sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "De Longe Te Observo" [Desde Allá]

(Desde allá, 2015), de Lorenzo Vigas




O pior pecado de um filme com pretensões naturalistas é não parecer natural, e é aí que está o grande problema de "De Longe Te Observo" [Desde Allá], discutível vencedor do Leão de Ouro de 2015. Estreia na direção do venezuelano Lorenzo Vigas, o filme é sobre um homem (Alfredo Castro) que faz pegação nas ruas de Caracas e leva garotos para seu apartamento – ali, pede para os rapazes ficarem nus, enquanto os observa e se masturba. Um dos jovens, certa vez, o agride e rouba seu apartamento; mas por algum motivo não muito claro, o garoto retorna, e os dois iniciam um estranho convívio, que transita entre a relação de “pai e filho” e um romance gay.

O estilo é cru, sem floreios nem embelezamentos; as coisas são como na vida real. A intenção é mostrar pessoas e situações de maneira naturalista (termo rotineiramente mal utilizado pela crítica, que insiste em confundir "naturalismo" com "realismo", quando, a rigor, há marcantes diferenças entre ambos no cinema), dominados por impulsos que não podem ser muito bem racionalizados. Mas o material é superescrito: dá para perceber que passou por diversos workshops e tratamentos de roteiro antes de o script chegar à forma final. Os acontecimentos não têm organicidade, e mesmo se o diretor procura o tempo todo dar a impressão de "realidade", nada parece verossímil; não se acredita por um segundo no que está na tela.

Vigas dá amostras de talento, mas o estilo dele é muito parecido com o de todo um cinema recente, sobretudo feito na América Latina (Brasil inclusive). Não se detecta absolutamente nada de pessoal em sua direção – talvez Vigas devesse prestar mais atenção aos próprios instintos em seu próximo trabalho.

Ainda assim, o filme tem qualidades, e o senso de mistério é uma das mais fortes. Mas, de novo: quando alguns mistérios são revelados, não se acredita neles – e não apenas porque não poderiam acontecer na vida real; o problema é a maneira como acontecem e, principalmente, o ponto específico do roteiro em que ocorrem. O que deveria surgir advindo de um impulso (ou de uma pulsão) parece fruto de um cálculo milimétrico do diretor/roteirista. E, além disso, mesmo os fatos mais rotineiros são apresentados de forma que deem a impressão de ter um significado "mais profundo", quando todos nós sabemos que, na vida real, simplesmente não é assim que as coisas são (há às vezes muito mais superficialidade nas ações humanas do que gostaríamos de pensar que houvesse...). 

Alfredo Castro é um grande ator – tem o rosto e o biotipo de um Al Pacino mais amansado, menos elétrico; está entre os melhores em atividade no cinema hoje em dia (o trabalho dele nos filmes de Pablo Larraín, sobretudo "Tony Manero", é formidável). Mas eu confesso que não sei muito bem como julgar a atuação dele aqui. Seu personagem não fala quase nada, mas olhando para a face de Castro sabemos que sua mente não para de raciocinar. O tempo todo, sobre tudo o que o rodeia. Só que a expressão dele permanece a mesma – um rosto sem emoção, sério, incapaz de permitir que um mísero músculo se movimente.

Para a faceta misteriosa do personagem, é um grande acerto, porque não temos a menor ideia sobre o que ele pensa e sobre como vai agir; garante o suspense. Por outro lado, torna as intenções do personagem por demais obscuras, quando não inexplicáveis – chegamos ao fim sem entender absolutamente nada sobre o papel. E, o que é pior: com uma suspeita de que, talvez, nem o ator nem o diretor soubessem também muito mais coisas sobre ele do que o público.

Mostra 2015 - Crítica: "A Floresta que se Move"

(Brasil, 2015), de Vinícius Coimbra


Ana Paula Arósio, a Lady Macbeth do filme 

Quase tudo errado. O diretor Vinícius Coimbra teve claramente as melhores intenções ao trazer “Macbeth”, de Shakespeare, para o mundo de hoje. A ideia, segundo ele, era evitar os dois extremos do cinema brasileiro recente: de um lado, as comédias de interesse 100% comercial; de outro, o cinema de autor que não faz a menor questão de agradar ao público.

