Kurt Russell e Samuel L.Jackson em "Os Oito Odiados" |
[ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS]
Quentin Tarantino não gosta de falar de política – a ponto de, aliás, proibir jornalistas de lhe perguntarem sobre o assunto em entrevistas. Vendo os seus filmes, dá para entender o motivo: definitivamente não é o forte dele. Ao longo da carreira, por anos o cineasta preferiu evitar uma abordagem mais politizada sobre seus temas preferidos (a vingança, a violência, as relações de poder). Mas recentemente, até pelas constantes críticas a uma certa alienação (talvez até "frivolidade") de sua filmografia, Tarantino tem preferido incluir aspectos mais engajados em seus longas.
A proposta vem sendo feita desde "Bastardos Inglórios", com
resultados nem sempre satisfatórios. Em seu penúltimo filme, por exemplo, "Django Livre", a ideia era criar um protagonista que fosse um grande líder
negro, precursor da luta pelos direitos dos afrodescendentes – mas em seu banho
de sangue revanchista, o "herói" vivido por Jamie Foxx nada mais era do que um
monumento vivo ao individualismo (conceito tão caro à sociedade americana – a
mesma que Tarantino pretendia criticar no longa). Em "Os Oito Odiados", o
diretor volta a mostrar uma pretensão mais crítica, engajada: quer apresentar ao público um retrato da
podridão da sociedade estadunidense a partir de sua gênese.
Tarantino volta ao universo do faroeste para falar dos EUA
atuais. Fez um filme em grande escala, filmado em bitola de 70mm e com seu
usual baú repleto de estratégias cinematográficas (das citações a outros filmes
aos irresistíveis e criativos travellings). O filme, curiosamente, se passa a maior
parte do tempo em ambientes fechados, claustrofóbicos – é um "western huis clos", digamos assim. Os
personagens são forçados por uma nevasca a ficar presos em uma taberna isolada, no Estado do Wyoming. São
facilmente reconhecíveis como elementos da sociedade americana, alguns deles formadores daquela nação: há
um inglês, um negro, uma mulher, um mexicano, um mercenário, um militar
ultraconservador, um xerife despreparado e alguns outros proscritos.
Ninguém confia em ninguém, e todos os personagens centrais são
odiosos, cruéis e assassinos. Em alguns momentos, uns se mostram mais nobres do
que outros – logo se verá, porém, que seu rompante de "nobreza" é apenas uma
forma de justificar o crime que pretende cometer a seguir. Se o filme tem um
herói, é o caçador de recompensas vivido por Samuel L. Jackson – ele é um
ex-militar que trocou correspondências com Abraham Lincoln durante a Guerra de
Secessão. Mas também ele comete atrocidades; é talvez um "herói", mas de modo
algum um "mocinho".
A ideia é ótima: mostrar um bando de pessoas altamente
condenáveis brigando entre si e se matando mutuamente, até não sobrar nenhum;
no final, na taberna ensanguentada, restam apenas os ecos das belas palavras de Lincoln sobre o árduo caminho que a sociedade americana tinha pela frente se
quisesse se tornar uma nação justa. Mas o problema de um diretor como Tarantino querer incluir
um final moralizante em seu filme é que seu estilo vai no sentido oposto ao que
suas ideias pregam. O roteiro indica que tudo não passa de uma enorme ironia, que
Tarantino desta vez faz uso de uma violência extrema para tecer comentários sobre uma sociedade que é violenta
ao extremo. Mas basta ver a câmera de Tarantino em ação para compreender que a
truculência espalhada pelo longa tem outra origem.
Antigamente, Tarantino assumia sem pudores que usava e abusava da violência em seus
filmes porque via beleza e fascínio na brutalidade. Era muito criticado, mas
jamais se deixou coagir pelos detratores. Com o tempo, parece ter se tornado
cada vez mais sensível às cobranças dessa natureza, e agora ele dá a impressão de constantemente procurar desculpas para justificar (legitimar?) a violência de
seus filmes.
No geral, os derramamentos de sangue tarantinescos não são
atos de violência crua e/ou realista, mas de violência estilizada; por isso causam no público
muito mais admiração do que repulsa. Pode-se até questionar o quanto eles têm
de gratuito, chocante ou perverso, mas o fato é que as cenas sangrentas não têm
como função primordial serem agressivas ou repugnantes; são puro espetáculo. Um
espetáculo talvez perverso demais, mas são acima de tudo o trabalho de um
grande esteta – obra do grande "poeta da brutalidade" do cinema moderno. Os
melhores filmes de Tarantino são aqueles em que ele assume a violência como
parte do "show", sem arranjar desculpas esfarrapadas para empregá-la.
