quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Crítica: "Os Oito Odiados"

(The Hateful Eight, 2015), de Quentin Tarantino


Kurt Russell e Samuel L.Jackson em "Os Oito Odiados"

[ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS]
Quentin Tarantino não gosta de falar de política – a ponto de, aliás, proibir jornalistas de lhe perguntarem sobre o assunto em entrevistas. Vendo os seus filmes, dá para entender o motivo: definitivamente não é o forte dele. Ao longo da carreira, por anos o cineasta preferiu evitar uma abordagem mais politizada sobre seus temas preferidos (a vingança, a violência, as relações de poder). Mas recentemente, até pelas constantes críticas a uma certa alienação (talvez até "frivolidade") de sua filmografia, Tarantino tem preferido incluir aspectos mais engajados em seus longas.

A proposta vem sendo feita desde "Bastardos Inglórios", com resultados nem sempre satisfatórios. Em seu penúltimo filme, por exemplo, "Django Livre", a ideia era criar um protagonista que fosse um grande líder negro, precursor da luta pelos direitos dos afrodescendentes – mas em seu banho de sangue revanchista, o "herói" vivido por Jamie Foxx nada mais era do que um monumento vivo ao individualismo (conceito tão caro à sociedade americana – a mesma que Tarantino pretendia criticar no longa). Em "Os Oito Odiados", o diretor volta a mostrar uma pretensão mais crítica, engajada: quer apresentar ao público um retrato da podridão da sociedade estadunidense a partir de sua gênese.

Tarantino volta ao universo do faroeste para falar dos EUA atuais. Fez um filme em grande escala, filmado em bitola de 70mm e com seu usual baú repleto de estratégias cinematográficas (das citações a outros filmes aos irresistíveis e criativos travellings). O filme, curiosamente, se passa a maior parte do tempo em ambientes fechados, claustrofóbicos – é um "western huis clos", digamos assim. Os personagens são forçados por uma nevasca a ficar presos em uma taberna isolada, no Estado do Wyoming. São facilmente reconhecíveis como elementos da sociedade americana, alguns deles formadores daquela nação: há um inglês, um negro, uma mulher, um mexicano, um mercenário, um militar ultraconservador, um xerife despreparado e alguns outros proscritos.

Ninguém confia em ninguém, e todos os personagens centrais são odiosos, cruéis e assassinos. Em alguns momentos, uns se mostram mais nobres do que outros – logo se verá, porém, que seu rompante de "nobreza" é apenas uma forma de justificar o crime que pretende cometer a seguir. Se o filme tem um herói, é o caçador de recompensas vivido por Samuel L. Jackson – ele é um ex-militar que trocou correspondências com Abraham Lincoln durante a Guerra de Secessão. Mas também ele comete atrocidades; é talvez um "herói", mas de modo algum um "mocinho".

A ideia é ótima: mostrar um bando de pessoas altamente condenáveis brigando entre si e se matando mutuamente, até não sobrar nenhum; no final, na taberna ensanguentada, restam apenas os ecos das belas palavras de  Lincoln sobre o árduo caminho que a sociedade americana tinha pela frente se quisesse se tornar uma nação justa. Mas o problema de um diretor como Tarantino querer incluir um final moralizante em seu filme é que seu estilo vai no sentido oposto ao que suas ideias pregam. O roteiro indica que tudo não passa de uma enorme ironia, que Tarantino desta vez faz uso de uma violência extrema para tecer comentários sobre uma sociedade que é violenta ao extremo. Mas basta ver a câmera de Tarantino em ação para compreender que a truculência espalhada pelo longa tem outra origem. 

Antigamente, Tarantino assumia sem pudores que usava e abusava da violência em seus filmes porque via beleza e fascínio na brutalidade. Era muito criticado, mas jamais se deixou coagir pelos detratores. Com o tempo, parece ter se tornado cada vez mais sensível às cobranças dessa natureza, e agora ele dá a impressão de constantemente procurar desculpas para justificar (legitimar?) a violência de seus filmes.

No geral, os derramamentos de sangue tarantinescos não são atos de violência crua e/ou realista, mas de violência estilizada; por isso causam no público muito mais admiração do que repulsa. Pode-se até questionar o quanto eles têm de gratuito, chocante ou perverso, mas o fato é que as cenas sangrentas não têm como função primordial serem agressivas ou repugnantes; são puro espetáculo. Um espetáculo talvez perverso demais, mas são acima de tudo o trabalho de um grande esteta – obra do grande "poeta da brutalidade" do cinema moderno. Os melhores filmes de Tarantino são aqueles em que ele assume a violência como parte do "show", sem arranjar desculpas esfarrapadas para empregá-la.

critica Oito Odiados
Jennifer Jason Leigh: violência com fins cômicos

Mas em “Os Oito Odiados”, ele quer fazer crer que utiliza a violência de forma a denunciar a truculência do mundo real. Mas a câmera dele na maior parte das vezes deixa entrever um prazer de natureza bem mais sádica. E o que é pior: agora, muitas vezes ele utiliza a violência para fins meramente cômicos – sobretudo no que diz respeito à personagem de Jennifer Jason Leigh, na pele de uma bandida condenada à forca. Ela já surge em cena com um olho roxo e será até o último frame um verdadeiro saco de pancadas. Entre bruscas cotoveladas, jatos de vômito no rosto e golpes que lhe arrancam os dentes, as violências que ela sofre constantemente no filme são vendidas como uma denúncia da opressão contra a mulher, naquela época e hoje. Mas da maneira como estão na tela, são usadas como gags, como piadas mecânicas para arrancar risos – são qualquer coisa, menos uma delação.

Quando Tarantino enterrou Uma Thurman viva em "Kill Bill – Vol. 2", também havia uma certa comicidade na cena, mas estava claro o tempo inteiro que Uma era a heroína e que estava sendo injustiçada; nos termos de “Oito Odiados”, quando Leigh apanha, imediatamente em seguida ela se comporta de forma a justificar a agressão que sofreu. Tem um olhar cínico, falas vulgares e, mais tarde na trama, mostra-se uma bandida da pior espécie. Há uma recorrente justificativa para a sua agressão; o público pode até odiar o personagem de Kurt Russell e sua extrema misoginia, mas é induzido a pensar que ele tinha alguma razão em seus espancamentos (mesmo o pior dos bandidos não mereceria um tratamento tão horrível).

Quando o outro grande poeta da violência nas telas, Sam Peckinpah, mostrava Steve McQueen esbofeteando Ali MacGraw, ele não condenava a brutalidade desse ato; ao contrário, é possível até que se divertisse com a cena (e concordasse que Ali merecesse mesmo uns tabefes). Mas também não fazia disso uma cena de comédia. E muito menos incluía tal imagem para denunciar a agressão de alguns homens a suas namoradas; Peckinpah, enquanto personalidade artística, era brutal e misógino – um talentosíssimo artista que criava movido por sua enorme atração pela violência. Tarantino é da mesma linhagem artística, mas parece refutar se assumir como tal. Oras, basta assistir a seus filmes: a quem ele quer enganar? Não quero de forma alguma dizer aqui que o indivíduo Quentin Tarantino tenha uma índole ruim, ou que seja um sujeito misógino, racista ou sanguinário na vida real; mas enquanto personalidade artística, também ele é inquestionavelmente misógino, racista e sanguinário – seus filmes estão aí e não me deixam mentir. (Ao menos Peckinpah não pretendia enganar o espectador.)

A cena final, com os dois homens moribundos lendo a carta humanista de Lincoln, enquanto enforcam a bandida, possivelmente foi escrita para soar como uma enorme ironia. Mas mais uma vez, da forma como Tarantino encena, não é; parece muito justificável a condenação da personagem. Tarantino estabelece um jogo muito perigoso, com o qual ele não tem habilidade o suficiente para lidar. Seu cinema anda muito no fio da navalha para encerrar um filme com uma situação tão ambígua.

A personagem de Leigh por vários momentos quase consegue nossa piedade. Mas não por causa de Tarantino, mas pela performance da atriz, que é excelente. Samuel L. Jackson e Kurt Russell também têm momentos notáveis, assim como Channing Tatum, no pouco que aparece. Por outro lado, Tim Roth, Michael Madsen e sobretudo Demián Bichir não parecem ter encontrado o tom de seus personagens; são caracterizações frágeis, pouco marcantes. A trilha musical do gênio Ennio Morricone é eficiente, embora também não seja das mais memoráveis.