Ele tem razão – o cinema brasileiro há anos tenta e não consegue fazer filmes no meio do caminho entre essas duas vertentes (algo que os americanos dominam há décadas). Mas em “A Floresta que se Move”, infelizmente, Coimbra não atinge sua meta. Pior ainda: o filme também não possui nem o perfil de um campeão de bilheteria e, menos ainda, o de agradar aos espectadores do “cinema de arte”. É um corpo estranho e perdido entre rotulações.

Ele bem que tenta entregar um produto elaborado, algo artesanal – de fato, o filme tem alguns detalhes interessantes. Os visuais, sobretudo. O filme tem cenários impessoais, algo lúgubres – são casas imensas onde moram somente duas pessoas, ou escritórios com enormes espaços vazios e janelas que remetem a crucifixos. Pelas conversas, o público é levado a crer que a história se passa no Brasil, mas as cenas externas indicam uma paisagem pouco tropical – talvez sejam uma remissão à paisagem cinzenta do norte da Grã-Bretanha, onde “Macbeth” se passa.

O filme é repleto de uma forte iconografia que remete à ideia de “horror”, mas poucas vezes os elementos realmente têm a força que se esperaria deles. Em geral, não se misturam muito bem ao “todo” do filme. Em uma cena tensa de jantar, um cordeiro mal passado é servido e, pela edição, deveria sugerir morte, sangue ou algo do gênero; no entanto, da maneira como é mostrada, a peça de carne é apenas um pedaço de cordeiro pálido e pouco apetitoso. Não há organicidade alguma nesses ícones e em quase nada do filme – o que se percebe, também, na concatenação pouco refletida entre algumas sequências, que são editadas de maneira abrupta demais.

Embora a peça de Shakespeare sirva antes de mais nada como inspiração para um longa mais autônomo, Coimbra se deixa escravizar por ela em alguns aspectos. Os personagens falam em tom impostado, em norma culta, como se estivessem em um palco elisabetano – quando, na verdade, estão em ambientes clean e ultramodernos; talvez o diretor procurasse algum efeito meio barroco com esse procedimento, mas ele consegue apenas fazer as cenas soarem ridículas. Quando o filme abandona Shakespeare e tenta ganhar vida própria, o resultado é um pouco melhor, mas aí perde a força da reflexão sobre o poder proposta pelo dramaturgo britânico e se torna um thriller corriqueiro, um pouco mais irregular que de hábito; também não funciona.

Na juventude, Ana Paula Arósio se esforçava como atriz, mas sua beleza sobre-humana eclipsava qualquer tentativa de mostrar talento (é o tipo de fardo que só as pessoas belas ao extremo trazem consigo). Agora, aos 40, ela talvez esteja ainda mais bonita, só que sua beleza amadurecida surge mais discreta, suave, permitindo que seus dotes dramáticos sejam mais perceptíveis. Mas a Lady Macbeth dela é estridente demais e ainda mais teatral que o resto do elenco.


Gabriel Braga Nunes, como o Macbeth moderno, tem a melhor atuação do filme; na TV ele raramente acerta o tom como aqui, e se o papel nunca funciona muito bem, a culpa não me parece ser dele. Como o banqueiro poderoso prestes a ser assassinado, Nelson Xavier apresenta uma fragilidade quase aflitiva – sua figura física faz um grande contraponto com o real poder de seu personagem; eu permaneço na dúvida se esse registro tem mais a enriquecer ou comprometer a força do personagem. Emiliano Queiroz tem uma pequena e divertida participação como um faxineiro, já Juliana Carneiro da Cunha merecia uma bordadeira/feiticeira mais aprimorada. O resto do elenco está até bem, levando em conta o material problemático que lhes cabe.

