Simone Spoladore vive a Helena Ignez em versão 2015 |
Helena Ignez foi casada com Glauber Rocha, já namorou Júlio
Bressane e foi por décadas companheira de Rogério Sganzerla. Mas em seus filmes
como diretora, embora haja muito de Sganzerla e Bressane (não vejo quase nada
de Glauber), ela mostra uma voz bastante pessoal, única. É uma pena que só
tenha passado oficialmente à direção anos após a morte de Sganzerla, em 2004.
Em “Ralé” ela adapta a peça homônima de Maxim Gorki para o
contexto social brasileiro de hoje. Mostrando personagens marginalizados, faz uma
exaltação à liberdade de escolha pessoal e ao prazer; é uma ode ao hedonismo,
mas sobretudo ao respeito pelo outro e pelas maneiras que cada um escolhe de
ter prazer. O filme é disforme, irregular, cheio de tropeços e elementos que não
se encaixam muito bem. Mas essa é a parte da pedra bruta a ser lapidada pelo
espectador; há um diamante reluzente ali. É um longa recheado de grandes, lindos
momentos. Um filme com alguma dureza, mas que exala ternura.
Começa com uma inserção de um trecho de “Sem essa, Aranha” (dirigido
por Sganzerla e estrelado pela própria Helena, em 1970), em que Luiz Gonzaga diz:
“Vivemos um período de anti-Brasil”. A situação no país mudou bastante de lá
pra cá, mas é inacreditável como a fala soa atual. Helena dá uma resposta aos
tempos negros atuais de ressurgimento do reacionarismo nos costumes por meio de
um cinema de alta carga de poesia; a ralé que ela mostra são gays, travestis,
mulheres “vadias”, pobres, indígenas, bichos-grilos e mais vários outros tipos
que não se encaixam na sociedade careta e consumista do Brasil moderno. São os
marginais do cinema de Sganzerla, sim, mas em versão 2015. E eles deixam claro a
quem quer abafar suas vozes: não vão retroceder.
“Viva a vida!”, diz a personagem de Simone Spoladore (extraordinária!),
antes de dar uma piscadela marota para a câmera. Ela encarna uma versão atualizada
da personagem que Helena Ignez tantas vezes viveu nos tempos do cinema marginal,
principalmente as de “O Bandido da Luz Vermelha”, “A Mulher de Todos” e os longas
da fase Belair (sobretudo “Família do Barulho” e “Copacabana
Mon Amour”). Deste último, aliás, a personagem Sonia Silk reaparece em cenas de
arquivo – e também com a própria Helena se vestindo da personagem, em um momento
especialmente bonito e comovente. Há outra forte referência ao seu próprio
passado: há um filme sendo rodado dentro do filme, que se chama “A
Exibicionista”, derivado de “Carnaval na Lama (ou Betty Bomba, a Exibicionista”),
longa da fase Belair que se perdeu.
O elenco inclui Ney Matogrosso, o diretor de teatro Zé Celso
Martinez Correia, o músico Dan Nakagawa, Djin Sganzerla (filha da diretora) e
mais diversos amigos pessoais de Helena. O personagem de Ney diz a certa
altura: “Está tudo muito replay dos anos 60 e 70; é como se não houvesse a
necessidade de criar mais nada”. Ele tem razão, mas certamente não se refere ao
cinema de Helena Ignez. Porque ele, embora revisite temas e estéticas do passado, reflete uma criação nova e com os pés no presente.
muito interessante ,a observação do crtíco!
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