O roteiro é o melhor escrito por Tarantino em anos, embora às vezes deixe muito evidente que as idas e vindas temporais parecem mais formas de disfarçar falhas que um ato de irreverência com as regras clássicas de script. Embora alguns diálogos sejam longos demais, o filme é fluido, parece ter menos minutagem que as quase três horas de duração. Há um momento especialmente poderoso: a cena em que Jackson relata como teria matado o filho do militar conservador (Bruce Dern), forçando-o antes a fazer uma felação – possivelmente, algo que nunca aconteceu de fato, mas é o único momento de "vingança" do filme que realmente funciona e tem real ressonância política. De resto, é mais do mesmo, aquele Quentin Tarantino de sempre, com tudo o que isso possui de bom e de ruim. 

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Crítica consagra "Adeus à Linguagem"

O cão Roxy, a melhor coisa de "Adeus à Linguagem"

A Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine) elegeu "Adeus à Linguagem", do veterano Jean-Luc Godard, o melhor filme estrangeiro de 2015. "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert, foi escolhido o melhor longa nacional. Curioso notar que, há algumas semanas, outra associação de críticos - a do Rio de Janeiro - havia elegido "Mad Max: Estrada da Fúria" o melhor estrangeiro do ano. A rigor, isso poderia dizer muito sobre as duas entidades - não fosse o fato de que, em ambas, as escolhas passaram longe da unanimidade.

Sou membro da Abraccine e participei da eleição. Mas fui voto vencido (meu melhor estrangeiro, como já disse por aqui neste link, foi o "O Clube", de Pablo Larraín; o voto para o nacional foi para "Sangue Azul", de Lírio Ferreira, um dos filmes mais injustamente menosprezados do ano). Mas respeito a decisão da maioria dos votantes, sem problema algum.

O filme de Godard estreou mundialmente no ano passado, no Festival de Cannes. Eu estava na primeira sessão para a imprensa e pude observar como os críticos deixaram a sala: a maior parte não sabia muito bem o que dizer. Em parte porque é mesmo um filme difícil de comentar; em parte pela emoção de terem acabado de participar de um evento histórico: a avant-première do novo filme do maior cineasta vivo. Ao meu lado, na saída, estava o francês Serge Kaganski, da revista "Les Inrocks" (um dos críticos mais interessantes de se ler, diga-se de passagem). Ele parecia algo atordoado, tentava andar rápido - infelizmente para ele, porém, uma repórter de TV, dessas que esperam o fim das sessões para para saber em primeira mão a opinião da crítica, o elegeu para fazer a impertinente pergunta: "O que achou do filme?". Kaganski mal conseguiu formular uma frase - titubeou, foi monossilábico, disse alguma bobagem no estilo: "É um Godard, ora bolas!" (mal sabia ele que, ali, estava fazendo a melhor síntese possível sobre o longa).

Dias depois, Kaganski parecia bem mais animado em sua crítica sobre o filme. Mas mesmo em seu texto, com suas impressões já mais esquematizadas, suas ideias eram vagas. O que, aliás, tem sido uma característica generalizada da crítica ao tentar problematizar e/ou comentar o filme (e todo o cinema mais recente do diretor, aliás). Eu já li bastante sobre "Adeus à Linguagem", mas até o momento ninguém conseguiu me persuadir de que o filme é tão interessante ou maravilhoso como eles juram que consideram ser. Não duvido de forma alguma que esses meus colegas adoram verdadeiramente o longa e veem nele predicados suficientes a ponto de escolhê-lo o melhor do ano. Mas os argumentos (principalmente os ligados ao uso do 3D) me parecem frágeis, às vezes forçados - e sobretudo pouco convincentes. Pesquisas sobre a imagem Godard já faz há décadas, não há nada de específico em "Adeus" que o torne revolucionário ou melhor que as que ele já fez antes. O filme certamente tem algum encanto oculto que os admiradores ainda não conseguiram detectar com muita clareza.

Minha visão pessoal? Sou quase indiferente ao filme. Logo depois de sair da sessão em Cannes, eu escrevi (rapidamente) minhas impressões, para o site "Brasil Post". Reproduzo abaixo o que escrevi - e que permanece minha visão sobre o filme.

« Godard, que vive recluso em sua casa, na Suíça, não apareceu para a promoção de Adieu au Langage, seu primeiro longa em 3D. No lugar, mandou uma estranhíssima carta-filme (afinal, é Godard...) de agradecimento ao festival pelo convite.

"Adieu" tem pouco mais de uma hora de duração. O "filme", digamos assim, é uma espécie de colagem de cenas distintas e aparentemente aleatórias. O material de imprensa traz uma descrição do que seria algo próximo de uma "trama", mas é perda de tempo reproduzi-lo aqui; simplesmente não tem relação com o que está no filme. O que se pode dizer que mais se aproxima de uma “história” é que um homem e uma mulher aparecem juntos em diversas cenas conversando sobre assuntos filosóficos variados. Ao mesmo tempo, imagens bastante diversas, que mostram desde trechos de filmes antigos a cenas de florestas (com cores digitalmente alteradas) aparecem com certa recorrência na tela. Um simpático cachorro também é um "personagem" que volta e meia é alvo da câmera; ele é a grande "estrela" do filme e tem o primeiro nome a aparecer dos créditos: Roxy Miéville (certamente é o cão de Godard e sua mulher, a também cineasta Anne-Marie Miéville).

O título do filme dá uma pista sobre do que esse arsenal imagético se trata: talvez da falência da linguagem no mundo atual, em que ninguém consegue se entender direito. Mas mesmo essa ideia é um tanto imprecisa, como é impreciso o filme de Godard, que não é narrativo; despeja sobre o público uma profusão de frases que parecem desconexas. Grande parte delas são inteligentes e até engraçadas – algumas verdadeiramente promissoras. "Em breve, todos precisaremos de intérpretes para as palavras que saem da nossa própria boca", diz um dos personagens. Frases como essa poderiam render, se não um filme inteiro, ao menos uma excelente cena inteira. Mas Godard talvez esteja cansado demais (está com 83 anos) para desenvolver com alguma profundidade as ideias que espalha pelo seu filme; nada vai além do campo da citação – o filme é altamente frustrante.

Às vezes, achamos que o Godard dos tempos áureos está de volta. Em uma cena, um personagem vai ao vaso sanitário e diz: "Sabe O Pensador, de Rodin? Eis a imagem acabada da igualdade entre os homens". Nada mais Godard dos anos 60... Mas naquela época, o diretor tinha ideias brilhantes e as explorava em obras com princípio, meio e fim. Por isso se tornou o grande nome do cinema francês daquela década, revolucionando toda uma arte. Mas após "Le Gai Savoir" (1968), o diretor foi perdendo cada vez mais interesse pelo cinema narrativo, voltando-se principalmente para a questão da imagem. E, posteriormente, da linguagem cinematográfica. Seus filmes foram ficando cada vez mais abstratos, experimentais a tal ponto que, ironia das ironias, talvez tenham até deixado de ser "cinema". Estão mais próximos da videoarte, e teria sido mais apropriado que fosse escolhido para estrear em uma bienal de artes que para concorrer a prêmios no Festival de Cannes.»

  

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Melhores filmes de 2015

Cena do longa chileno "O Clube"

Em termos de cinema (mas também só nisso), 2015 me pareceu um ano melhor do que 2014. Meu top 10 está cheio de filmes que eu adoro e tenho orgulho de poder mencionar. O campeão, "O Clube", eu vi no Festival de Berlim e fiquei bastante impressionado. Há alguns meses, dei uma entrevista para o canal de TV Arte 1 sobre o filme (basta clicar aqui para acessar o link do vídeo). Eis a minha lista: 

1. "O Clube" (Pablo Larraín)
2. "O Pequeno Quinquin" (Bruno Dumont)
3. "Nostalgia da Luz" (Patricio Guzmán)
4. "Leviatã" (Andrei Zvyasintsev)
5. "Dois Dias, uma Noite" (Jean-Pierre e Luc Dardenne)
6. "Beasts of No Nation" (Cary Fukunaga)
7. "Pasolini" (Abel Ferrara)
8. "Taxi Teerã" (Jafar Panahi)
9. "Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência" (Roy Andersson)
10. "Whiplash" (Damien Chazelle)

Menções honrosas para:
"Mapas para as Estrelas" (David Cronenberg), "Mia Madre" (Nanni Moretti), "Foxcatcher" (Bennett Miller), "Três Corações" (Benoît Jacquot) e "Sangue Azul" (Lírio Ferreira)

O Top 3 da desonra (os piores filme do ano):
"Batguano" (Tavinho Teixeira)
"Pixels" (Chris Columbus)
"Caminhos da Floresta" (Rob Marshall)

sábado, 12 de dezembro de 2015

Crítica: "O Clã"

(El Clan, 2015), de Pablo Trapero


Juan Pedro Lanzani e Guillermo Francella em "O Clã"

Pablo Trapero é o diretor de um dos melhores filmes já feitos na Argentina: “Do Outro Lado da Lei” (El Bonaerense, de 2002), sobre a corrupção da polícia de Buenos Aires. É um cineasta de um talento inegável, e em seu último filme, “O Clã”, é possível que esteja no auge de seus recursos fílmicos. A narrativa é de uma grande fluidez, capaz de envolver o público com extrema facilidade – não à toa, o longa tornou-se um enorme fenômeno popular: bateu “Relatos Selvagens” em bilheteria e monopolizou os debates cinematográficos entre nossos hermanos em 2015.