Mostra 2015 - Crítica: "O Abraço da Serpente"

(El Abrazo de la Serpiente, 2015), de Ciro Guerra



Drama esotérico no meio da floresta, sobre dois exploradores caucasianos que, em épocas distintas, embrenham na Amazônia colombiana atrás de uma planta raríssima e de poderes alucinógenos. O filme é ambicioso e, nos momentos mais inspirados, lembra “Apocalipse Now”, “Tabu” (de Miguel Gomes) e, em menor extensão, “Fitzcarraldo”. A narrativa é poderosa, mas complicada: vemos a viagem de um explorador alemão em 1909 paralelamente com a de um norte-americano, algumas décadas mais tarde (o filme não dá indicações muito precisas para saber exatamente qual). As duas narrativas se alternam sem muita explicação ou um espelhamento mais claro.

Mas a mensagem é evidente desde o comecinho: o filme é uma defesa da preservação e do respeito à cultura dos povos indígenas, continuamente massacrada pelo homem branco desde que ele pisou nas Américas pela primeira vez. Mas isso não significa que o diretor, o colombiano Ciro Guerra, evite as complexidades inerentes ao confronto entre culturas. Por exemplo: em uma cena, o explorador alemão quer impedir que os índios aprendam a usar sua bússola por medo de que, assim, logo se esqueçam de suas próprias técnicas seculares de orientação. Mas é o indígena mais resistente à colonização europeia quem lhe retruca: “Não se pode proibir alguém de aprender”. Preservar uma cultura não quer necessariamente dizer permanecer completamente nela fechada.

Os heróis do filme (perdoem-me pelo rompante binarista da análise) são os indígenas, sobretudo os espiritualmente desenvolvidos – os xamãs –, que orientam e dão lições de vida aos exploradores brancos (até zombam de alguns de seus comportamentos que, na mata, são totalmente ridículos). “Nunca mais fui o mesmo homem”, relata o alemão em seus escritos, referindo-se ao seu aprendizado na selva. É saudável ver esse tipo de inversão, ao menos na arte (já que, na vida, é praticamente inexiste). Mas fato é que o partidarismo de Guerra se torna por vezes cansativo – implicando, não raro, em um etnocentrismo autóctone um tanto ingênuo.


O cineasta é um excelente criador de imagens. Bem, com uma floresta exuberante como a Amazônia, difícil seria não captar belos quadros, mas a expressividade das imagens dele também se dá quando ele inclui a ação humana. Sobretudo quando os homens entram em conflito – há uma horripilante cena em que indígenas se martirizam com açoites diante de outro índio morto a flechadas. O filme é todo em um deslumbrante preto e branco, menos em breves sequências alucinógenas, quando imagens abstratas ganham cores berrantes, espetaculares – são a criação de um talentoso artista visual.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "Pardais"

(Sparrows, 2015), de Rúnar Rúnarsson


Atli Oskar Fjalarsson, em cena de "Pardais"
[[Nota do Autor: este texto foi escrito em outubro de 2015 e contém incorreções. Diferentemente do exposto no primeiro parágrafo, o filme não é em digital, mas em película 16mm - o que explica as imagens granuladas das quais tanto se reclama. Logo, o problema não é com a luz, como sugerido no parágrafo de abertura. A intenção do cineasta seria evitar embelezar demais a paisagem, por isso a escolha pelo 16mm. Mas para preservar o "calor" do momento da escrita, após uma sessão da Mostra 2015, e como a opinião do autor sobre as imagens permanece inalterada, preferiu-se manter aqui o texto original, tal como postado pela primeira vez]]

Este drama premiado no Festival de San Sebastián se passa em um vilarejo isolado no noroeste da Islândia. A paisagem é muito bonita, embora seja de uma beleza demasiado fria – tanto na temperatura como em espírito. Mas o diretor islandês Rúnar Rúnarsson evita explorar o potencial estético da natureza da região; aliás, até usa a câmera digital com um desleixo inexplicável – não nos enquadramentos, mas na luz. A luminosidade estoura em um tom amarelado que invade os objetos em cena, e há outras com imagens tão terrivelmente granuladas que trazem à memória os televisores antigos, que ficavam tomadas por “fantasmas” ao fundo quando a antena ficava fora de sintonia.

Ainda não entendi a razão dessa despreocupação com a qualidade da imagem (ou será que o problema era da sala de projeção?), até porque Rúnarsson se demonstra altamente atencioso com todo o resto de seu filme. Mesmo visualmente, as composições dos quadros são muito bem arquitetadas, com algumas imagens realmente expressivas - há inclusive uma inspiração felliniana em algumas (quando dois rapazes observam idosas saculejando seus corpos flácidos em uma aula de hidroginástica; ou quando uma mulher parruda se oferece e faz sexo com um jovenzinho bem mais franzino que ela). 

