo ponto dignos de piedade, mas claramente desequilibrados; são párias sociais.


O trio de atores é eficaz, mas Vincent Macaigne leva a pior por conta das deficiências de seu personagem. Clément começa como um clown passional, mas termina como um verdadeiro imbecil, apatetado em excesso, muitas vezes em nome de um tipo de comicidade que seria melhor o filme evitar. A idiotização do personagem não reforça sua fragilidade emocional, apenas o torna chato. Já o personagem de Garrel é bem mais complexo – e é também o mais são do trio; sente-se culpado por se apaixonar por Mona, aceita as grosserias do amigo por piedade e tem noção da responsabilidade que possui sobre uma criatura tão indefesa como Clément. Mona também é uma personagem rica: não é nenhuma mocinha, do tipo que quer se endireitar após os erros do passado. Ainda não tem maturidade para isso – é uma mulher carnal, chegada a uma “farra” e a viver loucamente; não está pronta para virar adulta por completo. 

Há, porém, um efeito colateral nesse mau desenvolvimento do personagem Clément: ele surge como um estorvo, e os outros dois, automaticamente, ganham algo de etéreo. O filme, mesmo sem ter essa intenção, acaba tocando em um tema transversal que possivelmente não estava previsto no roteiro: o da força da beleza e do magnetismo pessoal nos relacionamentos humanos. Não se trata da defesa ou de uma ode ao que é belo em detrimento do que não é, mas sim da constatação involuntária de que, por menos materialista que se seja, o aspecto físico e o charme contam muito mais na definição dos relacionamentos afetivos do que gostaríamos de imaginar. Mona é linda, e Abel, idem; quando se olham, sai faísca, algo que nem é ameaçado nas trocas de olhares da moça com o patético Clément. Há uma cena em que os três amigos estão em um restaurante, mas a tensão sexual entre Abel e Mona é tão forte que a figura de Clément é eclipsada, mesmo ele sendo o personagem mais caricato do trio. Torna-se carta fora do baralho quando o belo e a bela se encontram; sua sobrevivência no trio só se dá por meio de manipulação sentimental, e isso fica claro. Esse tipo de abordagem é rara no cinema, talvez porque não é fácil ver isso jogado nas nossas caras...

Garrel já dirigiu anteriormente três curtas. Já vi um deles, "Le Petit Tailleur", que me pareceu interessante, mas sem muita personalidade. Ele possivelmente estava guardando o melhor de si para a sua estreia nos longas. É um excelente primeiro filme. 

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