É uma história verdadeira sobre eventos envolvendo a família Puccio, na Argentina nos anos 80, quando o país ainda vivia sob uma ditadura militar. O grupo é formado por um homem, sua mulher, dois filhos (há um terceiro que mora no exterior) e duas filhas, uma família de classe média aparentemente comum, do tipo que jamais levantaria suspeita de nenhuma natureza nos vizinhos. Mas, na verdade, esse clã tão simpático tem um lado bastante tenebroso: é especializado em sequestrar milionários para embolsar o resgate.

O pai diz: “Os ricos são a grande causa da infelicidade do resto deste país”. Ele até tem razão, mas uma pessoa precisaria ser um tanto ingênua para realmente comprar esse discurso pretensamente “politizado” como sendo a real motivação por trás do atos criminosos dos Puccio; claramente, é dinheiro o que lhes interessa.

O roteiro não esconde nada do espectador: a família pode ser encantadora, mas de forma alguma seus membros são pessoas boas. Bem, ao menos é o que o roteiro deixa claro... O problema é que Trapero tem uma vontade desmesurada de dar ao material uma qualidade pop, com uma câmera alucinada, fazendo movimentos de câmera longos e complexos, e uma trilha abarrotada de excelente música dos anos 70 e 80. Como Tarantino, ele quer proporcionar ao público um enorme prazer cinematográfico (e de fato consegue), mas o tema é pesado demais para ser tratado de forma a ser tão palatável. Assim, o diretor cai em uma armadilha: passa automaticamente (ainda que a contragosto) a forçar o público a estabelecer uma forte conexão com seus personagens abomináveis. Com o auxílio dessa estetização pop, o espectador é induzido a muitas vezes tentar entender a humanidade dos personagens e perdoá-los por seus crimes - o que é inviável, dada a gravidade e violência dos atos.

Não no caso do pai, que é uma figura impossível de defender, principalmente nos momentos finais, quando se torna caricaturalmente um monstro. Mas Trapero suaviza tudo em torno do filho mais velho, que é o protagonista da trama. Não que ele seja um santo – o filme o mostra como conivente com as atrocidades cometidas por seu pai. Mas mesmo que o roteiro originalmente pretendesse que o público mantivesse um distanciamento e que soubesse que ele tampouco é lá flor que se cheire, a maneira algo romântica como Trapero o enfoca tende a gerar uma certa simpatia pelo personagem, como se ele não fizesse parte de uma terrível organização criminosa. Ele é antes apresentado como uma vítima, um pobre coitado por ter nascido naquele meio familiar nocivo e não saber como dele fugir. Ao final, tem-se a impressão de que ele, espantosamente, seja uma espécie de herói.  

Eu digo que Trapero faz isso a contragosto porque suponho que ele não tivesse a intenção original de nos fazer ter identificação e muito menos perdoar um criminoso horrível, que ajudou a sequestrar e a torturar pessoas. Mas se isso for realmente o propósito do diretor, aí o filme é mais do que indefensável: é também repulsivo.

Em “O Clã”, o diretor, em sua ânsia formal de fazer um filme palatável, de sucesso, acaba sacrificando muitas de suas ideias em nome do estilo. Lamentavelmente, Trapero não apenas dá a impressão de que está dando muita atenção ao sucesso de bilheteria como também nos mostra uma das piores coisas que podem acontecer a um grande artista: parece estar perdendo sua voz pessoal. Espera-se que ele retorne a projetos menos afoitos e que não priorize tanto a adesão do público em detrimento de sua visão autoral. 

domingo, 6 de dezembro de 2015

Crítica: "À Beira Mar"

(By the Sea, 2015), de Angelina Jolie Pitt


Brad Pitt e Angelina Jolie Pitt

A energia de Angelina Jolie é algo admirável. Entre filmes (ruins) como atriz, a luta por causas humanitárias e viagens ao Terceiro Mundo atrás de um novo filho adotivo, ela ainda arranja tempo para ser cineasta. E não faz qualquer tipo de filme, não: entrega-se a projetos ambiciosos, esteticamente arrojados, bem-cuidados.

Como atriz, porém, ela parece cada vez mais cansada, à beira do esgotamento - não foi à toa que andou dizendo que em breve vai abandonar o ofício. Mas essa exaustão vem a calhar em sua nova personagem, em “À Beira Mar”, o terceiro longa dirigido por ela (que, agora, assina Angelina Jolie Pitt). Ela vive uma mulher angustiada, contida, que passa grande parte do tempo deitada em uma cama ou uma chaise longue, olhando para o nada.

A trama marca o reencontro nas telas entre ela e o marido Brad, o senhor e a senhora Smith que, há dez anos, se encontraram em um set e jamais se separaram. A dupla se apaixonou e virou o casal mais invejado e poderoso de Hollywood, posto que jamais foi ameaçado desde então.

Mas “Sr. e Sra. Smith” era uma comédia de ação, e “À Beira Mar” é quase inanimado e não tem o menor humor. Mostra um casal em crise, que viaja a uma cidade litorânea para reavivar o relacionamento. Brad é um escritor beberrão com bloqueio criativo, e Angelina é sua mulher depressiva, que abusa dos remédios para dormir para esquecer um trauma do passado. No hotel, a dupla só começa a se entender quando passa a observar por um buraco na parede o comportamento de um jovem casal no quarto ao lado (Mélanie Laurent e Melvil Poupaud), com o qual vai se envolver em estranhos jogos sexuais.

A época parece ser fim dos anos 60, talvez começo dos 70. O local, tudo indica, é algum balneário da França mediterrânea, embora as filmagens tenham sido feitas na ilha de Malta. Visualmente, o filme é acachapante – e seria difícil que não fosse, já que as locações são paradisíacas, e quando a câmera não se debruça sobre elas, foca em Angelina ou em Brad, que talvez hoje estejam ainda mais belos que há uma década. Mas a beleza do filme não vem tanto assim dos objetos filmados: é obra da direção de fotografia de Christian Berger, em iluminação suave e em tons claros, com predominância do branco e variações de bege – menos o mar, desavergonhadamente azul, entre o turquesa e o petróleo. São imagens lindas, por certo, mas de uma impessoalidade desconcertante – têm uma beleza fria, pasteurizada e pouco natural. Os atores estão sempre fazendo poses e/ou com a cara amarrada – com as falas abafadas, o filme poderia passar por um vídeo publicitário conceitual sobre o tédio, produzido por alguma grife fashion.

Não é um filme sem alma, no entanto. Mas é um longa de espírito confuso, que não se decide entre o “ennui” burguês ao estilo de Antonioni, a perversidade aos moldes de “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?” ou a paixão intensa à la Wong Kar Wai. Jolie é uma cineasta de talento – fica claro que ela tem cultura cinematográfica e instinto visual. O problema é que as intenções dela não caminham no mesmo rumo que seu estilo: talvez fossem sérias demais para onde sua afetação enquanto cineasta a conduz. Ela dirige tudo com um bom gosto tão acentuado e com tanta classe que, chega um ponto, isso começa a agir contra o filme. A agonia estetizada começa a ficar pesada e equivocadamente pedante - e um tanto cafona. O filme não chega a ser camp, mas seria melhor se fosse; assim, ao menos, seria divertido.

Não é; é tedioso. Jolie passa o filme quase todo enfurnada em seu quarto de hotel, narcotizada por remédios, mas sempre com o rosto impecavelmente desinchado e as roupas de seda sem um mínimo vinco. A intenção era transmitir a ideia de que a depressão pode atingir mesmo a mais deslumbrante das mulheres, mas por muito pouco o filme não incorre no extremo oposto: o da glamourização do sofrimento. Só escapa a essa armadilha porque a fragilidade de Jolie chama mais a atenção que seu glamour. Ela sequer atua; tem basicamente o mesmo semblante, e nas cenas em que precisa se alterar, enlouquecer, não tem vigor o suficiente para isso. Até combina com a personagem, mas essa apatia é claramente algo involuntário, fruto de uma incapacidade; Jolie de fato precisa de descanso. Pitt, por outro lado, está excelente - com os anos, seu rosto ganhou nuances que antes ele não tinha. Ele consegue hoje uma intensidade que o Russell Crowe de 15 anos atrás conseguia, e isso é tudo o que um ator poderia desejar. Mas o personagem dele tem limitações, não escapa muito do clichê do escritor frustrado e alcoólatra.