O filme é sobre a relação entre pai e filho – um pós-adolescente que precisa amadurecer na marra para cuidar do pai, um sujeito imaturo e indisciplinado. O garoto é sensível, civilizado e urbano; já é praticamente adulto, mas preservou uma voz infantil para o canto, quase a de um castrato, que ele põe para fora de vez em quando, em corais de igreja (ou sozinho, em uma espécie de autoterapia). Já o pai é um caipirão, um pouco menos rude que um ogro, mas só um pouco; sua existência se limita a esperar pelas deprimentes festas que dá em casa, na qual amplia o ventre já inflado com latas e mais latas de cerveja.

O garoto Atli Oskar Fjalarsson é sensacional. Parece um Tobey Maguire mais esguio e desajeitado, mas um Tobey com um talento que vai bem além de entortar os lábios e fazer cara de bom moço. O olhar dele nas cenas dramáticas é de uma expressividade rara. Ingvar Eggert Sigurosson, no papel do pai, também está ótimo, e eles fazem uma tocante dupla nas cenas em que os dois se esforçam na vã tentativa de estabelecer uma relação entre duas pessoas sem a menor afinidade.


O longa é conduzido com leveza e equilíbrio até quase o final, quando muda o tom; torna-se grave, desesperador. Depois de uma terrível (e magnificamente dirigida) cena de violação sexual, o rapaz precisa tomar uma atitude drástica; seu amadurecimento de fato acontece ali. Seu ato é tão inesperado e cheio de grandeza que o público entra em choque; o filme parece ter recomeçado em um novo registro, bem mais tenso. Mas logo depois, o roteiro comete um deslize fatal: faz apelo desnecessário ao drama fácil, quando a situação por si só já era muito mais do que dramática – era trágica. O filme quase implode ali, mas o que já havia sido construído até então era tão sólido que a estrutura não é abalada. E a cena final, simples ao extremo, redime qualquer delize. Rúnnarson é uma grande promessa.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "Beira-Mar"

(Brasil, 2015), de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon



Foi-se o tempo em que falar sobre a descoberta do amor gay era algo que o cinema preferia evitar. Muito pelo contrário: hoje em dia, já virou quase que um gênero isolado. Um filme sobre o tema que não tenha algum diferencial na abordagem do assunto corre o risco de parecer dolorosamente sem imaginação; ou então (o que é pior) o de cair no clichê dos filmes abertamente segmentados – essas obras descartáveis que pululam em festivais LGBT feitas exclusivamente para agradar uma certa parcela menos exigente dos frequentadores desses eventos.

“Beira-Mar” tenta trazer um “algo a mais” na narrativa da história de dois amigos adolescentes que fazem uma viagem de caráter iniciático e descobrem, ali, o amor e o sexo. Os diretores gaúchos Filipe Matzembacher e Márcio Reolon inserem uma questão transversal ao tema da sexualidade, mostrando um dos garotos às voltas com um problema familiar (seu avô morreu, e cabe a ele procurar a avó no lugar do pai, que não se dá bem com os parentes).

Os diretores evitam a ação, preferem investir na atmosfera do filme. Há muitos silêncios e diálogos que, em termos dramáticos, não levam a nada. Criam, assim, uma certa expectativa no público de quando a descoberta do sexo vai de fato acontecer – mas isso é o máximo que os diretores conseguem. De “atmosfera”, mesmo, não há nada - apenas uma enorme bolha de ar; o filme nunca “acontece”. Só bem no fim, quando os cineastas finalmente abordam o tema de frente, há algo de erótico no filme, mas é uma exploração da sexualidade um tanto banal, naquele mesmo nível dos filmes-segmentados-de-festivais-LGBT. Com o agravante de ser pasteurizado ao extremo - e um bocado mais monótono.