Jennifer Jason Leigh: violência com fins cômicos |
Mas em “Os Oito Odiados”, ele quer fazer crer que utiliza a
violência de forma a denunciar a truculência do mundo real. Mas a câmera dele
na maior parte das vezes deixa entrever um prazer de natureza bem mais sádica.
E o que é pior: agora, muitas vezes ele utiliza a violência para fins meramente
cômicos – sobretudo no que diz respeito à personagem de Jennifer Jason Leigh,
na pele de uma bandida condenada à forca. Ela já surge em cena com um olho roxo
e será até o último frame um verdadeiro saco de pancadas. Entre bruscas
cotoveladas, jatos de vômito no rosto e golpes que lhe arrancam os dentes, as
violências que ela sofre constantemente no filme são vendidas como uma denúncia
da opressão contra a mulher, naquela época e hoje. Mas da maneira como estão na
tela, são usadas como gags, como piadas mecânicas para arrancar risos – são
qualquer coisa, menos uma delação.
Quando Tarantino enterrou Uma Thurman viva em "Kill Bill –
Vol. 2", também havia uma certa comicidade na cena, mas estava claro o tempo
inteiro que Uma era a heroína e que estava sendo injustiçada; nos termos de
“Oito Odiados”, quando Leigh apanha, imediatamente em seguida ela se comporta
de forma a justificar a agressão que sofreu. Tem um olhar cínico, falas vulgares
e, mais tarde na trama, mostra-se uma bandida da pior espécie. Há uma
recorrente justificativa para a sua agressão; o público pode até odiar o
personagem de Kurt Russell e sua extrema misoginia, mas é induzido a pensar que
ele tinha alguma razão em seus espancamentos (mesmo o pior dos bandidos não
mereceria um tratamento tão horrível).
Quando o outro grande poeta da violência nas telas, Sam
Peckinpah, mostrava Steve McQueen esbofeteando Ali MacGraw, ele não condenava a
brutalidade desse ato; ao contrário, é possível até que se divertisse com a
cena (e concordasse que Ali merecesse mesmo uns tabefes). Mas também não fazia
disso uma cena de comédia. E muito menos incluía tal imagem para denunciar a
agressão de alguns homens a suas namoradas; Peckinpah, enquanto personalidade
artística, era brutal e misógino – um talentosíssimo artista que criava movido
por sua enorme atração pela violência. Tarantino é da mesma linhagem artística,
mas parece refutar se assumir como tal. Oras, basta assistir a seus filmes: a
quem ele quer enganar? Não quero de forma alguma dizer aqui que o indivíduo
Quentin Tarantino tenha uma índole ruim, ou que seja um sujeito misógino,
racista ou sanguinário na vida real; mas enquanto personalidade artística,
também ele é inquestionavelmente misógino, racista e sanguinário – seus
filmes estão aí e não me deixam mentir. (Ao menos Peckinpah não pretendia
enganar o espectador.)
A cena final, com os dois homens moribundos lendo a carta
humanista de Lincoln, enquanto enforcam a bandida, possivelmente foi escrita
para soar como uma enorme ironia. Mas mais uma vez, da forma como Tarantino
encena, não é; parece muito justificável a condenação da personagem. Tarantino
estabelece um jogo muito perigoso, com o qual ele não tem habilidade o suficiente para lidar.
Seu cinema anda muito no fio da navalha para encerrar um filme com uma situação tão
ambígua.
A personagem de Leigh por vários momentos quase consegue
nossa piedade. Mas não por causa de Tarantino, mas pela performance da atriz, que é excelente. Samuel L. Jackson e Kurt Russell também têm momentos
notáveis, assim como Channing Tatum, no pouco que aparece. Por outro lado, Tim
Roth, Michael Madsen e sobretudo Demián Bichir não parecem ter encontrado o tom
de seus personagens; são caracterizações frágeis, pouco marcantes. A trilha musical do gênio Ennio Morricone é eficiente, embora também não seja das mais memoráveis.
O roteiro é o melhor escrito por Tarantino em anos, embora
às vezes deixe muito evidente que as idas e vindas temporais parecem mais
formas de disfarçar falhas que um ato de irreverência com as regras clássicas de
script. Embora alguns diálogos sejam longos demais, o filme é fluido, parece
ter menos minutagem que as quase três horas de duração. Há um momento
especialmente poderoso: a cena em que Jackson relata como teria matado o filho
do militar conservador (Bruce Dern), forçando-o antes a fazer uma felação – possivelmente, algo que nunca aconteceu
de fato, mas é o único momento de "vingança" do filme que realmente funciona e tem real ressonância política.
De resto, é mais do mesmo, aquele Quentin Tarantino de sempre, com tudo o que isso possui de bom e de ruim.