O filme inteiro, aliás, embora tenha elementos de complexidade, nunca os explora como deveria; termina frustrantemente banal. A ideia de se ter a dupla mais bela do planeta sem interesse mútuo, mais empenhada em observar o casal do quarto ao lado, é o que o filme tem de mais instigante. Mas parece daquelas ideias melhores no papel do que na tela - Jolie não consegue extrair dessa situação o humor e o mistério que ela potencialmente possui; tudo funciona com resultados apenas moderados (por vários momentos, o público se pega pensando que seria melhor que o casal protagonista fosse o vizinho). O filme se arrasta por muitos minutos a mais do que deveria, mas não chega a ser um suplício de assistir, muito possivelmente pelo charme dos quatro atores. Como diretora, Jolie não é um caso perdido, de modo algum. Mas precisa alinhavar um pouco melhor o modo como fará transição de seus roteiros para a tela. E, de preferência, poupando-se de aparecer nela.


sábado, 28 de novembro de 2015

Crítica: "Dois Amigos"

(Les Deux amis, 2015), de Louis Garrel


Louis Garrel na coletiva de imprensa, em SP

Louis Garrel, o maior galã francês do cinema atual, está no Brasil. Veio promover “Dois Amigos”, sua estreia como diretor de longas. Na entrevista coletiva, em uma sala de cinema paulistana, o ator fumou (“os acontecimentos recentes de Paris me fizeram voltar ao cigarro”, deu como desculpa) e, por duas vezes, se mostrou irritado. Primeiro, vociferou contra uma desagradável microfonia no recinto: “Com esse barulho fica impossível continuar”. Depois, mostrou insatisfação com erros cometidos pela tradutora (às vezes ele mesmo a corrigia, fazendo aquela cara de impaciência que é uma especialidade tão gaulesa quanto o croissant e o ratatouille).

No geral, porém, foi bastante simpático – o que é até uma surpresa, já que a persona do ator representa a quintessência do que “ser francês” significa para nós: um sujeito mal humorado, blasé e excessivamente intelectualizado. Desse trio, ele só demonstrou a terceira característica – entre citações a nomes como Godard, Hitchcock e Desplechin, o ator/cineasta provou ser um jovem inteligente, culto e que conhece muito bem seu métier. 

Mas era outro predicado francês o que ele mais reforçava: o charme. Sorria, respondia às questões com um humor fino e, por vezes, com modéstia, usando autoironias levemente falsas do tipo: “Quem me acha um sex symbol é porque não me viu quando acordo”. E, é claro: ficava de perfil, como que ciente de ser este seu ângulo mais fotogênico.

Também em seu filme, Garrel surge de lado sempre que possível, exibindo toda a galicidade de seu nariz. Aos 32 anos, parece no auge da segurança e também do magnetismo; é inegavelmente um grande astro, na mesma linhagem que Yves Montand e Alain Delon. Parece também mais sólido como ator. E como cineasta, faz uma estreia surpreendentemente boa.

 O roteiro parte de uma ideia simples e até meio sem originalidade: dois amigos que se apaixonam pela mesma mulher. Mas o filme está longe de ser convencional. Na trama, o desajustado Clément (Vincent Macaigne) conhece Mona (a bela iraniana Golshifteh Farahani), presidiária em liberdade condicional. No dia do encontro, a moça está excessivamente alcoolizada e se envolve com ele antes por solidão que por qualquer outro motivo. Mas Clément se apaixona – enlouquecidamente, chegando às raias da obsessão. Ao perceber o desinteresse de Mona, ele pede ajuda a seu melhor amigo, Abel (Garrel), que acabará também apaixonado pela jovem (e ela por ele). Está formado um triângulo, que manterá um convívio até o final oscilando instantes de ternura intensa e autodestruição; é o tipo de trio que volta e meia se desfaz – sendo que, na cena seguinte, estão lá os três, unidos novamente, prestes a se magoar de novo, em um ciclo não muito saudável.

O tom geral, no entanto, não é o de peso ou de tragédia; há sempre afetuosidade e humor, embora o filme propositadamente incorra em alterações de tom o tempo todo – da comédia passa ao melodrama, não menosprezando o suspense e, por vezes, um realismo mais cru. Não se prende a um só gênero.

Garrel costuma ser muito associado à França do final dos anos 60, seja por ser filho de um cineasta daquela época (Philippe Garrel, expoente da primeira geração pós-Nouvelle Vague), seja por ter estrelado dois filmes emblemáticos sobre o Maio de 68: "Os Sonhadores" e "Amantes Constantes". Tem também o visual e um certo atrevimento na postura que remetem diretamente à juventude parisiense daquele período. Mas seu filme não se preocupa tanto com questões políticas e, muito menos, com uma estética rígida como a do pai. Garrel parece mais influenciado pelos cineastas com quem já trabalhou, sobretudo Christophe Honoré, coautor do roteiro. A diferença é que, aqui, o aluno se sai muito melhor que o mestre - nunca na carreira Honoré teve tanto domínio sobre um filme como Garrel demonstra aqui (e Honoré, para seu próprio azar, nunca escreveu um roteiro tão bom para si mesmo).

Os que buscam ilações fáceis poderão pensar em uma provável influência nouvelle vaguista, de “Jules e Jim”, por conta do tema do "triângulo", mas a referência que deveriam buscar definitivamente não é essa. Há algo, sim, de Truffaut no filme, bem mais que do Garrel pai  (o humor elegante, um certo fetiche por nucas, a falta de capacidade masculina de lidar com a paixão), mas "Jules e Jim" era essencialmente uma trama sobre uma relação a três; “Dois Amigos” é, acima de tudo, sobre a amizade entre dois homens. (O título do filme já diz tudo, né?)

Curiosamente, Garrel diz que se inspirou em comédias italianas à la Monicelli, que mostram personagens cheios de defeitos, mas ainda assim adoráveis, carismáticos. Mas seus protagonistas parecem muito mais os (anti)heróis desajustados que a própria França tanto mostrou nas décadas de 70 e 80, geralmente interpretados por Gerard Depardieu e Patrick Dewaere (às vezes no mesmo filme, como em “Os Corações Loucos”). São personagens cativantes, até certo ponto dignos de piedade, mas claramente desequilibrados; são párias sociais.


O trio de atores é eficaz, mas Vincent Macaigne leva a pior por conta das deficiências de seu personagem. Clément começa como um clown passional, mas termina como um verdadeiro imbecil, apatetado em excesso, muitas vezes em nome de um tipo de comicidade que seria melhor o filme evitar. A idiotização do personagem não reforça sua fragilidade emocional, apenas o torna chato. Já o personagem de Garrel é bem mais complexo – e é também o mais são do trio; sente-se culpado por se apaixonar por Mona, aceita as grosserias do amigo por piedade e tem noção da responsabilidade que possui sobre uma criatura tão indefesa como Clément. Mona também é uma personagem rica: não é nenhuma mocinha, do tipo que quer se endireitar após os erros do passado. Ainda não tem maturidade para isso – é uma mulher carnal, chegada a uma “farra” e a viver loucamente; não está pronta para virar adulta por completo. 

Há, porém, um efeito colateral nesse mau desenvolvimento do personagem Clément: ele surge como um estorvo, e os outros dois, automaticamente, ganham algo de etéreo. O filme, mesmo sem ter essa intenção, acaba tocando em um tema transversal que possivelmente não estava previsto no roteiro: o da força da beleza e do magnetismo pessoal nos relacionamentos humanos. Não se trata da defesa ou de uma ode ao que é belo em detrimento do que não é, mas sim da constatação involuntária de que, por menos materialista que se seja, o aspecto físico e o charme contam muito mais na definição dos relacionamentos afetivos do que gostaríamos de imaginar. Mona é linda, e Abel, idem; quando se olham, sai faísca, algo que nem é ameaçado nas trocas de olhares da moça com o patético Clément. Há uma cena em que os três amigos estão em um restaurante, mas a tensão sexual entre Abel e Mona é tão forte que a figura de Clément é eclipsada, mesmo ele sendo o personagem mais caricato do trio. Torna-se carta fora do baralho quando o belo e a bela se encontram; sua sobrevivência no trio só se dá por meio de manipulação sentimental, e isso fica claro. Esse tipo de abordagem é rara no cinema, talvez porque não é fácil ver isso jogado nas nossas caras...