Matzembacher e Reolon parecem achar que o simples charme e meiguice de seus protagonistas é o suficiente para eles tocarem o filme adiante. Até funciona, mas não por muito tempo – em algumas cenas decisivas, falta intensidade dramática aos jovens atores (que não são ruins, apenas mal orientados).

O maior problema do filme, porém, é outro: por que insiste tanto no recurso de “câmera na mão”? Os diretores estão claramente em busca de um estilo, mas não há uma justificativa estética para que as imagens sejam tão tremidas. Mesmo as cenas mais clichê, do tipo “olhar para o mar e pensar na vida e no que o futuro trará”, são mais autênticas que essa tentativa de tornar o filme esteticamente desafiador. “Beira-Mar” é um filme sensível e, por vezes, até bonito. Mas é muito mais convencional que seus diretores talvez julguem que seja.

Mostra 2015 - Crítica: "Ralé"

(Brasil, 2015), de Helena Ignez


Simone Spoladore vive a Helena Ignez em versão 2015

Helena Ignez foi casada com Glauber Rocha, já namorou Júlio Bressane e foi por décadas companheira de Rogério Sganzerla. Mas em seus filmes como diretora, embora haja muito de Sganzerla e Bressane (não vejo quase nada de Glauber), ela mostra uma voz bastante pessoal, única. É uma pena que só tenha passado oficialmente à direção anos após a morte de Sganzerla, em 2004.

Em “Ralé” ela adapta a peça homônima de Maxim Gorki para o contexto social brasileiro de hoje. Mostrando personagens marginalizados, faz uma exaltação à liberdade de escolha pessoal e ao prazer; é uma ode ao hedonismo, mas sobretudo ao respeito pelo outro e pelas maneiras que cada um escolhe de ter prazer. O filme é disforme, irregular, cheio de tropeços e elementos que não se encaixam muito bem. Mas essa é a parte da pedra bruta a ser lapidada pelo espectador; há um diamante reluzente ali. É um longa recheado de grandes, lindos momentos. Um filme com alguma dureza, mas que exala ternura.

Começa com uma inserção de um trecho de “Sem essa, Aranha” (dirigido por Sganzerla e estrelado pela própria Helena, em 1970), em que Luiz Gonzaga diz: “Vivemos um período de anti-Brasil”. A situação no país mudou bastante de lá pra cá, mas é inacreditável como a fala soa atual. Helena dá uma resposta aos tempos negros atuais de ressurgimento do reacionarismo nos costumes por meio de um cinema de alta carga de poesia; a ralé que ela mostra são gays, travestis, mulheres “vadias”, pobres, indígenas, bichos-grilos e mais vários outros tipos que não se encaixam na sociedade careta e consumista do Brasil moderno. São os marginais do cinema de Sganzerla, sim, mas em versão 2015. E eles deixam claro a quem quer abafar suas vozes: não vão retroceder.

“Viva a vida!”, diz a personagem de Simone Spoladore (extraordinária!), antes de dar uma piscadela marota para a câmera. Ela encarna uma versão atualizada da personagem que Helena Ignez tantas vezes viveu nos tempos do cinema marginal, principalmente as de “O Bandido da Luz Vermelha”, “A Mulher de Todos” e os longas da fase Belair (sobretudo “Família do Barulho” e “Copacabana Mon Amour”). Deste último, aliás, a personagem Sonia Silk reaparece em cenas de arquivo – e também com a própria Helena se vestindo da personagem, em um momento especialmente bonito e comovente. Há outra forte referência ao seu próprio passado: há um filme sendo rodado dentro do filme, que se chama “A Exibicionista”, derivado de “Carnaval na Lama (ou Betty Bomba, a Exibicionista”), longa da fase Belair que se perdeu.

O elenco inclui Ney Matogrosso, o diretor de teatro Zé Celso Martinez Correia, o músico Dan Nakagawa, Djin Sganzerla (filha da diretora) e mais diversos amigos pessoais de Helena. O personagem de Ney diz a certa altura: “Está tudo muito replay dos anos 60 e 70; é como se não houvesse a necessidade de criar mais nada”. Ele tem razão, mas certamente não se refere ao cinema de Helena Ignez. Porque ele, embora revisite temas e estéticas do passado, reflete uma criação nova e com os pés no presente.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "O Filho de Saul"

(Saul Fia, 2015), de László Nemes


Géza Röhrig em "Saul Fia"

A acolhida ao filme de László Nemes tem sido quase unânime, e se pensarmos que se trata de um longa de um estreante, de fato, é bastante compreensível tanta exaltação. Nemes mostra uma assombrosa competência técnica e uma enorme segurança ao narrar a história de Saul, um judeu húngaro prisioneiro de Auschwitz forçado a trabalhar na ingrata função de conduzir outros judeus à câmara de gás. Ele se torna obcecado pela ideia de enterrar o corpo de uma criança judia morta, sendo capaz de arriscar a própria vida (e a de companheiros) em nome disso.

O filme é ousado e um tanto presunçoso – quase 100% das imagens têm como foco o rosto de Saul. O formato de tela é estreito, quase igual ao de uma TV antiga. A ideia é sugerir claustrofobia e reforçar ao máximo a noção de que o que importa é o que se passa na mente de Saul – algo que Nemes reitera o tempo todo, optando também por colocar as imagens do fundo do campo fora de foco, com pouquíssima nitidez.

Comover o público com uma história passada em um campo de concentração não é exatamente difícil, e Nemes usa isso a seu favor. Mas ele é um cineasta extremamente ardiloso e sabe angariar a simpatia do espectador por métodos ainda mais sofisticados, menos óbvios. Por exemplo: mostra com crueza um grupo de judeus se despindo antes de entrar em um pavilhão, que logo descobriremos ser uma câmara de gás; mas na hora em que o gás é aberto, o cineasta poupa o público do terrível espetáculo fúnebre. A câmera de Nemes não mostra as mortes; fica do lado de fora do recinto, captando apenas os gritos de pavor emitidos pelos confinados, em total desespero do lado de dentro. O público se sente enormemente aliviado, a ponto de se comover diante da “nobreza” de atitude tão respeitosa, elegante, por parte do cineasta; Nemes conquista seu espectador.

Ocultar o horror humano e não ceder ao sensacionalismo (que poderia gerar reações emocionais mais imediatas) é um gesto artístico inquestionavelmente ético - até louvável. Mas no caso de Nemes, percebe-se que é uma ética incomodamente exibicionista; pode até ser genuína da parte do diretor, mas é uma postura que vem acompanhada de uma enorme vaidade ao se fazer notar de modo tão "exemplar", admirável – quase dá para imaginar o diretor esperando os espectadores do lado de fora da sala, aguardando que um por um lhe agradeça por esse gesto tão humano (e se Nemes fizesse mesmo isso, alguns talvez até ajoelhassem aos seus pés). O diretor tem um indisfarçável orgulho de sua própria "arte" - e exige que o espectador reconheça sua grandeza enquanto artista; faz parte do pacto. 

Mas "O Filho de Saul" tem problemas variados. O maior deles: a trama ser toda calcada no fato de o protagonista desenvolver pela criança morta uma relação quase de paternidade. Como recurso dramático, é péssimo – não tem a menor verossimilhança e, ainda por cima, torna o protagonista indefensável, já que ele sacrifica a vida de seus colegas em Auschwitz em nome dessa sua loucura. O espectador é então induzido a interpretar essa atitude de Saul em um nível alegórico - a postura artística de Nemes é tão intimidadora que quando algo que está na tela não faz sentido, resta ao público tomar como metáfora. Mas afinal: é uma metáfora do quê? De um sentimento instintivo de proteção de todo o povo judaico? É uma leitura possível, mas é preciso uma dose farta de boa vontade para engolir essa versão sem ficar uma sensação de engasgo na garganta (Mas ao menos é uma visão "poética", e encontrar algum tipo de lirismo em um filme tão perturbador e violento é tudo o que o público mais deseja.)

Mas a direção firme e autoconfiante de Nemes contorna a maior parte dos equívocos. A falta de didatismo, por exemplo, não incomoda tanto – personagens fisicamente semelhantes entram e saem do campo sem termos ideia de quem sejam e o que representam; nesse sentido, o filme é uma bagunça, mas o diretor nos joga com tanta força naquele ambiente opressivo que só nos preocupamos com o sentido geral do que vemos. Os detalhes obscuros não importam - só nos interessa Saul e seu drama.