Garrel já dirigiu anteriormente três curtas. Já vi um deles, "Le Petit Tailleur", que me pareceu interessante, mas sem muita personalidade. Ele possivelmente estava guardando o melhor de si para a sua estreia nos longas. É um excelente primeiro filme. 

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

"Limite" encabeça lista dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos


A cada dez anos, a revista britânica “Sight & Sound”, em parceria com o British Film Institute (BFI), reúne opiniões de críticos e cineastas de todo o mundo para compor um ranking dos melhores filmes de todos os tempos. Tentativas semelhantes de estabelecer uma eleição dos melhores nacionais já foram feitas por aqui no Brasil, mas nada muito abrangente ou sistematizado. Pois agora, a Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, resolveu fazer sua própria lista. E que lista!

Cada um de seus 100 membros (inclusive este crítico que vos escreve) escolheu seus 25 filmes nacionais preferidos. Os 100 com melhor pontuação (na verdade, os 101, porque houve um empate) entraram no ranking, que será impresso em um livro a ser publicado pela editora Letramento em 2016. Além do Top 101, a publicação trará um texto analítico sobre cada um deles (e, provavelmente, as listas individuais de cada membro da entidade).

A lista é inegavelmente boa – e, no geral, justa. Entre longas, médias, curtas, coproduções, ficções e documentários, o melhor de todos foi um filme mudo, dos anos 30: “Limite” (1931), obra-prima de Mario Peixoto. Como questionar?

"Limite": o melhor de todos

Há ainda uma infinidade de Glaubers, Nelsons, Babencos e Reichenbachs. As maiores injustiças? Não tem, por exemplo, nenhum David Neves. E só um Walter Hugo Khouri. Claro, a meu ver, há algumas aberrações, como as inclusões do modorrento “Abril Despedaçado” (57º) e os estridentes “Tropa de Elite” (30º) e “Tropa de Elite 2” (35º). E há filmes do cinema marginal bem melhores que alguns dos escolhidos.

A minha lista pessoal eu publico por aqui uma outra hora (mas meu top 10 já está neste site, em http://tinyurl.com/p9sgtug). Ao elaborá-la, me senti péssimo por ter que deixar de fora algumas maravilhas tupiniquins, como “Macunaíma”, “Filme Demência”, “A Lira do Delírio” e “Iracema, uma Transa Amazônica”; felizmente para mim, porém, meus colegas não cometeram o mesmo deslize.

Confira aqui o listão da Abraccine:

1.        Limite (1931), de Mario Peixoto 
2.        Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de G. Rocha 
3.        Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos 
4.        Cabra Marcado para Morrer (1984), de E. Coutinho 
5.        Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha 
6.        O Bandido da Luz Vermelha (1968), de R. Sganzerla 
7.        São Paulo S/A (1965), de Luís Sérgio Person 
8.        Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles 
9.        O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte 
10.      Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade 
11.      Central do Brasil (1998), de Walter Salles 
12.      Pixote, a Lei do Mais Fraco (1981), de H. Babenco 
13.      Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado 
14.      Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirszman 
15.     O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho 
16.     Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho 
17.     Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho 
18.     Bye Bye, Brasil (1979), de Carlos Diegues 
19.     Assalto ao Trem Pagador (1962), de Roberto Farias 
20.     São Bernardo (1974), de Leon Hirszman 
21.     Iracema, uma Transa Amazônica (1975), de Jorge Bodansky e Orlando Senna 
22.     Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khouri 
23.     Os Fuzis (1964), de Ruy Guerra 
24.     Ganga Bruta (1933), de Humberto Mauro 
25.     Bang Bang (1971), de Andrea Tonacci 
26.     A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1968), de R. Santos 
27.     Rio, 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos 
28.     Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho 
29.     Memórias do Cárcere (1984), de N.P. dos Santos 
30.     Tropa de Elite (2007), de José Padilha 
31.     O Padre e a Moça (1965), de J.P. de Andrade 
32.     Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci  
33.     Santiago (2007), de João Moreira Salles 
34.     O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha 
35.     Tropa de Elite 2 (2010), de José Padilha 
36.     O Invasor (2002), de Beto Brant  
37.     Todas as Mulheres do Mundo (1967), de D. Oliveira 
38.     Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), de Julio Bressane 
39.     Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), de B. Barreto 
40.     Os Cafajestes (1962), de Ruy Guerra 
41.     O Homem do Sputnik (1959), de Carlos Manga 
42.     A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral 
43.     Sem Essa Aranha (1970), de Rogério Sganzerla 
44.     SuperOutro (1989), de Edgard Navarro 
45.     Filme Demência (1986), de Carlos Reichenbach 
46.     À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), de José Mojica Marins 
47.     Terra Estrangeira (1996), de Walter Salles e Daniela Thomas 
48.     A Mulher de Todos (1969), de Rogério Sganzerla 
49.     Rio, Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos 
50.     Alma Corsária (1993), de Carlos Reichenbach 
51.     A Margem (1967), de Ozualdo Candeias 
52.     Toda Nudez Será Castigada (1973), de Arnaldo Jabor 
53.     Madame Satã (2000), de Karim Ainouz 
54.     A Falecida (1965), de Leon Hirzman 
55.     O Despertar da Besta (1969), de J. Mojica Marins  
56.     Tudo Bem (1978), de Arnaldo Jabor (1978) 
57.     A Idade da Terra (1980), de Glauber Rocha 
58.     Abril Despedaçado (2001), de Walter Salles 
59.     O Grande Momento (1958), de Roberto Santos 
60.     O Lobo Atrás da Porta (2014), de Fernando Coimbra 
61.     O Beijo da Mulher-Aranha (1985), de Hector Babenco 
62.     O Homem que Virou Suco (1980), de J.B. de Andrade 
63.     O Auto da Compadecida (1999), de Guel Arraes 
64.     O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto 
65.     A Lira do Delírio (1978), de Walter Lima Junior 
66.     O Caso dos Irmãos Naves (1967), de L.S. Person 
67.     Ônibus 174 (2002), de José Padilha 
68.     O Anjo Nasceu (1969), de Julio Bressane 
69.     Meu Nome é... Tonho (1969), de Ozualdo Candeias 
70.     O Céu de Suely (2006), de Karim Ainouz  
71.     Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert 
72.     Bicho de Sete Cabeças (2001), de Laís Bondanzky 
73.     Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda 
74.     Estômago (2010), de Marcos Jorge 
75.     Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes 
76.     Baile Perfumado (1997), de P. Caldas e L. Ferreira 
77.     Pra Frente, Brasil (1982), de Roberto Farias 
78.     Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1976), de H. Babenco 
79.     O Viajante (1999), de Paulo Cezar Saraceni  
80.     Anjos do Arrabalde (1987), de Carlos Reichenbach 
81.     Mar de Rosas (1977), de Ana Carolina  
82.     O País de São Saruê (1971), de Vladimir Carvalho 
83.     A Marvada Carne (1985), de André Klotzel 
84.     Sargento Getúlio (1983), de Hermano Penna 
85.     Inocência (1983), de Walter Lima Jr. 
86.     Amarelo Manga (2002), de Cláudio Assis 
87.     Os Saltimbancos Trapalhões (1981), de J.B. Tanko 
88.     Di (1977), de Glauber Rocha 
89.     Os Inconfidentes (1972), de J.P. de Andrade 
90.     Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1966), de José Mojica Marins 
91.     Cabaret Mineiro (1980), de C.A. Prates Correia 
92.     Chuvas de Verão (1977), de Carlos Diegues 
93.     Dois Córregos (1999), de Carlos Reichenbach 
94.     Aruanda (1960), de Linduarte Noronha  
95.     Carandiru (2003), de Hector Babenco 
96.     Blá Blá Blá (1968), de Andrea Tonacci 
97.     O Signo do Caos (2003), de Rogério Sganzerla 
98.     O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger  
99.     Meteorango Kid, Herói Intergalactico (1969), de Andre Luis Oliveira 
100.  Guerra Conjugal (1975), de Joaquim Pedro de Andrade (*) 
101.  Bar Esperança, o Último que Fecha (1983), de Hugo Carvana (*)   
(*) Empatados na última colocação, com o mesmo número de pontos.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Crítica: "Mistress America"

(idem, 2015), de Noah Baumbach


Greta Gerwig e Lola Kirke em "Mistress America"


A esta altura da carreira, já era para Greta Gerwig ter se tornado uma estrela, de fato. Porque ela possui todos os predicados para isso: é bonita, talentosa e tem uma presença sempre imponente, apesar de leve, agradável. Já não está apenas no cinema indie e levou consigo ao mainstream seu jeitão “gente como a gente”, que é tudo o que o público atual mais espera de uma atriz (Jennifer Lawrence é a prova maior disso). E quando ela interpreta uma personagem bem nesse estilo, como em “Mistress America”, deveria garantir a adesão sumária do público.