Na pele do protagonista, Géza Röhrig tem uma atuação bastante eficiente. Mas (oh, Deus!) como o filme seria melhor se em seu lugar estivesse um grande ator de fato... seria um nocaute! Mas é Nemes outra vez em um gesto de "grandeza", como se dissesse que não quer dilacerar corações com uma interpretação antológica de um ator excepcional, com infindáveis recursos dramáticos; o filme já estaria suficientemente impregnado de tragédia humana, não precisaria estampar isso de forma ainda mais marcada nas expressões faciais do ator principal. É sem dúvida uma opção artística válida e, de novo, louvável, digna de admiração; mas acima de tudo é Nemes novamente querendo dizer que é capaz de conseguir as sensações mais extremas mesmo poupando o espectador de toda a potencialidade visual que o cinema permite (e, obviamente, esperando os aplausos por isso).

É um pouco assustador quando um cineasta iniciante já tem tanta segurança em seu próprio potencial e tanta clareza diante do seu próprio projeto estético. Ele é uma grande promessa, mas um diretor com o qual se deve ter muito cuidado no futuro. Não se pode, afinal, menosprezar o poder de manipulação por trás de procedimentos tão a priori "não manipulativos" de um talento como o dele.

Mostra 2015 - Crítica: "O Prefeito"

(Brasil, 2015), de Bruno Safadi




O diretor Bruno Safadi apresenta uma fantasia cômica sobre um prefeito carioca com sonho de grandeza que quer separar o Rio do resto do Brasil. Talvez o tal prefeito seja apenas a projeção de um mendigo (que aparece em algumas cenas), mas isso nunca fica muito claro. A rigor, o sujeito era atendente de farmácia e começou na política por acaso, de forma levemente escusa; jamais abandonaria o hábito. Mas se ele corrompe ou é corrompido, é por uma causa maior, já que tem as melhores intenções: possui o sonho genuíno de tornar o Rio a cidade agradável e importante que tem potencial para ser. O caminho para isso é trazer a capital fluminense de volta ao seu passado glorioso – até o palácio Monroe (derrubado nos anos 70) ele planeja reconstruir.

O filme é especialmente tocante porque as aspirações do prefeito parecem um pouco com as de Safadi enquanto artista; são dois saudosistas irremediáveis. Mas o pior do cinema de Safadi está nessa sua constante e repetitiva reverência aos seus grandes mestres, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla. É como se ele se se auto-atribuísse a missão de ser o responsável por uma retomada do projeto estético da dupla nos tempos que atuavam juntos na produtora Belair, em 1970 (Safadi, aliás, já fez um documentário sobre o tema). Mas eram outros tempos... O cineasta deveria era manter o foco em sua própria estética, porque o cinema dele tem, sim, um frescor próprio. O cineasta tem facilidade de criar imagens expressivas e altamente líricas, mesmo em pequenos detalhes – em uma cena, o personagem de Nizo Neto (em formidável performance) tira uma foto em Polaroid. A imagem é congelada assim que o flash é disparado, mas a luz continua a ser expandida, em câmera lenta; é um efeito puramente sensorial, mas tem grande força poética. Há também várias outras ideias visuais muito curiosas (conversas de gabinete são mostradas em fotos em still, provavelmente em uma citação a "A Queda", de Ruy Guerra e Nelson Xavier).

Mas se os filmes de Safadi costumam ser satisfatórios em termos visuais, nem sempre o são no campo das ideias. Dão uma certa sensação de material pouco desenvolvido, resolvido na base da pressa e com algum desleixo – talvez em nome de uma estética propositadamente “despreocupada”, vai saber... Ou é possível que por desejo de passar logo a um novo projeto. Seus filmes sempre têm aquele tipo de incompletude que é o mal de muitos curtas-metragens; chega-se ao fim sem a sensação de estar diante de um produto artístico pleno. Falta algo.