Mas Greta talvez seja o tipo de atriz que intelectualiza demais as próprias performances. Ela sabe que seu charme de mulher comum, com uma leve propensão ao “gauche”, é o seu forte, então investe todas as suas fichas em reiterar essa qualidade em si própria. Em “Mistress America”, sua personagem é a súmula do modus operandi de Greta enquanto atriz: ela gesticula atabalhoadamente, conversa com a voz pouco modulada, faz caretas e desvia o olhar durante os diálogos – bem do jeito que eu, você e todo mundo fazemos na vida real.

Mas a maneira de Greta parecer “natural” em cena é tão pré-calculada que não há um ser vivo na plateia que se deixe enganar; o público sabe que ela é uma atriz “atuando” de forma a ser uma mulher comum – por mais que, provavelmente, a Greta da vida real seja muito parecida com a imagem que ela quer transmitir. Ela seria imbatível caso, diante da câmera, se contentasse em simplesmente “ser natural”, mas Greta prefere sublinhar o tempo todo que “está sendo natural”; chama a atenção para a própria performance nos momentos em que menos deveria fazer isso. Olhá-la em cena é o tempo todo ficar em dúvida se ela é acima de tudo uma mulher adorável de se observar ou uma atriz constrangedora de se ver.

Menos mal que ela não é a protagonista de “Mistress America”, embora seja o centro de gravidade do filme. A personagem principal, a rigor, é a de Lola Kirke, que interpreta Tracy, uma jovem aspirante a escritora sem muito talento para fazer amigos na faculdade. Ao conhecer sua futura meia-irmã (o pai de uma vai se casar com a mãe da outra), Brooke (Gerwig), ela se encanta com o estilo de vida autônomo e desabusado da moça, escrevendo em segredo histórias inspiradas em coisas que ela faz e diz.

Baumbach tem fama de ser um dos melhores roteiristas de Hollywood, mas embora eu goste bastante do script de “A Lula e a Baleia”, não vejo nada de exatamente genial nas coisas que ele escreve. Ainda assim, seus roteiros são melhores que seu trabalho como diretor, que costuma ser um tanto genérico; Baumbach parece ainda a procura de um estilo próprio. Enquanto não descobre, tenta um pouco de Wes Anderson aqui, um muito de Woody Allen acolá, e mais toques de todo o cinema independente americano dos últimos 20 anos por todo o filme. Consegue uma obra com algum equilíbrio, mas nunca regular ou plenamente satisfatória.

Ainda assim, o filme tem um certo charme e é, na maior parte do tempo, aprazível. É melhor do que “Frances Ha”, seu longa mais conhecido, porque é menos afetado e não tem a mesma urgência de ser “adorável” ou “cool”. “Mistress America” também ambiciona esses dois atributos, mas de maneira bem mais relaxada. No fundo, parece uma grande desculpa para uma única e simples coisa: filmar Greta Gerwig. É o típico filme que um homem apaixonado concebe pra sua musa/companheira. No caso, em coautoria com ela – Baumbach e Gerwig assinam o roteiro. O que o filme tem de melhor, de mais autêntico, é exatamente essa admiração pela atriz/personagem – é uma pena que o cineasta não consiga encontrar uma forma mais depurada de escoar cinematograficamente essa paixão. Mas ele que não se sinta culpado por isso – afinal, tampouco sua egéria é capaz de criar uma personagem verdadeiramente apaixonante.




quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Crítica: "Chatô, o Rei do Brasil"

(idem, 2015), de Guilherme Fontes




Na parte final de “Chatô”, o diretor Guilherme Fontes, caracterizado como um apresentador de TV à la Chacrinha, canta um jingle que diz: “Não sei se rei ou réu”. Ele se refere ao protagonista, Assis Chateaubriand, em uma cena em que ele é julgado em um programa de TV, mas bem que poderia se referir a si próprio. No filme cuja trajetória de produção foi a mais escandalosa e problemática na história da cinematografia brasileira (sobretudo por suspeitas de desvio de dinheiro), o próprio Fontes foi por anos um réu culpado de antemão pela opinião pública nacional por conta de um filme que muitos suspeitavam que sequer existia de fato.

Pois o filme existe, sim, e a julgar o que está na tela, o veredito sobre Fontes deve ser dado: ele é rei. Um rei controverso, imperfeito, mas soberano – obviamente, para um longa com produção tão problemática, não se poderia esperar nenhuma obra-prima, mas é um trabalho admirável em vários aspectos, inclusive a qualidade da produção e da direção.

“Chatô” é uma divertida e extasiante fantasia biográfica sobre o grande magnata das comunicações brasileiras. Tudo é em grande escala – podem dizer o que quiserem, mas o filme parece ter empregado cada centavo que arrecadou. Os cenários são grandiosos, há paisagens dos quatro cantos do país, os figurinos são bem cuidados e até os efeitos especiais são, em geral, satisfatórios. A grandiloquência do projeto se justifica: Chateaubriand era, ele também, um sujeito altamente ambicioso, amante de tudo o que era imponente, espetacular. Forma e conteúdo se unem muito bem aqui.

As biografias em geral tendem a uma decepcionante sacralização dos biografados – eles viram santos a despeito de seus deslizes e defeitos na vida real. Pois “Chatô”, nesse sentido, é uma antibiografia: é extremamente dura com Assis Chateaubriand, que é mostrado como um sujeito mulherengo, pedófilo, assassino, mercenário e obcecado pelo poder. Não há quase nada positivo sobre ele, a não ser um elemento, que, aliás, acaba sendo decisivo no sentido de tornar o filme tão poderoso: era um homem altamente carismático. O Chatô do longa é um grande sonhador, um homem ativo e onipresente, algo messiânico e com um invejável vigor. Amava as mulheres, as novidades tecnológicas e, sobretudo, o poder, mas sua paixão maior parecia ser pela vida, e Marco Ricca demonstra essa sede de viver com tanto empenho e brio que o personagem ganha uma dimensão épica; a atuação dele, excessiva, histriônica, com sotaque paraibano carregado, é extraordinária.

O elenco inteiro está muito bom, sobretudo Andréa Beltrão, e Leandra Leal (duas amantes de Chatô) e Paulo Betti, divertido no papel de Getúlio Vargas. (As participações de José Lewgoy e Walmor Chagas são pequenas, mas vê-los na tela em aparições inéditas é especialmente tocante).  

O filme tem uma estrutura bastante manjada. Começa com Chatô à beira da morte, relembrando, em meio a delírios, a própria vida. Tem clara inspiração em alguns grandes clássicos, como “Cidadão Kane” (a estrutura em flash back, a trama sobre um comunicador polêmico), “Lola Montès” (a figura do protagonista é exibida a escárnio em seus últimos dias, para julgamento público), “Oito e Meio” (em seus últimos momentos, Chatô revê em galeria as mulheres de sua vida). Mas em termos de humor, alinha-se mais a “O Auto da Compadecida”, com algumas cenas bastante divertidas e muito rápidas, com um humor sem medo de soar politicamente incorreto.

O ritmo do filme é alucinante, e o roteiro por vezes confuso, mas em geral isso é bastante positivo; reflete bem a personalidade delirante de Chateaubriand, sobretudo observada por ele próprio em seus últimos dias. Mas embora a edição seja criativa, em vários momentos ela é falha – há desajeito na união entre algumas sequências, e determinadas cenas parecem estar fora do lugar (para um filme que teve tanto tempo para ser finalizado, era de se esperar que esse tipo de erro fosse evitado). O filme só decai muito na última meia hora, quando tende ao caos. A última cena, no entanto, é de uma enorme audácia – não é o caso aqui de fazer nenhum spoiler, mas é, digamos assim, ao mesmo tempo sufocante e sexual.


No geral, Fontes exibe domínio narrativo e um humor ácido que, hoje em dia, talvez não tenha mais tanto espaço. Por incrível que pareça, tanta demora para estrear fez bem a “Chatô”. A confusão toda a respeito do filme adicionou a ele diversas camadas extras; hoje, é interessante em bem mais níveis que se estreasse há mais de uma década. Chatô e Fontes se confundem em vários momentos, entre acertos e erros. O filme, no final das contas, não é apenas uma cinebiografia sobre Chatô: tem também ares de “autobiografia”. No julgamento de Chatô no filme, ele não é absolvido; mas talvez na vida real, Fontes mereça veredito diferente.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Crítica: "Pasolini"

(idem, 2014), de Abel Ferrara



Uma grande parte dos filmes de Abel Ferrara tende à controvérsia. E como seu longa mais recente fala da vida de um homem ainda mais polêmico do que ele, o cineasta Pier Paolo Pasolini, então já está quase que por definição fadado a reações de amor e ódio.

"Pasolini" mostra o último dia de vida do diretor/poeta/ intelectual italiano, quando ele encontra amigos, dá entrevistas e fala sobre projetos. De noite, ele faz "cruising" em um subúrbio romano, pega um rapaz e dirige rumo à própria morte em uma praia em Ostia, onde seria assassinado depois de manter relações sexuais com o jovem, de 17 anos.

A morte de Pasolini ainda hoje é cercada de mistérios, quase 40 anos depois do ocorrido; muitas pessoas acreditam que ele foi assassinado pelo perigo que ele, intelectual de esquerda, representava para grupos poderosos - ele trabalhava em um livro sobre o petróleo quando morreu. Outros acham que sua morte foi o curso natural do estilo de vida que ele levava - o cineasta recorrentemente saía com garotos de programa pobres e violentos, muitos sem nem se assumirem homo ou bissexuais, e isso, na Itália conservadora dos anos 70, significava problemas.

Mas Ferrara não compra a tese do crime político. Em seu filme, Pasolini morre vítima de homofobia. Mas este também é um crime político, e como Pasolini dificilmente seria o homem que foi se não fosse homossexual (qualquer um que ler alguma de suas biografias vê isso com clareza), então ele morreu por ser quem ele era. Mais do que acreditar que não havia um fundo político em sua morte, Ferrara usa a homofobia como forma metafórica de dizer que a razão específica pela qual ele foi morto não é tão importante; Pasolini morreu por ser Pasolini e pelo que "ser Pasolini" significava na Itália daquela época. Pode até ser irresponsável da parte de Ferrara em termos de factualidade histórica, mas é uma escolha poética e muito corajosa da parte dele.

O longa é muito bonito, Ferrara mostra grande compreensão do objeto de seu filme. É uma obra rápida, tem menos de uma hora e meia, então muitos temas e pensamentos de Pasolini não são nem mencionados. Mas o essencial sobre Pasolini está ali: um homem doce e problemático, furioso pelos caminhos que o mundo estava tomando.

Ferrara até se atreve a filmar algumas cenas que Pasolini nunca teve a chance de rodar. São cenas pasolinianas em espírito e com elementos típicos da obra do italiano (a movimentação dos atores e o foco na beleza masculina, por exemplo), mas jamais se trata de "imitação" do estilo de Pasolini - são, aliás, cenas bem ferrarianas.

O uso da linguagem é engenhoso: fala-se em inglês, língua nativa do ator principal, Willem Dafoe, mesmo quando estão em cena só personagens italianos. Mas quando Pasolini fala com rapazes da periferia, a conversa é em italiano - um italiano com sotaque americano. Pode soar com o algo ridículo, mas é uma ilustração do esforço que Pasolini tinha de se comunicar com pessoas de outros meios que não o seu, sobretudo dos mais pobres - é como se no filme o inglês fosse o "italiano culto" e o italiano fosse algum dialeto ou linguagem popular (e essa escolha tem algo de reflexão colonialista, o que tem total relação com os pensamentos de Pasolini).

Willem Dafoe tem o mesmo tipo de rosto cheio de vincos que Pasolini tinha e mostra uma boa performance. Mas sua voz é muito mais grave e viril que a do cineasta. Uma das coisas mais interessantes sobre Pasolini era que quando falava, com seu timbre meio assexuado, era uma pessoa suave, gentil e paciente - uma contradição com o conteúdo de muito do que ele dizia, que podia ser feroz e violento. Dafoe é suave até onde consegue ser, mas observá-lo dizendo o que Pasolini dizia não tem o mesmo efeito de estranhamento; fica claro que ele não era a pessoa mais apropriada para o papel.

O ator favorito de Pasolini (e seu ex-amante), Ninetto Davoli, interpreta um personagem de um filme nunca realizado do diretor. Como já não é mais tão jovem, ele não mais interpreta o papel típico de Nineto Davoli nos longas de Pasolini - ele tem uma movimentação mais próxima de Totò, seu colega de elenco no filme "Gaviões e Passarinhos"; no filme dentro do filme, o personagem que seria de Davoli é vivido pelo talentoso Riccardo Scamarcio (que também interpreta o Davoli da vida real). Adriana Asti, amiga pessoal de Pasolini, interpreta sua mãe Susanna, e a portuguesa Maria de Medeiros tem uma cena ótima como a amalucada e extravagante atriz Laura Betti.

O filme é pequeno e seria um equívoco exigir dele coisas que ele não se propõe a tratar. Tem um ou dois momentos menos inspirados, mas no geral é realmente belo. Talvez não seja tão virulento como Pasolini muitas vezes era, mas é tão suave e poético como o diretor italiano era capaz de ser.

[*texto publicado originalmente no site "Brasil Post", na cobertura de Bruno Ghetti do Festival de Veneza de 2014]

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "As Mil e Uma Noites" (volumes 1 a 3)

(Idem, 2015), de Miguel Gomes

Cena de "As Mil e Uma Noites 3 - O Encantado"


A crise econômica enfrentada por Portugal desde 2013 é o tema desta trilogia, que não é uma adaptação, mas apenas “se inspira na estrutura de ‘As Mil e Uma Noites’“, como um letreiro faz questão de deixar claro. De fato, o diretor português Miguel Gomes inclui sua bela Xerazade como uma estratégia para unir em um mesmo projeto pequenos episódios isolados que, sem um fio condutor, seria inviável em termos dramatúrgicos. 

Ou talvez a presença dela tenha outra explicação: em tempos tão horríveis, são necessários momentos de evasão, por meio de narrativas absorventes como as que ela narra ao marido, o rei Xariar. O projeto de três filmes semiautônomos é um enorme laboratório para que Gomes exerça da forma que achar melhor sua capacidade enquanto artista e enquanto observador social. Cabe de tudo nos longas – trechos encenados, registros documentais, cenas de docudrama, episódios surrealistas, metáforas óbvias e alegorias impenetráveis. Tudo é uma reelaboração da situação socioeconômica de hoje no país, mas também com referências à formação histórica da sociedade portuguesa.

O projeto é extremamente ambicioso e muito arriscado: podia tanto terminar como um fracasso retumbante como se tornar uma obra-prima inatacável. Há nos três volumes um pouco de cada coisa – os filmes são bastante irregulares, e Miguel Gomes não parece ter muita preocupação com o equilíbrio interno de cada um. Ainda assim, os grandes momentos de cada volume suplantam com enorme vantagem os trechos menos felizes. O projeto de Gomes já é uma das grandes realizações cinematográficas do ano de 2015.

O Volume 1, “O Inquieto”, começa com imagens e depoimentos de trabalhadores de estaleiros em dificuldades financeiras, que cedem espaço a um divertido trecho metalinguístico, em que o próprio Gomes surge como ele mesmo, um cineasta desesperado diante de suas responsabilidades para fazer um filme sobre a crise portuguesa; ele sai literalmente correndo e abandona as filmagens – o humor está sempre presente na trilogia, embora no âmago sejam filmes duríssimos e até dolorosos.

Demora uma eternidade até que surja Xerazade e a premissa do filme seja explicitada. Os episódios que ela narra incluem um que é puro escárnio, sobre autoridades econômicas que sofrem de um priapismo incontrolável, outro sobre um galo que incomoda a vizinhança por seu canto estridente e, o mais triste de todos, um sobre desempregados narrando o caos de suas vidas após a perda de seu trabalho. Em vários instantes, o filme fica parecido com aqueles sonhos sobre os quais a gente não tem controle, quando alguma coisa importante cede espaço a uma digressão, e enquanto nosso inconsciente não se livra dessa “subtrama”, é impossível voltar ao que inicialmente nos interessava. E talvez Gomes use esse artifício como um exercício de poder: mostra que é ele quem manda - é o senhor de seu filme.

O volume 2, “O Desolado”, é o mais regular. Começa com uma pungente história de um bandido que se torna ídolo, mas o ponto alto é um julgamento alegórico em que a figura da Justiça (Luísa Cruz, em performance superlativa) percebe que é impossível uma sociedade progredir enquanto a corrupção, a falta de empatia e o egoísmo ocuparem lugar central no comportamento das pessoas. Mas o trecho final não fica muito a dever, na trama simbólica que se passa em um condomínio de classe média baixa, em que um cachorrinho (uma alusão ao povo português?) troca constantemente de dono. Há também um inesperado caráter espiritual nesse trecho, que o enriquece para além da questão social.