Esse algo faltante certamente não é humor e nem criatividade – isso, Safadi tem de sobra. O filme é divertido, vivo, lírico. Faz parte de um projeto capitaneado por Júlio Bressane, chamado “Tela Brilhadora”, só com obras de baixíssimo custo, mas o conceito não fica claro aqui – não se compreende do que se trata nem como o filme nele se insere. Mas pouco importa: “O Prefeito”, apesar da falta de plenitude, se sustenta bem como peça autônoma.



sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "O Evento"

(Sobytie, 2015), de Sergei Loznitsa

 


Documentário sobre o "Putsch de Moscou", uma tentativa frustrada de golpe de estado na Rússia, em 1991, quando o presidente Mikhail Gorbatchev estava fora do país e líderes comunistas queriam a volta de um estado soviético nos moldes rígidos pré-década de 80. O longa é todo feito com imagens da época, registradas por anônimos, nas ruas de Leningrado (foram achadas nos arquivos soviéticos). 

O bielorrusso Sergei Loznitsa evita uma narração em off, mas monta o material de forma que seu filme tenha um leve aspecto jornalístico: há uma preocupação didática, revelada nos discursos de lideranças políticas e diversas emissões radiofônicas que surgem em áudio. Mas o principal valor do filme, como em alguns docs e curtas anteriores de Loznitsa, é a observação sócio-antropológica do povo russo naquele momento histórico. Observamos as pessoas confusas, tensas (em meio a boatos e palpites desencontrados), porém sem a feição muito pesada; havia algo de excitante e esperançoso naquele momento histórico, em que o país se despedia do pesadelo de uma ditadura comunista e sonhava com a entrada no mundo capitalista. As vestes e cabelos da população já eram muito parecidas com a do Ocidente; a União Soviética já estava no fim, faltava apenas delinear como seria a nova Rússia.

As imagens são em preto-e-branco e, em geral, têm boa qualidade de iluminação e enquadramento; certamente não foram feitas por amadores. A edição é perspicaz e procura claramente mostrar o poder da pressão popular sobre decisões históricas – eu suponho que a intenção do filme seja estimular as novas gerações a também se manifestarem nas ruas diante de questões com as quais não concordam, inclusive as do atual governo de Vladimir Putin (que, de uma certa forma, reúne o pior dos dois polos da época da Guerra Fria: tende ao totalitarismo dos comunistas e à insensibilidade social dos capitalistas).


O filme é dividido em episódios diferentes – Loznitsa os une com pequenos trechos de tela negra, com acordes de “O Lago dos Cisnes”. É o grande pecado do filme: a opção soa um tanto piegas, como se o diretor quisesse solenizar as imagens por meio do acompanhamento musical (e ademais, me parece meio forçado traçar qualquer paralelo entre a trama do balé musicado por Tchaikovsky com as questões por que passava a Rússia daquele momento). Mas se não figura entre os melhores do cineasta, é um documentário de grande interesse.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O Top 10 tupiniquim

Recentemente, todos os membros da Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de Cinema) foram convidados a elaborar uma seleção pessoal do "Top 25" dos melhores filmes do cinema nacional. Como membro da entidade, elaborei a minha lista... e que tarefa difícil! É nessas horas que vemos como nosso cinema produziu coisas incríveis (se não me engano, foi Paulo Francis que escreveu certa vez que o Brasil é um país prolífico em várias artes, mas não no cinema; suponho que ele estava errado - ou, no mínimo, não foi justo com nossa filmografia). 

A lista inteira não vou publicar agora, mas destaco aqui o que seria meu "Top 10" (detalhe: o ranking é altamente variável, mas na hora de escrever saiu assim):

Odete Lara e Norma Bengell, em "Noite Vazia"

1- Noite Vazia (W.H. Khouri, 1964)

2- Sem Essa, Aranha (R. Sganzerla, 1970)

3- Terra em Transe (G. Rocha, 1967)

4- Matou a Família e Foi ao Cinema (J. Bressane, 1969)

5- Lúcia McCartney, uma Garota de Programa (D. Neves, 1971)

6- Pixote, a Lei do Mais Fraco (H. Babenco, 1981)

7- As Amorosas (W.H. Khouri, 1969)

8- São Paulo S/A (L.S. Person, 1965)

9- Cabra Marcado para Morrer (E. Coutinho, 1984)

10- Cuidado, Madame (J. Bressane, 1970)