O volume 3, “O Encantado”, tem um começo brilhante, focado em Xerazade enquanto personagem – é o trecho mais dominado e satisfatório de todo o filme. Une prazer visual, sensorial (há muita música brasileira) e intelectual – é o auge da trilogia. Mas aí Gomes paga o preço da própria ambição: inicia uma aborrecidíssima história envolvendo passarinheiros que ocupa bem mais da metade do longa. O trecho se pretende uma súmula de toda a situação social crítica pela qual Portugal passa hoje e como isso vem em um processo já histórico. Como conceito, é muito interessante; cinematograficamente, porém, o trecho é morto.

Pouco após ultrapassar a metade das 1001 noites, Xerazade para de narrar seus casos - a voz dela em off some, e a narração passa a ser toda por escrito. Até desaparecer de vez (a culpa certamente é dos passarinheiros: o rei Xariar deve ter ficado tão entediado com a trama que resolveu, por fim, matá-la de uma vez). Para quem soube contar tantas histórias instigantes até então, a bela narradora teve um final imerecidamente patético. Pobre Xerazade...  

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "Quase Memória"

(Brasil, 2015), de Ruy Guerra


Charles Fricks e Tony Ramos em cena de "Quase Memória"

Um homem se encontra com ele mesmo, 26 anos mais jovem, e juntos travam uma conversa em que relembram fatos do passado comum. A estrutura é indisfarçavelmente teatral, com os dois atores (Tony Ramos e Charles Fricks) se movimentando em um espaço cheio de marcações e spots de iluminação que sugerem o trabalho de luz feito nos palcos. Os procedimentos, porém, são amplamente cinematográficos: há toda sorte de movimentos de câmera (os travellings en avant rápidos e vigorosos são especialmente interessantes), ângulos de filmagem inusitados e uso constante de idas e vindas temporais.

“Quase Memória” é uma adaptação do famoso livro homônimo de Carlos Heitor Cony, e, em seus momentos mais inspirados, tem boas reflexões sobre a memória: os personagens se deparam o tempo todo com os mecanismos ardilosos que nosso cérebro utiliza para falsear algumas lembranças, recalcar outras, promover esquecimentos e escolher os detalhes de uma situação a serem lembrados. Esperto, está sempre rearranjando seu conteúdo da maneira que mais lhe convém.

Mas o exercício de rememoração que o “eu” velho e o “eu” jovem praticam é focado não nas lembranças da própria vida deles dois, mas sim na do pai, cuja imagem é (re)construída por ambos em um processo colaborativo de esforço memorial. E o filme se dedica a esse personagem (João Miguel), um jornalista de personalidade intensa, cheio de paixões e algo grandiloquente – na verdade, um grande e incorrigível sonhador.

Eu não li o livro de Cony, mas estou certo de que a intenção era a de homenagear a figura de seu pai – que, de fato, parece um personagem e tanto. Talvez no livro, na linguagem escrita, a transição do encontro dos dois “eus” para as suas lembranças do pai transcorra com fluidez e naturalidade, mas no filme, as duas coisas não casam muito bem. A opção pelo foco nesse personagem paterno soa como uma negligência das possibilidades que a trama vinha apresentando até então; se o velho e o moço se dedicassem a relembrar o próprio passado, em um exercício de luta de “versões” para o que aconteceu, o filme seria infinitamente mais interessante. É sempre decepcionante quando o longa abandona os dois “eus” para se dedicar às memórias das coisas que aconteceram ao pai deles (em eventos em que, muitas vezes, o “eu” sequer estava presente); o filme constantemente dá a impressão de ser um desperdício de uma ótima ideia.

“Quase Memória” é um longa dinâmico, que além de abordar questões instigantes e mostrar personagens ricos conta também com um visual repleto de estímulos – cores vibrantes, luzes fortes, atuações histriônicas; no entanto, é um filme estranhamente sem apelo, algo trôpego, que não estabelece com o espectador nenhuma sensação mais forte que uma leve simpatia (não muito distante de uma total indiferença). Nem o humor sempre presente consegue trazer mais vibração ao filme, e o saudosismo pela vida na primeira metade do século 20, que poderia ser algo comovente e poético, aqui soa antes de mais nada como algo frustrantemente antiquado.


Tony Ramos tem uma brilhante atuação como o “eu” idoso, sobretudo em um monólogo quase no fim do filme; já a performance de Charles Fricks, embora eficiente, não está no mesmo nível. Os demais atores estão apenas satisfatórios em seus personagens caricatos, e o roteiro, apesar de alguns bons momentos, tem descuidos (não sei se isso está no livro, mas o “eu” jovem, que vive em 1968, a certa altura cita um filme de Federico Fellini... só lançado na década de 70).

domingo, 1 de novembro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "Nise - o Coração da Loucura"

(Brasil, 2015), de Roberto Berliner



A crítica se habituou tanto a valorizar apenas filmes com experimentações formais que parece ter se esquecido de se abrir ao prazer mais imediato proporcionado pelo cinema mais convencional. É uma pena, até porque alguns filmes sem uma proposta estética mais inovadora são capazes de, ao seu modo, trazer alguma novidade na visão sobre o tema que abordam.

“Nise – o Coração da Loucura”, de Roberto Berliner, é um desses filmes. Mostrando o trabalho revolucionário da doutora Nise da Silveira em um hospício nos anos 40, onde permitiu que os internos se manifestassem por meio da criação artística, o filme aborda o universo manicomial sem aquele ranço de “exploitation” que costuma caracterizar os longas sobre loucura. Há, sim, tipos insanos, que cinematograficamente poderiam ser utilizados como elementos não muito distintos de bruxas ou zumbis em um filme de horror. Mas no longa de Berliner, não há esse tipo de tratamento; os loucos parecem, antes de mais nada, crianças atormentadas, seres de uma fragilidade extrema, que se agem com violência é por medo ou defesa. São pessoas tratadas pela câmera como pessoas.

Não há, também, sentimentalismo barato, e por conta desse equilíbrio no tratamento das personagens o filme é extremamente enternecedor. Há na câmera de Berliner humanismo, empatia e respeito, além de bem-vindos toques de humor; por isso mesmo, o filme tem um espírito leve e um frescor pouco usual no cinema sobre hospitais psiquiátricos.
   
Na primeira cena, Nise chega ao manicômio e bate na porta. Ninguém abre. Ela bate com mais força – de novo, sem respostas. Então, dispara a bater sem parar, com força, até que alguém, irritado, decide abrir o portão para ela. É uma ilustração perfeita do tipo de personalidade de Nise da Silveira: obstinada, pragmática, algo intransigente. Apesar dessa dureza, era uma mulher de bom coração – se cuidava com tanta atenção de seus “clientes” (termo que ela mesma usava), era para levar adiante suas pesquisas científicas, sim, mas também por uma vontade genuína de vê-los terem seus traumas e fantasmas amenizados, se não curados.

Os atores que dão vida aos internos interpretam seus personagens com sensibilidade e sabedoria. E Glória Pires dá vida à protagonista com brio e vigor, mas sua fala muito correta, com frases prolongadas demais, pode dar a impressão de que a atuação é equivocada. Não é: não se pode esquecer que a doutora Nise era uma mulher dos anos 40 – em nosso cinema, é comum que os atores de filmes de época se esqueçam de que a forma de falar, gesticular e se mover no passado era muito distinta de como é hoje, a ponto de o público aceitar como “correto” esse registro moderno de performance (o próprio “Nise” tem alguns atores em papeis menores sem esse mesmo tipo de cuidado com a atuação).

O filme tem alguns achados interessantes. O hospício se localiza no bairro carioca do Engenho de Dentro, e um dos personagens usa esse nome topográfico para se referir à própria mente. E há uma cena especialmente desoladora: quando cães utilizados como elemento terapêutico são assassinados – a sequência poderia ter um melhor tratamento visual, mas o fato de não ser tão “estetizada” acaba sendo um ponto a seu favor. O aspecto imagético não eclipsa a carga emocional, que é altíssima – fica-se quase tão desesperado diante do que se vê quanto os internos, que gritam e choram, em um transe coletivo.


A se lamentar, apenas, que o filme incorra em um dispensável maniqueísmo, com Nise e seus auxiliares (e internos) como santos e os médicos defensores da lobotomia como monstros (e entre os internos, todos parecem extremamente dotados para atividade artística – custava ao menos um deles não ter talento nenhum para a arte?). Mas isso é apenas um detalhe no “todo” do filme; o que fica da experiência é a lembrança do esforço daquela mulher em uma incansável e instigante tentativa de compreender e dialogar com pessoas tidas como sem importância para a sociedade - mas que são tão humanos quanto eu ou você.